terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Vai, dois mil e quinze!


Existem anos bons, e anos ruins.
Anos são feitos de meses, que são feitos de dias, que são feitos de horas, que são feitas de minutos, que são feitos de segundos.
E o tempo pode ser contado de um jeito, ou de outro. Micro, ou macroscopicamente. Por convenção.
Como sempre acontece, no balanço inevitável de um fim, qualquer fim, a gente olha para trás. E o que eu vejo é que o ano que agora termina foi um ano ruim. Um ano que me encontrou triste, de maneira geral. Os motivos são meus, e também alheios.
Nem sempre foi fácil levantar da cama às seis horas da manhã de todo dia.
Os sorrisos custaram a vencer a rigidez de olhos que só queriam chorar. 
(Mas não choraram, não o suficiente.)
As palavras engolidas inteiras, sem digestão, causaram dor. As que foram ditas, e mais ainda o que foi interdito.
Perdi no caminho coisas muito importantes, amor, sonho, inspiração.
Perdi a verdade, e a magia, em troca de mentiras e desilusão.
O que era bolha de sabão se acabou. Era de vidro, e se quebrou.
O ano que agora finda teve um gosto amargo, e leva com ele uma tristeza imensa.
A imensa tristeza da decepção.
Nem sempre foi fácil levantar da cama nesses doze meses. 
Mas foi sempre preciso. Encontrar a força necessária para não deixar o espírito quebrar. 
Vidros podem quebrar, espíritos não. Espíritos podem, no máximo, vergar. É permitido chorar um pouco, ainda que a seco, com sorrisos disfarçados. Escondido, para não incomodar ninguém, nem por muito tempo, para não gastar a paciência. E logo depois tocar. O barco, e a vida. Viver é preciso, sim, e tem contas a pagar.
E, porque não se pode parar, o tempo se encarrega de arrumar. Toda essa confusão.
A cama, o cabelo, as dívidas, as dúvidas. O coração bagunçado.
De arrumar bons momentos, e outras boas histórias para contar.
Tem que seguir. Trabalhar, trocar, estudar. Viajar.
Permitir. Encontrar, acontecer. Dar chances.
Conhecer, desconhecer... reconhecer-se. 
Desfrutar.  De muito prazer, em conta gotas de segundos preciosos. E nos segundos, ser feliz por um ano inteiro.
Dois mil e quinze me encontrou de um jeito, e depois me transformou. Dolorosa e silenciosamente, me endureceu. Ainda não sei o que sobrou de quem eu fui no início.
Nem sempre foi fácil, mas foi sempre preciso. E por ter sido preciso, foi. 
Vai, dois mil e quinze. 
Não vou sentir saudade.
Apenas gratidão, pelo aprendizado. (Que ainda não assimilei.) Continuo sem entender. Mas dizem que é assim que se tem que dizer. Obrigada, então.
Pela saúde, acima de tudo, é preciso agradecer.
Obrigada pelos belos e raros encontros. Houveram alguns. Que me devolveram sorrisos, molhados. Verdadeiros, e mais uns tantos suspiros, dobrados.
Eternos nos minutos de algumas horas de uns dias, quaisquer. Instantes apaixonados, de pura poesia.
Pelas boas, e honestas descobertas, sou grata. Pelas músicas, livros, surpresas. Por duas rosas vermelhas.
Pelos amigos novos e antigos, para sempre. Obrigada. 
Vai, dois mil e quinze. Leva tudo o que não funcionou, e foi tanto. Apaga de vez o que não prestou, e deixa só o que tiver que ficar. Com permissão, dessa vez. De olhos abertos, com redobrada atenção e uma boa dose de ceticismo, que não faz mal a ninguém, ter cuidado.
Não peço desculpas pela melancolia, nem pelo desabafo contido nessa confissão. É que eu estive triste, por muito tempo durante esse ano. E para mim, escrever, é isso. Como viver,  preciso.
Escrever é o meu jeito de chorar, de jogar fora, de me desfazer. Para encerrar, relativizar, esquecer sem esquecer. Para saber que vai passar. Falta pouco agora, bem pouco.
Vai, dois mil e quinze! Passa logo.
Para você, só tenho a dizer:
Espero, e desejo que seja mais fácil, em dois mil e dezesseis.
Levantar. 
E mesmo que não seja, sem você... vai ser. Será.

Dani Altmayer



segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Pouca fé

 

Ela me contou que foi uma cura espiritual. Não usou os quimioterápicos prescritos para o longo tratamento da tuberculose pulmonar. Trouxe um exame de escarro negativo, tinha a pele acinzentada e devia pesar uns 40 kg. Quer retornar ao trabalho. Solicitei que me traga outras evidências da sua cura, como o raio-x e um laudo do pneumologista. Ela me olhou com certa pena, disse que entende que eu não acredite, e saiu em busca das provas.
Penso nela quando, ao voltar de mais um plantão, passo por um local chamado "pronto socorro espiritual". Tenho vontade de mandar o táxi parar, e entrar. Deus sabe como estou precisando de curativos, no peito, na cabeça, por dentro, onde quer que fique uma alma. Tenho alguns ferimentos feios, ali.
Gostaria de poder me ajoelhar aos pés de um homem ou mulher que seja, e receber de suas mãos a solução para todas as minhas dores, e para meu hipotireoidismo. Queria ganhar certezas, em troca de uma entrega verdadeira. Quem sabe, ao acender uma vela, se apagassem todas as perguntas, todas as dúvidas, quiçá até esses pensamentos, tão incômodos?
Talvez haja mesmo um culto, em que pessoas se deem as mãos, e cantem, ou gritem, palavras de ordem e amor, numa espécie de transe motivacional por repetição. Unidos pela ideia de que somos todos irmãos, eu receberia de volta uma fé que me convenceria. Seria só seguir a cartilha, e me deixar levar, sem desamparo ou incertezas. Fluir sem esforço, simples e fácil assim, feito desaparecer de si mesmo.
Cuidariam de mim, por mim. Alguém.
Então, eu poderia afinal desfazer essa estranha ideia que me assola cada vez mais, que é a de que os seres humanos, eu incluída, são (quase) todos uns loucos e perfeitos egoístas. Que o mundo é louco, e egoísta. Estaria livre dessa desconfiança, da solidão absurda de não pertencer.
Só que eu não parei. Estava com pressa de chegar em casa, e fazer outra coisa egoísta qualquer, tipo ler, descansar. Ou escrever um poema idiota sobre dor, sofrimento, mínimos de esperança e alguns contrapontos.
E, porque eu prefiro o poema à cura, acho que não tenho mais salvação. Devo seguir tomando o remédio da tireóide, toda as manhãs, para o resto da minha vida.
A paciente não voltou, ainda estou à sua espera.
Ela pensa que não, mas eu acredito sim, em milagres.
O problema é que eu também duvido muito. De tudo.
De todos, agora.

Dani Altmayer

sábado, 12 de dezembro de 2015

Sorrisos raros


"Ela lhe perguntou num daqueles dias se era verdade, como diziam as canções, que o amor tudo podia.
- É verdade- respondeu ele- mas será melhor não acreditares."
( Gabriel Garcia Marquez)


O trem seguia quase vazio, naquele horário. Estávamos sentados frente a frente, cada um com seu livro no colo, abraçados nos próprios pensamentos. No início da viagem não íamos a sós na cabine. Havia essa mulher gorda, com ares de cansada, que tinha em seus braços um bebê franzino e desdentado. Ela parecia ainda mais triste do que eu, com seus peitos enormes, vazando na blusa de algodão. Em certo momento, o cheiro inconfundível fez com que nos entreolhássemos, num sorriso constrangido, e a mulher saiu, em busca de um lugar para trocar fraldas, além daquele pequeno cubículo abafado. Ela não voltou para a cabine, e suspirei aliviada, pronta para seguir minha leitura, em paz. Ler é o meu refúgio favorito. Depois de tanto tempo fora de casa, eu só não queria pensar no que me esperava. Estava tão entretida que custei a perceber o olhar dele grudado em mim.
Embarcáramos na mesma plataforma, e eu já havia reparado nele antes, não tanto por suas roupas esquisitas e seu ar distraído, mais porque levava uma pilha de livros velhos, um exagero para uma viagem de apenas algumas horas. Gostei quando ele sentou no mesmo compartimento que eu. Gosto de gente que carrega livros.
Ele me encarava, o livro puído agora fechado sobre as pernas. Tinha os olhos apertados, meio vesgos, de um jeito charmoso. Falou, como se tivesse descoberto ouro:
- "É a vida, mais que a morte, que não tem limites."
Encantada por ele ter citado meu autor preferido, sorri em resposta. Ele guardou os livros na mochila rasgada, e sentou ao meu lado, dizendo de um jeito esquisito:
- Amor assim existe?
Dei de ombros, rindo com uma vontade idiota de chorar.
Ele não perguntou o meu nome, antes de me beijar. Eu nunca soube o nome dele, depois.
Ajoelhou na minha frente e abriu minhas pernas, se aninhando entre elas. Tocou o meu corpo com o cuidado de quem manuseia um livro antigo, folha por folha. As mãos, secas e ásperas, me seguraram as coxas com força e delicadeza, ainda por cima do vestido azul. E então subiram, como duas serpentes, farejando a minha pele fria. A minha urgência não era nada para ele. Com calma, ergueu minha perna e me tirou o ar. Antes que eu parasse de gemer, saiu da cabine para sempre.
Ele desceu uma estação antes da minha. A mulher gorda com o bebê, também. Ele não percebeu meu sorriso na janela. O trem partiu e ele se dissolveu em meio à nuvem de saciedade.
Uma hora adiante, Carlos e Pedrinho me esperavam na plataforma. Ganhei uma rosa.
-Tem presente, mamãe?"
-Você parece cansada, querida. Fez boa viagem?
Nunca mais o vi.

Dani Altmayer








domingo, 6 de dezembro de 2015

Mais minis

                                                     
                                                Amarelo
                               Na foto do perfil, os dois sorriem.



                                                     
                                                   Mudança
                                 Não havia espaço para carga pesada.
                                 Por isso não te levei.






                                                                 Ciclos
   Como vulcões adormecidos que despertam, as noites insones um dia cansam.
   Adormecem.

                                         



                                                 Cobrança
                             No banco das relações humanas não existe crédito.






                                                            Escondido
                       No dia em que assinaram o divórcio, começaram a namorar.





Teu corpo
É como um livro bom do caralho.
Difícil de largar.







Dani Altmayer

Leitura de contos no encerramento da oficina de escrita criativa (2015) em evento na Palavraria Livros.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

A roupa nova do rei


Todo ser que respira é frágil e imperfeito.
Tudo o que tocamos nos toca de volta.
Mas sob o manto invisível da vaidade, estamos todos nus.
Tecidos e sedas mal cobrem as veias.
Artérias pulsam, sob a pele exposta.
Máscaras escondem rugas, e rusgas. 
Só os olhos não disfarçam a dor. 
Um ouro qualquer compra o perdão.
Vaidades, em troca de verdades.
Mentiras costuradas como delicada teia.
Tramas encobrem o drama.
Segue o desfile, o baile no salão.
Nessa estranha, inventada sociedade.
Onde o que tocamos é superfície.
Só que não.
Muitos (todos) fingem, cuidado. 
Quase ninguém parece ver.
Que todo ser que respira, sangra.
E dói. 



Dani Altmayer




terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Para você que me faz sorrir




Ao fim de uma tarde quente e perfeita, desce a noite, exausta e silenciosa.
A chuva, sem avisar, dedilha no telhado uma música de embalar sonho.
Pelas janelas abertas chega um cheiro bom, de doce.
Um perfume forte, sensual. De terra, molhada, suada. Satisfeita.
Fecho os olhos, num suspiro antecipado, feliz.
E antes mesmo de adormecer, eu já sei.
Vou sonhar...

Dani Altmayer

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Minidiálogos

                 

                       1
- Você não tem ideia de tudo o que passei.
- Alguém morreu?
...
- Não.

                     2
- Conheci alguém.
- Mentira. 
- ?
 - A gente nunca conhece, ninguém.

                   3

- Por que eu?
- Por que não?
- Eu não merecia.
- Então, alguém merecia...? 
(Quem é o juiz?)

                     4
- É óbvio.
- É preciso visão panorâmica, para se enxergar a periferia.
- Eu já sabia.
- Ok. Mas você estava fora.
( Nunca é óbvio, para quem está dentro).

Dani Altmayer

domingo, 22 de novembro de 2015

De pedra




Combinaram de se encontrar no café. Ele havia chegado antes, e estava sentado à mesa, tomando uma água sem gás. Ela o reconheceu imediatamente, depois de tanto tempo. Parou por um instante junto à porta, segurando o ar. Olhou para o pacote que tinha na mão, embrulhado em papel colorido. Com um suspiro, dirigiu-se ao homem de camiseta cinza. Sua vida estava prestes a virar do avesso, mas ela ainda não sabia.
Ele se levantou e a cumprimentou com um abraço desajeitado. Sentaram-se.
- Tenho uma coisa para você - disseram, quase ao mesmo tempo. Trocaram os presentes por sobre a mesa.
Ela sorriu. Ele sorriu. Livros.
Ele tinha os olhos verdes, e isso ela também não sabia. Ou não lembrava. Ainda demorou muito tempo para descobrir, alguns anos.
Que aqueles eram olhos que nunca choravam e nunca riam.
Eram verdes, e a olhavam.
Só que nunca a viram.



Dani Altmayer


terça-feira, 10 de novembro de 2015

Minicontos


foto Dani Altmayer POA-RS
                             

                        O cobertor
O cachorro não tem nome, ela o chama de cachorro. A menina tem nome, mas todos a chamam de menina.
A menina deita-se ao lado do único amigo que conhece. Cobre, a si e ao cachorro, com um pano verde puído.
Canta uma música que aprendeu na escola que não frequentou, que fica na frente do viaduto onde mora. Uma música que roubou da janela.
Adormecem alheios aos carros que nunca param de passar.
Dormem os dois na cama de papelão, envoltos pelas estranhas palavras: ordem, e progresso. 


                    Proporção
Você me dá sua saudade em uma linha. Eu já preenchi dois cadernos com a minha.


                Amor de verão
Durou apenas uma estação. Mas ficou uma vida inteira.


Dani Altmayer
Minicontos criados para o sarau "Os melhores dos menores", evento realizado no dia 09/11/2015, na 61 feira do livro de Porto Alegre.







quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Caso de polícia


A Elaine era puta, antes de casar com o Claudiomiro.
Eu e a Marinalva estávamos sentadas em um banco da praça, olhando as crianças que brincavam na areia. Ela estava me botando a par das últimas novidades:
-  Parece que ele viu ela num site e ficou besta, de tão bonita. Foi a São Paulo buscar.
A Marinalva era a maior fofoqueira da cidade. Ela era casada com o assistente do delegado, chefe do meu marido. Ela sempre sabe de tudo:
- A Elaine fazia faculdade de direito e trabalhava como garota de programa à noite, para juntar dinheiro.
-  Eu sempre achei ela com cara de metida.
Lembro da foto que saiu no jornal, e nas que espiei no facebook. A Elaine era uma mulher elegante, magra, bem vestida. Cabelo curtinho e loiro pintado, ela era bonita sim. Mas não dava pinta de puta. Talvez pela idade, 36 anos, por ser mulher de empresário rico. Tinham dois filhos, um casal de pré adolescentes.
- Ela estava sempre nas colunas. Fazia um monte de caridade, também.
- Viu, não se pode confiar nas aparências. Parece que ela fazia de tudo, lá em São Paulo.Vai saber se não continuou, depois do casamento?
Penso nas poucas vezes que encontrei os dois na missa do Galo. Eles iam todo domingo à igreja, eu mesma só vou no Natal e no sétimo dia, para fazer uma social. Minha religião e da Marinalva é outra.
- Pareciam um casal de novela, com aqueles dois filhos compridos, todo mundo magrinho- comento.
- Parece que as crianças estão em São Paulo, com a avó.
"Ela fazia de tudo". Devia ser tipo aquela mulher do filme que vi outro dia, sem querer, no computador do Nando. Não vou contar do filme para a Marinalva, vai que ela pense que o meu marido andava com a Elaine. Todo mundo está falando que ela tinha um caso com um homem casado, não disseram quem é, e ainda, que gostava de mulher também. O povo fala, mesmo, olha a Marinalva:
- Sabe a Ritinha, a manicure do salão, ela ia sempre na casa deles. Dizem que dormiam os três juntos.
 - Isso eu não acredito.
Eu não tenho nada contra, cada um faz o que quer da vida, mesmo sendo errado. Não sou como a gente dessa cidade, que é podre de fofoqueira. Estão crucificando a infeliz da Elaine. Está bem que ela era cínica, se é que era puta, isso eu acho, com aquela cara de nariz empinado, a caridade, a roupa de madame, aqueles livros todos.
-  Enganou muito bem, né Marinalva?
- A mim, ela nunca enganou! O Claudiomiro devia saber onde estava se metendo!
A Marinalva também não tem nada de santa. Nas festas da polícia eu via ela esfregando aquela bunda grande com o delegado, enquanto o bêbado do marido fumava com o escrivão. Eu vi, não foi ninguém que contou. Ela sai com ele, tenho certeza, deve ir no motel novo da estrada. Eu nunca comento, não gosto de me meter na vida dos outros. Também o marido dela, sei não, tem jeito de não ser lá muito macho.
- Eu não confio em mulher que tem silicone.
A Marinalva diz isso porque está com o peito enorme.
- A Elaine?- pergunto.
- Magra daquele jeito e com aqueles peitos, o que você acha?
Não sei, não gosto de ficar falando. Eu tenho pena é dos filhos. A gente sempre tem que pensar nos filhos, foi o que eu disse pro Nando quando ele quis sair de casa uma vez, porque estava todo apaixonado. Família tem que ficar junto, ele no fim concordou. Também o Nando é policial, é pobre. E pobre não separa para não dividir miséria. Dá muito trabalho.
A Marinalva coça o queixo, pensativa:
- Sabe que eu quase dou razão para ele?
- Para o Claudiomiro?
- É, coitado. Sempre foi um homem tão bom.
Nem eu, que sou acima de qualquer suspeita, não me atrevo a concordar com a minha amiga. Razão de matar a mulher com um tiro na cabeça?
Corno ou não, isso não está certo. Separa, bate, qualquer coisa, mas não precisa matar, Jesus. Deus é que sabe, se foi Ele que deu vida, só Ele que pode tirar. O pastor falou disso ontem mesmo, no culto.
- Matar é pecado, Marinalva.
- Vai ver foi até suicídio, ela responde. Ela tomava uns remédios tarja preta, que eu sei. O farmacêutico contou para o delegado. Vão pedir outro laudo do médico.
Começa a chover de repente, e a gente recolhe a criançada da praça. Hora de ir para casa, fazer janta, botar no banho. A Marinalva tem três filhos. Um, ainda bebê de colo.
Os dois mais velhos são a cara do delegado.

Dani Altmayer
( exercício para a oficina de escrita- ambivalência do mal)

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Outra




Olha, é para você esse texto, sim. Pode ler. Para você que pensa que o mundo gira ao seu redor.
(Ou seja, quase todos, de nós. De vocês.)
Quando você diz que me ama, você ama o que em mim reflete você, Narciso.
Você ama a imagem que você criou na sua cabeça, e ela não sou eu, pode ter certeza. Porque você não me conhece, sabe? Você não entende nada de mim.
Não sabe dos desertos que atravessei, das lágrimas que engoli, do meu coração partido.
Porque quando eu te contei, você não prestou atenção. Enquanto eu falava, você só esperava o tempo certo para dar a sua opinião, aquela que já veio de casa com você. Opinião que eu sequer pedi. Que não me define. Não me defina, por favor.
Você não sabe das minhas pequenas vitórias, das tantas derrotas, do exame que fiz mês passado. Do medo que eu tenho de trovão, e de morrer, e de que morram. Dos tantos medos que tenho, das grandes coragens que muito me custaram.
Você não perguntou, e eu não disse.
Do texto que escrevi, da chuva que não parou, do frio que eu senti. Do filme que assisti, da besteira que falei, das saudades que vivi.
Você não sabe da paixão que escondi, do ônibus que perdi, da gripe que me derrubou. Do filho que cresceu, do tempo que voou. De mim, que cresci.
Do inferno que é, tantas vezes, viver. Da delícia.
Você não sabe de nada, não se importa. Não cuida de mim, nunca cuidou. Eu cuido de mim, Narciso. Você cuida de si. Sempre foi isso, cada um por si.
Você diz sentir falta, mas falta de quê? De mim?
Não. De alguém que você projetou no espelho da tua vontade. Da imagem congelada de um antes.
Não sou eu ali, sinto muito. Eu sou outra.
Você sente falta de palavras e tempos passados, perdidos. Que não serão devolvidos. Nunca são.
Não pode chegar assim, de repente, esperar a mesa posta, a cama pronta, e um lugar na janela. Uma outra de mim, que te sirva. Não tem.
Eu não sirvo, eu nem presto. Eu não sou a outra. Sou à toa, sou sozinha, cheia de erro e defeito. Mas sou minha.
Você me chama para jantar, depois esquece. Oferece migalhas, sem saber o tamanho da fome que tenho. Tenta roubar minha solidão, eu não dou. Minha solidão é valiosa demais para ser roubada em troca de um quase nada.
Você diz que ama, mas abandona. Você é machista, eu sou o contrário. Assumida. Eu sou livre, você apegado. Você quer sexo fácil. Eu sou complicada.
Mas tudo bem, se fosse só isso. Um tesão honesto tem lá seu valor. Ainda é melhor do que muito amor inventado. Uma "mentira que a sua vaidade quer", isso não é amor. Não para mim.
Porque amor é tocar o mundo do outro com cuidado. Com permissão, com respeito. Para amar, tem que ser capaz de sair de si mesmo. Tem que ser capaz de admirar. Saber que existe um outro, que não é invisível. Amar é ouvir, e ser ouvido. Olhar, e ser olhado. Compreender, e ser compreendido. É coisa para dois, nunca trabalho de um só.
"Eu te amo." Que nada...
Nem você a mim, nem eu a você. Nem ninguém, desse jeito.
Narciso, o que você ama é o que você pensa, e o que você acha que quer. Você pensa que ama. Imagina. Mas não.
Fruto da sua ilusão, você cria o que melhor te convém. À sua imagem, e semelhança.
Pálidos reflexos que nunca serão.
Não são. E não servem.
Não sou eu ali. Olha bem. É só você, no lago.
Não sou eu, nem eu sou de ninguém. Eu sou outra.
Mas, acima de tudo, eu não sou a outra. Não de você.
E não, não com você.


Dani Altmayer


quarta-feira, 23 de setembro de 2015

A la minuta



Recebi a notícia de sua morte por telefone, um vizinho ligou avisando. Passava da meia noite, eu estava bêbado e no meio de mais uma DR. Foi a Ana quem atendeu, interrompendo a contragosto o fluxo de palavrões. Sempre fico besta com a criatividade dela.
Viajei logo cedo, na maior ressaca, e ela não veio comigo. Nove horas de viagem.
Eu não conhecia o macaco, há muito tempo não falava com meu pai. Ele fora vendedor por um tempo, entre outras coisas, antes de ser vencido pelo álcool. Deve ter ganhado o bicho numa dessas suas viagens, nunca vou saber. O enterro se dera há uma semana, caixão fechado, me contaram. Ontem alguém finalmente lembrou do Zé, esse é o nome do macaco. Por isso me chamaram, por causa do Zé.
O coitado estava sentado no canto do sofá, e não esboçou reação ao me ver. A casa, uma cabana de madeira na beira do rio, estava imunda como era de se esperar e cheirava mal. Eu havia comprado um cacho de bananas, na rodoviária, que o Zé desdenhou com um tapa. Ainda assim, ele parecia amistoso, apesar de entediado. Não havia um lençol limpo à vista, e a luz estava desligada. Decidi que não podia dormir ali, e fui para o único hotel da cidade, uma espelunca de dois andares, quase tão suja quanto a casa do meu pai. Deixei a chave com a vizinha, dona Alzira, e levei o macaco. Dividimos a janta, um a la minuta honesto. O bicho comeu todas as batatas fritas, e descobri que ele gosta muito de coca cola normal. Depois de algumas cervejas, eu apaguei sem ligar para a cama dura, o macaco roncando e peidando ao meu lado.
Acordamos cedo no dia seguinte, com o celular que apitava. Mensagem da Ana, não li na hora, estava sem meus óculos. A cabeça girava, o corpo doía, e, com o macaco agarrado na minha cintura, desci para tomar o café. Comemos pão com manteiga e uma geléia de algo parecido com uva. O Zé se mostrava mais disposto, depois da segunda refeição. Quantos dias ele teria passado sem comer? Parecia triste, talvez sentisse falta do velho. Eu precisava ver um veterinário. Mas antes tinha que ler a mensagem da Ana, encontrei os óculos no bolso da blusa do Zé, esqueci de dizer que ele estava vestido com uma camisa xadrez imunda. "Estou saindo fora, Ronaldo. Vou para a casa do Júlio, acho que você já sabia. Boa sorte com o macaco. Ana."
Eu não sabia, mas não me espantei. Júlio é o meu melhor amigo, baita parceiro e um canalha de marca maior. Não sabe a roubada em que está se metendo, a Ana é gostosa, mas chave de cadeia, mulher barraqueira que só. Não paga a conta, ele vai ver.
Acontece que eu tinha mais o que pensar, no momento, e precisávamos de um banho, eu e o Zé. Do chuveiro elétrico pingavam dois fios de água, um fervendo, o outro gelado. Esfreguei o macaco como pude com o toco de sabonete que alguém tinha esquecido por ali. Emprestei uma camiseta limpa do Timão para ele e voltamos à casa na beira do rio. Dona Alzira havia aberto as janelas e tirado o lixo. O cheiro estava um pouco mais suportável. Achei duas garrafas de pinga embaixo da pia da cozinha, e comecei a beber enquanto vasculhava a cabana em busca de não sei o quê. Mais de dez anos que não via meu pai, desde que minha mãe morrera de desgosto, ou antes. Depois, ele se mudou para essa porcaria de cidade ribeirinha, menos de mil habitantes. Ele teve um bar aqui por um tempo, depois fechou, faliu. Decerto bebeu o bar, o velho cachaceiro. Vivia da aposentadoria precoce, por invalidez, um acidente de trabalho mal explicado. Mal dava para o cigarro e o trago, disso estou certo. Aluguel pagava não sei como. Revirei as gavetas e achei uma foto de nós três, de quando eu tinha uns cinco anos. Minha mãe era bonita, professora. Foi ela quem me fez estudar, fiz faculdade de administração à distância. Culpa da crise eu estar desempregado, agora. Tinha planos de negócios com o Júlio, mas com a história da Ana, sei lá. O velho não era feio, não, de bigodinho e chapéu, alto. Fora a foto, umas certidões e pilhas e mais pilhas de contas, não achei nada que prestasse além da cachaça.
Comemos as bananas, o Zé um pouco contrariado, e dormimos no sofá de molas da sala, ele deitado na minha barriga. Acordei no dia seguinte com o bicho me puxando a calça, tínhamos visita. Uma menina magrinha e muito preta, de enormes olhos verdes, estava sentada sob os joelhos, no tapete puído, e me observava.
- Quem é você?
- Clara.
Sem dizer mais nada, ela levanta e começa a arrumar a casa, com o Zé a seguindo feito bobo. Não devia ter mais do que quinze anos, usava um short jeans e uma camiseta branca e curta, sem sutiã. Tinha uma espinha na testa, os cabelos carapinha presos numa trança grossa mal feita e chinelos de dedo.
- Você é a faxineira? - Perguntei, espantado que o velho tenha podido se dar a esses luxos.
- Não. Sou, quer dizer, era... namorada dele. Clara, já disse. Trouxe coca para o Zé, e um bolo para você.
Ela recolheu as garrafas de pinga vazias, pegou uma sacola grande que estava junto à porta e foi embora, tão silenciosa como chegou. Mastigo um pedaço do bolo duro de aipim, e dou outro para o Zé, que está usando meus óculos. Estou com sede, mas o Zé se recusa a dividir a coca comigo. Tomo um copo da água suja da torneira e saio também, com o macaco agarrado à minha cintura. Dona Alzira me intercepta no caminho, e oferece uma bem vinda xícara de café.
- Vejo que conheceu a Clarinha, boa moça ela. Cuidava bem do teu pai.
Não respondo. Precisava levar o Zé ao veterinário, ele ainda parecia meio desanimado. Vai que estava com alguma doença de macaco. Dona Alzira me avisa que o dono está pedindo a casa de volta, e que tem dois meses de prestação atrasada. Ela me deu o endereço do senhorio e do veterinário, que não é bem um veterinário, e eu caminho devagar até o centro. As ruas de chão batido estão empoeiradas e secas ao sol do meio dia. Como é hora do almoço, rachamos um a la minuta no restaurante da esquina, o Zé como sempre ficou com as batatas e eu com os ovos e o arroz mal cozido. Tomei duas caipiras,  e voltei para o hotel a fim de cochilar um pouco, antes de resolver os pepinos. Tinha esquecido o celular carregando, apago sem ler umas dez mensagens da Ana. Durmo abraçado com o macaco. Durmo demais.
Já é madrugada quando levanto para ir ao banheiro. O Zé resmunga qualquer coisa quando afasto seu braço do meu pescoço. O pelo dele me dá uma coceira danada. O celular está piscando no escuro, mais mensagens, deve ser a Ana, não acho meus óculos. Enquanto estou mijando, a porta do quarto se abre com um estrondo e eu quase me molho todo.
- Roni?
É o Júlio, aquele filho da puta, com uma caixa de Skoll e uma garrafa de pinga. Ele me abraça forte, e dá um tapa na minha cabeça.
- Cara, vou te dizer! Tu é um santo, bróder, aturar a Ana tanto tempo, fala sério?
- Hum...
Penso na Ana, toda apetitosa, um mulherão,  que adianta? Baita louca, bipolar. Sem querer penso nos peitinhos pequenos e silenciosos da Clara. Nas coxas magrinhas. Ah, velho safado.
- Vem cá, esse é o famoso macaco?
Nessas alturas o Zé está sentado do meu lado, na beira da cama, esfregando os olhos e com cara de poucos amigos. Macacos não gostam de ser acordados no meio da noite, imagino.
- É. O Zé.
- Bom, pensei numas coisas pro nosso negócio, coisa de gênio, cara. Podemos até usar o amigo peludo aí... Ele é treinado?
- Não sei. Acho que não.
O Júlio abre as cervejas, alcança uma garrafa para mim e outra para o Zé, que vira a cara com um beiço.
- Ele prefere pinga, é?
Dou um gole na cerveja quente, e explico.
- Ele não bebe, cara. Só Coca, normal.

Dani Altmayer
Exercício para a oficina de escrita criativa.

(Um homem herda um macaco do pai distante, a mulher o deixa pelo melhor amigo, o pai tem relacionamento com uma menina de quinze anos, o amigo chega para pedir desculpa e dizer que deixou a mulher. Tudo isso acontecendo em 4 dias. Pois.)


domingo, 20 de setembro de 2015

Palavras apenas




Substantivo e verbo.
De que vale um, sem o outro?

Você fala da vida como se ela fosse uma entidade, e não algo que está acontecendo.
Agora, gerúndio, no presente contínuo.
De que vale uma vida, se não for para viver?

Você fala do tempo, sem saber que seu verbo é voar.
De que vale um tempo, um suspiro, os dias,
Se não houver pelo que suspirar?

Você fala do amor como se soubesse o que é,
Amor não é outra coisa senão amar, e amar é outra coisa.
( É mais, muito mais que desejar.)
De que vale o amor, se você não sabe amar?

É feito ter olhos e não poder ver.
Ter livros e não saber ler.
Ganhar um presente e não o abrir.
É ter uma chance, e não arriscar.
Ganhar um milhão, e não viajar.
É fazer a viagem, e não entender.

É feito ter saudade de si mesmo,
É não ser, não estar, em todo lugar.

Você só sabe falar.

Objeto sem o sujeito.
Sujeito sem o verbo.
Palavra sem palavra.
Inerte, inútil. Vazia.
Morto. E morta.

De que vale uma morte, se não for para morrer?

Dani Altmayer

domingo, 13 de setembro de 2015

Afasia




Quando finda o dia,
A solidão se põe.
Na hora que seria sua.

No silêncio da noite,
Recolhe ela toda palavra escrita.
Mal dita.

Não sabe,
Não sonha.
Adivinha.
( Não mais)

Cobre-se com a colcha de retalhos.
Do nada que sobrou,
Asfixia.
E cala.

Ela te ama, também.
(Também?)
Ou só,
Tão só. Mente.

A quem?

Dani Altmayer

domingo, 6 de setembro de 2015

Mais que na hora


Uma das coisa que mais me incomoda no mundo é a hipocrisia, em qualquer relação. Ainda mais a minha.
A tela fica preta, e as luzes do cinema não acendem. A senhora sentada ao meu lado reclama do escuro. Eu não. Eu agradeço a privacidade para enxugar as lágrimas que embaçam meus óculos.
Durante todo o filme, não consegui entender o motivo das gargalhadas aqui e ali, como se fosse uma comédia a que assistíamos. Tinha partes engraçadas, sim, mas mesmo essas só fizeram me arrancar um leve sorriso constrangido. Talvez eles rissem de nevoso, como se faz às vezes, em velórios.
A patroa "gentil", a empregada servil, o marido desencantado, a casa no Morumbi.
O cachorro, o menino maconheiro, a faxineira, não falta nada no filme. Nem a fachada. Muito menos a fachada.
O abismo social brasileiro retratado, filmado e muito bem mostrado. A ambiguidade de todos os lados.
"Que horas ela volta"?
Um frágil e falso equilíbrio, inesperadamente quebrado com a chegada da filha (da empregada).
Eu me percebi, ali. Eu e tantos outros de mim. A tela ficou feito um espelho gigante, a arte é por vezes um espelho cruel. Não gostei de me ver tão feia.
Gostei de ver o outro lado, um lado que nunca foi meu, de verdade. Por mais que eu acreditasse que podia ser.
E gosto de pensar que as coisas estão mudando, nesse sentido. As oportunidades cresceram. Leis foram criadas. Um dia, quem sabe, ninguém precisará ser mais do que ninguém, porque não é menos. Como diz a Jessica no filme: "Eu não me acho melhor, só não sou pior". Exatamente.
Está mais perto o dia em que todos os resquícios desse vergonhoso passado escravagista serão enfim, extirpados e redimidos. Está chegando um tempo em que não se esvaziarão mais as piscinas. Nunca mais.
A Regina Casé está maravilhosa, mesmo. Esquece o Esquenta e vai ver. Um filme que faz rir só se for para não chorar. Que me fez chorar. Que faz pensar. Um baita filme!

Dani Altmayer

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Teia de aranha


"O cara é tudo de bom. Para começar, não é casado. Não é engenheiro, nem piloto de avião. Não fuma, não tem tatuagem de joaninha no pé. Não é casado, já falei isso? Não usa bigode, não acredita em traição, acha ok uma mulher ganhar mais do que ele, gosta de lavar louça, faz curso de violão, adora o Chico e tem uma casa na praia. Não, não é casado, Juliana, tenho certeza. Mora com a mãe. É separado, tem uma filha adolescente.
Conheci naquele site de relacionamento que te falei. Ele foi o terceiro, a cigana disse que três é o meu numero de sorte. Os outros dois sim, eram bem esquisitos. Ele é diferente, a cigana viu casamento, e viagem para a Europa, Paris e Veneza.
O que tem de mais ele morar com a mãe? Acho legal ele cuidar dela, se eu tivesse mãe faria o mesmo. Ele não tem muita paciência, mas está lá, isso que importa. Melhor morar com a mãe do que com a mulher, você sabe.
Te falei que ele ama o Chico? Estava louca para ouvir ele tocando "Eu te amo"no violão, mas parece que ele ainda não tem o violão. Plano de fazer aula, isso ele tem.
Qualquer dia ele me convida para ir à casa da praia, adoro praia no inverno. Não, a casa é da família, tem que esperar um fim de semana livre. No inverno parece que pouca gente vai.
Não é bonito, não. Nem feio. É interessante, cabelo meio comprido, alto, e a barriga está dentro do limite aceitável. Falou que corria, mas quando chamei para me acompanhar na bicicleta, desconversou. Problema no joelho. Na verdade, caminha na Encol às quartas e aos sábados. Tá bom, né? Assiste ao Esporte Espetacular e eu sigo pedalando sozinha, domingo.
Ele é super organizado, acho que tem um TOC de leve, na medida. Organiza camiseta por cor, preto, branco e cinza, é só o que ele usa. Armário impecável. Com as finanças, então, é super controlado. Acha bobagem gastar dinheiro com cinema, se os filmes bons passam a toda hora na TV, é só saber esperar. Teatro é perda de tempo. Jantar fora ele acha chato, um desperdício. Adora a minha comida, elogia um monte. A gente toma vinho, e ele não se importa de limpar tudo depois, mas desenvolveu alergia ao detergente de louça, fica todo embolado. Temos planos de comprar uma máquina, ele está pesquisando os preços. Eu odeio lavar louça.
Ainda não conheci a filha, parece que ela não superou bem a separação. Ele não quer traumatizar a  menina. Faz quatro anos que separou, mas a ex é muito complicada, sabe? Ele fala muito nela, o tempo todo. Também, a mulher aprontou horrores. Louca.Você sabe, Ju, essas coisas de trauma levam tempo. Não tenho pressa.
Eu gosto dele, mesmo, a gente se dá bem, conversa bastante. Ele é um pouco filósofo, cheio de opinião forte. O sexo é bom, meio igual toda vez, mas um igual que é bom, entende? Uma vez por semana, sim. Sábado à noite, depois do super. Durante a semana eu trabalho muito. Ele é autônomo, fica mais folgado, mas também não faz muita questão.
Estou saindo com ele há sete meses e dois dias. Meu recorde, guria. Acho que a cigana estava certa, é ele. Finalmente. Nem tudo é perfeito, nunca é. Ele vê muita TV, canal rural, leilão de boi, acredita? Não gosta de ler, diz que cansa os olhos. E é meio desencanado para se arrumar, pouco vaidoso, não usa perfume. Acha tudo frescura. Mas tem cheiro de sabonete e não é casado. Os óculos, que ele comprou no camelô, estão remendados com esparadrapo. Tudo bem.
Pior é quem remenda com esparadrapo a própria vida."

Eu acho, Marina.

Dani Altmayer ( Exercício sobre "dedo podre"- oficina de escrita criativa)

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Dezoito do oito

Um menino me ensinou, quase tudo o que eu sei.
Era um dezoito de agosto do primeiro ano do novo século, o dia em que fui apresentada a um alemão careca e vermelho, que nasceu de olhos abertos e de parto cesariana ( me perdoem), em uma maternidade na terra da garoa, numa sexta feira ensolarada, às 16 horas da tarde( e nove minutos).
Se eu não acreditava em amor à primeira vista, acreditei naquele instante.
Hoje, esse amor completa 15 anos ( e 40 semanas).
A cada ano, ele está alguns centímetros mais alto. Alguns centímetros mais longe de mim. Alguns centímetros mais perto do seu sonho. De se tornar o homem que um dia vai ser.
E eu, olhando para cima, e olhando para trás, só tenho a a agradecer por esse guri que ganhei de presente, naquele dezoito do oito, e que me enche de admiração e orgulho. Que me coloca de volta no chão, quando teimo em voar ( ele tem esse dom que me falta, a sensatez ), com suas tiradas impagáveis e a sua psicologia, inata. Ele, que é independente, bagunceiro, correto e focado ( para o que quer). Ele, que é a pessoa mais linda e implicante do mundo, que testa minha paciência e meu amor todo dia. (Em geral, a minha paciência perde, e o meu amor ganha. E fica tudo bem, mesmo assim.) Que diz que sou chata toda vez ( e eu sou), que diz que me ama, vez em quando. ( Tão bom de ouvir)
Mas eu sei que ele me ama, sempre.
Nosso amor errado mais certo do mundo, é desse tipo, o meu e o dele.
(É amor à prova do tempo, e do resto.)
Feliz aniversário, JP!
Poderia te desejar tanta coisa, mas só uma me interessa, mesmo: a tua felicidade.
Que você seja autêntico, e feliz de verdade, meu filho. Que não tenha limites para sonhar, e realizar. Do jeito que for, com teus próprios pés, por erros e acertos, pelo caminho que VOCÊ escolher. Porque você vem largando a minha mão, já faz tempo. E tudo certo, é bem assim que tem que ser.
( Prometo tentar largar, aos poucos, o seu pé). Vai lá, meu filho. Cresce!
Eu estarei sempre por perto. Discretamente (Prometo me esforçar).
Mesmo longe, mesmo muito tempo depois.
Te amo, do tamanho do "infinito do espaço".

Mãe










segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Imprevisão



Eu dormia.
Era uma noite sem lua, no início do outono,
Quando você chegou.
Eu inventei um pouco agora, para ficar bonito.
Não sei, sei que era noite, e era outono, e tinha uma janela.
Essas coisas que sempre tem.
Mas da lua eu não sei.
Você entrou pela fresta esquecida da janela.
Fresta também, sempre tem.
(Esquecida, então, como tem.)

Não veio como o vento daquelas terras bem ao sul,
o vento que fazia barulho e assobiava na esquina, 
despenteando cabelos,
levantando as saias das meninas.
Não foi como aquele vento que tem nome, que eu contei para você outro dia.
Desse meu jeito estranho engraçado.
Aquele vento é por demais gelado.
Deixa a gente meio louca, meio poeta.
Meio desembestado.
Meio assim, fora.
Aquele vento canta tão triste,
Tão tristes histórias ele conta.
Parece que chora.
Faz fugir.

Da imensidão.

Você não entrou feito esse vento,
Não veio lamento.
Foi brisa feliz, de um outro lugar.
Veio lá de cima, onde mora o sol e o azul.
Numa madrugada sem lua, sem estrela ( não sei, talvez), sem fazer alarde.
Chegou. Você.
Feito um murmúrio,
Cantarolando baixinho.
Entrou pela fresta estreita, onde só pouca coisa pode passar:
A música. A luz, e o ar.
( Só coisa importante, veja bem: música, luz e ar)
De mansinho, como a moça no sonho.
Diferente, você não se desfez.
Ainda.
Feito brisa morna, sem nome, veio leve, veio forte.

Imenso.

Lá em cima, de onde você veio,
Do sonho da madrugada.
Nuvem anjo passarinho ou mosquito.
Ventinho.
Você entrou pela fresta da noite.
Uma lufada, um bafo quente, mudando a estação.
Atravessou meu quarto escuro, meu inverno, minha dor.
Os limites, da minha janela.
E outros.
Acabou com o frio.
(Que nem começou.)

Intenso.

Com medo de não voltar.
Com medo de ficar.
Com medo que ficasse.
Ficou.
Você é ar. 
Sei lá. Sei lá.
Poesia.
Certo, errado, essas taxas inventam os outros.
Para punir os que sentem.
( Mesmo sem remissão, não me obriguem a pagar.)
Você foi perdoado. Eu também.
Faz calor agora.
E é agosto, no sul do Brasil.

Intenção?

Dani Altmayer

sábado, 15 de agosto de 2015

Papo de consultório




Dona A. tem 83 anos, é viúva há muito tempo e não deve medir mais do que 1,40 m. de altura. Magrinha, pequena e falante, é a sua segunda consulta comigo. Vem para mostrar exames.
Ela queria meu telefone, "gostei tanto da senhora, doutora." E explica da importância de se gostar do médico, tendo em vista os planos que ela tem de ainda viver por muitos e muitos anos. "Meus filhos me querem viva por muito tempo, perderam o pai cedo. E eu gosto de viver, sabe doutora. Faço academia, me cuido, me alimento bem."
A cabeça está ótima, e a vida é boa.
No final da consulta, querendo brincar com ela, eu pergunto:
- E os namorados? ( Imaginando um jogo de bingo, um baile de terceira idade, confesso).
Ela, bem ligeira:
- Eu gosto muito de trepar, doutora! Adoro.
(Assim, bem assim. Juro!)
Diante da minha cara de espanto, conta que tem um namorado da mesma idade que ela, e que é casado, graças a Deus. "Fico só com a parte boa, doutora. "
- E funciona bem, dona A? ( Querendo saber em geral)
Ela, bem feliz ( e específica):
- Comigo ele nunca falhou! 
É, dona A. É bom quebrar tabus. A vida é boa.
E a vida só acaba quando termina.

Dani Altmayer

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Sobre coisa alguma



Eu não sou poeta. mas nasci com essa coisa dentro de mim.
Poesia vem de presente. Para você, poeta, é assim.
Ou é coisa que gente comum toma emprestado, como eu.
Pega como bolsa e dinheiro, para ir ao cinema, ao supermercado.
Pega como paciência, para aguentar o paciente velho mal humorado.
Pega como perfume, afrodisíaco e mentira. Para seduzir um amado.
Poesia a gente pega no ar, gripe, na nuvem, no livro da estante.
Poesia é o que a gente rouba, inteira, do instante.
É tudo que sobra.
Do instante que rouba da gente, o tempo.
Inteiro.
Poesia é só um jeito de olhar diferente.
É tanto.
Nada demais, nem de menos, nem de louco. Todo mundo tem, um pouco.
Poesia é só um jeito.
Um jeito esquisito de ser e de ver e de sentir e (des) viver.
Um brincar com as palavras. Pode nem entender.
Pode rimar, melhor ainda que não.
( Não sei fazer poesia sem rima, criança.).

Por exemplo,
Vaidade, verdade. Rimam e não combinam.
Mudam apenas duas letras, uma sílaba, muda tudo.
Troque a vaidade pela verdade, experimenta.
Vai, coragem! Ver.
Ah, a verdade imensa. Assusta.
Dá volta ao mundo, devolve.
A vaidade mais bonita parece. Fumaça.
Envolve, e não alcança.
Não me alcança.
É só um filtro.
Uma viagem de segundo.

A poesia é só um jeito de dizer.
Uma vaidade da verdade. Um enfeite.
Eu não sou poeta, só tenho essa coisa esquisita aqui dentro.
Que grita.
Que eu poderia agora rimar com peito, mas me recuso.
Aqui dentro é muito maior que o meu peito pequeno, é sangue e veia e suor e lágrima, tanta.
É sal, é rim, é pulso, confusão, é mais embaixo e mais além.
Aqui dentro é tudo tão de verdade, que dói.
E eu tento.

Porque eu não sou poeta, nem nada.
Sou feito criança brincando de ser.
Estou aquém.
Estou aqui, sem saber o que fazer. Perdida.
Fodida.
Eu não finjo, é de verdade a poesia que brota em mim.
Mas não é minha.
Eu roubei, emprestei, te tomei. Copiei.
Talvez por vaidade, que não sou melhor que você.
Sou apenas mais uma impostora, dessas que rima.
Pior tipo!
Invejosa.

É que eu tenho essa coisa por dentro, essa ânsia, que a tua poesia acalma.
Alivia.
É que você... Você sim, poeta.
Poeta sem métrica, da justa pretensão, você é maior.
Nasceu assim, sem rima, sem nexo, tão fácil, tão simples, que parece até vaidade.
E não é.
Fica parecendo não ser de verdade. Mas é.

Dani Altmayer




domingo, 26 de julho de 2015

O nome disso


Que nome tem isso, que não passa junto com todas as outras coisas que com o tempo passam?
Passa o tempo, passam estações, passa quase o ano inteiro. 
Passam novas pessoas, passatempos.
Pálidos reflexos, cafés sem nexo, beijos curtos.
Estranhos sem duração sem importância sem sentido.
Permitidos indevidos.
Sexo desconexo, palavras breves, desconhecidos, passageiros.
Passa tudo, passarelas, passarinhos, beija-flor. Batem asas.
Passa o calor, vem o frio, vento frio. Passa a dor. 
Só isso não passa, isso que nem nome tem, que nem o nome sei.
Isso, que não sei o nome, que sabe tanto de nós, que sabe tudo de mim.
Que nome tem isso, que não é pouco, nem muito, é mais, não é nada, e nem é só uma saudade, porque vai muito além.
É árvore não fruto, causa não consequência, de uma outra coisa ainda maior mais imensa.
Da lágrima cansada, de saudosa intensidade, de um minuto eternidade.
Que nome tem isso, que persiste, presente. Que pressente, consiste, defende e fere?
E lambe e cura, a fenda, a ferida.
Que se esconde, se afasta, aproxima, não desiste?
Não desiste, não passa... Não passa.
Outro quarto de hotel, outro corpo encaixado, outro gozo compartido.
A outra parte de ninguém.
A mesma pele, a mesma pele, o sorriso. O tempo, parado. Detido, derretido.
Em quem?
Que parte de mim, fora eu inteira, é feita dessa essência que se adivinha completa apenas numa outra frequência? 
Que parte de nós é essa insistência, de não deixar passar isso que não tem nome, e que, eu sei, é maior, muito maior do que qualquer coisa útil, e que por isso mesmo é a coisa mais inútil que você pode querer, e é bonita e triste, como só as coisas muito inúteis sabem ser.
Como só aquilo que você deseja e que não pode ter.
Que nome tem isso, a presença constante dessa ausência, desse nada, do tudo que não podemos viver?
Que nome isso tem?
Nomes nunca nos importaram, talvez sim. Não importam, agora.
Se fomos condenados por saber e não saber. Presos.
(Por casa ou muro ou grade ou gaiola. Por jaula, ou escolha).
Proibidos nos tornamos. Proibidos estamos, de estar.
Impedidos de passar. Impedidos de esquecer.


Dani Altmayer

domingo, 12 de julho de 2015

Carta para Isabella ( let it go)


Era uma vez uma menina cor de rosa que não gostava de usar calça, só saia "que rodava".
Era uma vez uma princesa pequenina, uma pequena bailarina, uma teimosa dançarina.
Era uma vez uma guria artista, de batom na boca e sorriso nos olhos, que amava uma história inventada.
Era uma vez uma criança muito amada, que fingia sujar o vestido só pelo gosto de usar roupa nova.
Era uma vez uma inglesinha que falava bem português, e cantava misturado, a música que fala de liberdade e de amor, de ser quem se é e de deixar ir o que não for.
Era uma vez uma artista princesa menina, cor de rosa e bailarina.

Hoje essa guriazinha faz três anos de idade. Uma mocinha compenetrada, que aprecia uma boa conversa, e gosta demais de uma festa.
Isabella, linda como a ilha onde mora, doce como um sorvete de chocolate, que adora.

Estava pensando no que te escrever dessa vez, Bella. Aí fui ouvir a música que é a trilha sonora da tua breve vida, para me inspirar. Resolvi então, dar uns conselhos de tia. Eu sei que conselho é coisa de gente chata, e você nem pediu. Mas vou falar mesmo assim. Porque te amo muito, o que é sempre uma boa desculpa. ( E uma grande verdade)

- Você não precisa ser a menina boazinha que "eles" querem que você seja. Você deve ser sempre quem você é, por dentro. Por dentro é bem mais importante do que por fora. Porque só por dentro é de verdade, o resto é cenário e fantasia. Muda a todo instante.
- O mundo pode ser um lugar frio, por vezes cruel. Cheio de tempestades de neve, e tal. Mas se a tua casa de dentro tem calor, tudo bem. Você sempre vai ter para onde voltar. E o frio não vai mesmo te incomodar.
- Você vai ter muitos medos, ainda. É normal, a gente sempre tem. Para o resto da vida. Mas não deixa eles te controlarem, meu bem, quase nunca. Toma distância, faz as tuas escolhas baseadas no amor, não no medo. Sempre, ou na maior parte das vezes. (Porque sempre é uma palavra que não existe, assim como nunca). E tenha bastante coragem, para se bancar, e mudar, quantas vezes seja preciso. Em frente, enfrente. 
- Ultrapassa tudo o que te limita, tudo o que tenta te impedir de ser, ou viver. Tipo a opinião dos outros. Os outros sempre tem opinião, mas nem sempre eles tem razão. Segue teu coração, e a tua própria razão. Nunca vai dar errado ouvir a intuição. Anda com teus próprios sapatos, não pede emprestado. 
- Você ama o rosa, mas sabe que tudo bem gostar de azul. Você agora sabe que cada um é de um jeito, ninguém é perfeito, nem mesmo você. E nem precisa ser, não vai depois esquecer. Você é única, especial. (Como todo mundo é ). Igual ou diferente, é a tua vontade, o que você escolher.
- Mas, por favor, escolhe sempre a liberdade. Em todos os níveis, de todas as formas. Não tem coisa melhor no mundo do que "livre estar." Livre para amar quem preferir, para dançar mesmo sem saber, para cantar só porquê. Para ter defeito, e não ter. Para ser, e não parecer. (Parecer não tem nada a ver.) Seja livre para não olhar para trás, e se arrepender. Aliás, nunca se arrependa. É desse jeito que a gente aprende, errando.( Por toda a vida). Pedindo perdão, se perdoando. Não tem outro jeito, não. Às vezes a gente faz a maior confusão, tem até vontade de chorar. E tudo bem, chorar. Faz parte, também. Afinal, emociona, viver.
- O que tiver que ser, será. Não tenta controlar, é inútil. Respira. Pouca coisa permanece, e quase tudo muda, com o tempo. Menos o que é importante, isso fica. Lembranças, memórias, algumas saudades. Sorrisos e afetos imensos, esses jamais saem de cena. Nem perdem valor. O resto é um vai e vem, inconstante. Incessante, chegar e partir.
Deixa vir, deixa ir. Deixa ir... meu amor...
Deixa ir, porque a vida é feita todinha de coisas assim, que vão e que vem.
Como flocos de neve que caem ao chão.
Como um balé esquisito, de bolhas de sabão.
Uma gangorra que sobe, depois desce, depois sobe. De novo, e de novo, eternamente.
Feito um balanço bom, que (nunca) tem fim.

Happy birthday, sweetie!
Seja feliz...quase sempre. Mais sempre do que nunca.
Com amor,  da tia Dani ( tiDani)


https://youtu.be/L0MK7qz13bU