domingo, 26 de novembro de 2017

De visita




Oito horas da manhã de domingo. Ela estava na cozinha, imóvel. Imaginei que estivesse morta, não sei de que se morrem as lagartixas, mas sei também que elas não costumam ficar paradas em nossa adorável companhia. O cachorro, como sempre esfomeado e alheio, não notou a presença daquele pequeno ser branco e escamoso- me olhando desconfiada enquanto eu colocava o café para passar e abria a geladeira em busca de pão. As manhãs de domingo e seus silêncios, o céu cinzento e uma garoa fina, quem acorda tão cedo num domingo assim? O cachorro saciado volta para a cama na frente do fogão e a lagartixa parece esperar por algo que não consigo adivinhar o que é. O que esperam, o que podem esperar as lagartixas? Morta não está, pelo jeito. Mexe a cabeça sutilmente- parece acompanhar meus movimentos matinais: frutas, cereais, limão espremido na água gelada, que não sou mulher de gostar de coisa morna, menos ainda se for água. A cafeteira borbulha no fogão, o melhor café é o passado. Na hora, quente, sem açúcar. Forte na medida. Pego o jornal de ontem, leio o horóscopo de hoje: visita inesperada, espere surpresas, revelações surpreendentes, blá, blá. Olho para o piso encardido da cozinha, minha visita ainda está lá. Sorte a dela que não tenho medo de lagartixas, porque o medo é perigoso, mais do que o ódio- ele machuca e mata. Ataque é a melhor defesa, as baratas que o digam, amém. Não, não tenho medo, tenho até uma certa simpatia. As lagartixas me intrigam, misteriosas moradoras das paredes - que vidas estranhas levam essas criaturinhas de olhos separados e enormes, quantos segredos elas saberão, ainda mais que as moscas, mosquitos e cupins- elas são sorrateiras, dissimuladas- e rápidas. Gostaria que as lagartixas comessem os cupins que corroem essas portas e janelas, escancarando minha casa ao olhos do tempo, mas na chuva eles não vêm- me dizem e é garantido. Chove mais forte agora, um tamborilar de gotas na janela invade o silencio da manhã de domingo, já disse que amo as manhãs de domingo? e sua calma imóvel, tão imóvel como essa lagartixa branca de quem preciso desviar no chão branco-sujo da cozinha. Leio também o horóscopo do meu ascendente, por garantia: nada é permanente, me avisam as estrelas. Eu acredito. O cachorro desiste da preguiça e vem para baixo da mesa, abanando o rabo em busca de um pedaço de manga. Que indelicadeza a minha, preciso oferecer um pedaço também à visita: será que as lagartixas gostam de manga?
Não saberia, nem saberei: ela não está mais ali. Cansou de esperar, por certo tinha algo melhor a fazer do que observar meu café da manhã lento e calado. Desapareceu em algum vão ou fresta, se infiltrou talvez em outra cozinha, quiçá mais interessante e movimentada que a minha.
Ou, simplesmente- e bem mais provável essa última hipótese, sumiu porque não quer ser domesticada- não aguentaria. Como eu.

Daniela Altmayer

Passarinha



Era uma vez uma menina que não sabia falar.
Não é que ela não tivesse uma voz, ela tinha: só não sabia falar.
Quando ela abria a boca, saía um som estranho irritante, num volume muito alto, como se fosse um grito que ninguém entendia. As pessoas tapavam as orelhas porque aquilo doía.
Por não entenderem ficavam com medo do que ela dizia.
Algumas vezes, se ela tentasse bastante, sua voz saía baixinho num sussurro- feito um vento quente que assopra na orelha um assobio incessante.
Todo mundo achava triste mesmo sem entender-as pessoas tapavam os ouvidos porque era impossível ouvir aquele lamento sem chorar ou gemer.
A falta de palavra dita incomodava a toda gente, menina esquisita.
Uns bem que tentaram ensinar, A E I Ó U, outros mandavam benzer ou rezar. Um viajante trouxe poção de terra distante.
Por um ano ela comeu só mel e miolo de pão.
Tentaram de tudo. Nada, tudo em vão.
Então pensaram bem e concluíram que a cabeça da menina não funcionava, também: retardada, abobada, lesada.
Dessas coisas a chamavam, por trás e pela frente, descuidados que eram- e que são.
Faziam rima pequena com problema grande, troça com coisa que dói, mas a menina não se magoava. Pelo contrário: parecia nem se importar, respondia lá do jeito dela (ela sim, tudo compreendia). E sorria. Sorria sem parar.
O sorriso da menina era a parte mais difícil de entender. Qual seria o segredo? Havia de ser mesmo meio destrambelhada, a pobre coitada.
Com o tempo, ela foi deixando de tentar. Aos pouquinhos, e então de repente, emudeceu.
O povo não sabia o que era pior de se ter, se a menina quieta e resignada, sorridente, ou a voz que antes não entendiam mas que ao menos podiam escutar.
É que ninguém gosta de nada assim tão diferente, dá um não sei o quê de susto (e de raiva) na gente.
De que adianta ter voz, se não se sabe dizer?
Se não pronuncia sequer uma palavra, melhor seria não viver, melhor então seria morrer. Decidiram, assim, pôr fim na estranheza- naquela incerteza que dava tanta agonia e causava tamanha confusão. 
Deixaram a menina no mato, com uma cesta de comida e um já volto que era pior que mentira. A menina apenas sorria, serena e calada, sentada à sombra da árvore pequena. Parecia mesmo feliz, assim largada:
Adeus, adeus... 
Uns juram que escutaram, quiseram voltar: será que ela sabia, afinal?
Não a encontraram mais em nenhum lugar. Deixaram para lá.
(Como é -e tem que ser, e será.)
A maioria esqueceu da menina, depois de um tempo.
Poucos ainda a ouvem cantar.

Daniela Altmayer ( Conto de fadas para a oficina de escrita criativa)

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Sabe como é?

1971

Ela estava ao telefone, impaciente. Falava com a mãe naquele tom que os filhos falam com as mães, quase sempre. Entre irritação e tédio: Sim, mãe, não mãe. Que saco, mãe. Não sei, mãe. Tá mãe.
Sentada a meu lado na lotação, ela encerra a conversa e se vira para mim, como pedindo desculpas, revirando os olhos: Mães! Sabe como é...
Eu sei.
Ela é que não sabe que eu perdi a minha há uma semana. Que, desde então, tenho olhado para todas as mulheres que ainda falam com suas mães com um misto de inveja e preocupação. Que eu as vejo juntas na calçada, a mãe e a filha, essa tantas vezes com pressa, sem saber a falta que irá sentir quando não mais precisar retardar o seu passo para acompanhar o dela: quando estiver caminhando sozinha.
Ela não sabe que eu choro na ida e na volta do trabalho, choro agarrada ao travesseiro, que eu tenho uma blusa que ainda conserva o cheiro dela e a visto à noite, todo dia. E que todo dia a vida continua, e não espera minha dor passar, parece que essa dor nunca vai.
Ela não sabe que eu fico tentando entender a morte, essa coisa tão definitiva que leva com ela todas as segundas chances. Todas as oportunidades perdidas, os eu te amo não ditos, os sinto muito esquecidos. As brigas bobas e sem importância. Eu fico tentando entender todas as importâncias. Ela não sabe que a morte muda tudo de lugar.
Ela me conta que a mãe toma conta do seu menino e ela se mete na vida deles demais, não é que ela seja ingrata ou coisa parecida. E eu lembro da longa noite que passei acordada, esperando meu filho de sete anos despertar, e lembro dele vindo pelo corredor, os olhos cheios de sono, ainda alheio à notícia que o esperava na sala: sua melhor amiga havia partido, virado estrela na madrugada. Nenhum abraço foi mais doloroso que aquele.
Ela não vê minhas lágrimas por trás dos meus óculos escuros, e eu tenho vontade de dizer a ela, e a tantas outras que encontro pelas ruas, que elas não sabem a sorte que ainda tem. Elas não sabem, ainda. Quero gritar para não serem tão descuidadas, que é tudo tão provisório, mas ninguém sabe nada, muito menos eu: a gente sempre acha que mãe é eterna.

Ela segue falando, muda de assunto. O tempo mudou. Parece que vai chover, e a próxima parada é a minha.

 Daniela Altmayer
Crônica episódica sobre luto, que está no livro da Santa Sede, safra 2017
 ( Dez anos de saudade, hoje)

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Num piscar de olhos

         
             
Outro dia, no fundo de uma gaveta, achei uma foto de quando meu filho estava começando na escola nova - primeira série. Nesta semana recebi o aviso de uma reunião no colégio para tratar da formatura dele.
Abro os olhos e dez anos se passaram.
Há muito ele passou de mim, em altura. Ainda consigo sentir o calor de sua mãozinha apertada na minha no primeiro dia de aula, ao mesmo tempo em que o vejo no banheiro, fazendo a barba em frente ao espelho.
Quando ele era pequeno, eu olhava para ele e pedia: vai devagar, tempo.
Por favor.
Como pôde, então, ele desrespeitar meus avisos de velocidade e disparar desse jeito?
Penso no tempo gasto em reclamações, em discussões inúteis e no quanto isso fez acelerar os relógios em dias ou até meses.
Penso no tempo ganho em brincadeiras ao sol e abraços apertados, e no quanto isso retardou os ponteiros e fez demorar os raros segundos.
Lembro daquela frase de um filósofo de nome complicado que diz que "a vida só pode ser compreendida olhando-se para trás, mas só pode ser vivida olhando-se para frente". A velha história: se eu soubesse naquele tempo o que sei agora... Só que a gente nunca sabe na hora, só depois. Bem depois.
Bate uma nostalgia sem sentido, uma vontade de retroceder nos anos e mudar o ritmo dos relógios. De ser mais suave, comigo e com ele. De me guiar mais pelas batidas de coração, menos por prazos a cumprir. De falar isso para cada pai distraído que cruza meu caminho de mãos dadas com um menino vestido de Homem - aranha:
- Aproveita. Porque passa rápido, muito rápido.
Como não é possível, me contento em perceber que afinal a vida não é marcada por um cronômetro, embora às vezes pareça.
E que ainda que a gente ande quase sempre apressado, sempre haverá uma manhã de domingo. Aquele momento para se estar junto sem despertador e sem hora. De pé descalço e pijama: uma manhã preguiçosa, gentil, paciente. E lenta.

Como a infância de nossos filhos deveria ser.

Daniela Altmayer
( Crônica que está no livro da safra 2017 da Santa Sede. Tempo/velocidade)

domingo, 12 de novembro de 2017

Embalos de sexta à noite




Na hora calma da sexta à noite, o som de um saxofone me invade o quarto, soprando nos meus ouvidos os acordes de I`ve got you under my skin. Ponho de lado o livro que estava lendo.
Um homem, imagino que seja um homem, toca no prédio vizinho, eu cantarolo a música aqui dentro da minha cabeça num sorriso mudo de quem é desafinada por nascimento, poeta por falta de escolha.
Fecho os olhos e te sinto em cada poro da minha pele, e tudo é exatamente como fala a canção.
Tem lugares de portas abertas de onde não se pode fugir.
Mesmo que nunca se possa ganhar, avisa a voz, shhh... Espero que se cale, inconveniente.
Não é sobre ganhar ou perder, nem é sobre resistir. É sempre sobre outra coisa, maior.
Acaba a música e alguém pede bis, não sei se está rolando uma festa, ou o quê, mas o cara toca bem e não me importo com a quebra do silêncio na meia-noite fresca desse novembro estranho. Ele segue com Frank, My way é a escolha, eu seguro a vontade de cantar alto, do alto do meu lugar comum: a cama. Plateia VIP.
Quero poder ouvir essa música no dia em que o fim vier, e pensar: eu fiz do meu jeito.
Embora eu não tenha planejado cada etapa, sequer tenha tido muito cuidado; tantas vezes estabanada e desatenta, tenho poucos arrependimentos para muitos erros pela estrada, e embora eu espere que esse dia ainda demore a chegar, o que nunca se sabe, nesse momento eu quero é poder cantar forte e fora do tom: I've loved, I've laughed and cried
I've had my fill my share of losing
And now,… 
Adormeço embalada com o tom rouco e um pouco melancólico do instrumento que me entra pelas frestas do sonho. Respiro teu perfume no meu cabelo, a vida é esse intervalo. Como você.
Vento de primavera.
Durmo abraçada ao travesseiro macio de uma bem acompanhada solitude.
Paz é um pouco isso, um nada de tudo. Ou antes um tudo, de nada: um tipo de felicidade.
Musicada ou silente, assim intercalada.


Daniela Altmayer