quinta-feira, 29 de maio de 2014

A Esposa



Os gemidos e a música vinham da TV, ligada em um daqueles filmes pornográficos monótonos, onde as ações se repetem eternamente. A loira na tela deve ter uns dois litros de silicone em cada seio.
Carlos esfrega os olhos, tentando lembrar de onde está. A luz apagada não ajuda. Tem a cabeça pesada, lembra de ter tomado uma ou duas garrafas de espumante. O quarto cheira a cigarro e perfume doce. Ainda é noite, olha o celular. Quatro horas da manhã. Está em um motel, é isso. Com a amante, Lúcia.
Não era para ter dormido. Precisa ir para casa, Fernanda deve estar furiosa. Pensa em como vai explicar. A hora, o perfume, o cigarro. Fernanda não fuma. Nem ele.
Levanta da cama, e começa a se vestir, no escuro.
- Carlos, o que você está fazendo?
- Temos que ir, Lúcia, a Fer...
Então ele lembra. Ele e a Fernanda se separaram, quando ela descobriu da Lúcia. Lúcia era sua colega, e amante. Há dois anos. Agora era sua esposa. Há seis meses.
- Acho que bebi demais, Lu. Vamos para casa?
- Carlos, você bebeu demais. Nem o filme ajudou.
- Vamos embora, então. Não gosto do cheiro deste quarto, do travesseiro, este lençol que escorrega. Cetim vermelho, que ideia! Não consigo dormir.
- Engraçado, porque dormir é só o que você fez, desde que chegou aqui. Me deixou na mão, Carlos. De novo.
Ele prometera uma noite especial, como as de antes. Como quando faziam de tudo. Várias vezes. Com direito a vela pefumada, lingerie rendada, cinta liga e aquelas frescuras todas.
Desde que casara com Lúcia, Carlos já não conseguia o mesmo desempenho. E ela se queixava.
Mas também, Lúcia reclama demais. Fuma demais. Bebe demais.
Tenta lembrar se Fernanda era assim, cobradora, exigente, resmungona. Não era, não devia ser. Se era, ele esquecera. Mas não era. Fernanda era um doce. E nem gostava tanto de sexo. Sem iniciativa, era só quando ele queria. Fazia o básico. No casamento, o básico está de bom tamanho. Papai mamãe, uma ou outra coisinha. Mais que bom.
Mas para esta mulher não. Lúcia nunca está satisfeita. Gosta de variar. Mimada, caprichosa, filhinha de papai.
Até era divertido, no início. Todas aquelas invencionices. Ele achava sexy.
- Hum...lembra Carlos, daquela vez que você me amarrou na cama com echarpes de seda? E a gente...
- Lúcia, o que aconteceu com as cintas liga e as lingeries de renda preta? Talvez ajudassem.
- Você sabe, Carlos, eu já te falei. Estou com alergia, e a gineco me recomendou usar estas calcinhas brancas, lisinhas, de algodão.
- Ah...é. É, esqueci. Vai fumar, às cinco da manhã?  Credo.Vai na janela, pelo menos.
- É o que me resta, né Carlos. Fumar. Por que você...
- Eu estou com DOR DE CABEÇA.
- Novidade.
- Aliás, na passada, desliga a porra da TV, faz favor. Está me dando nos nervos esta gritaria toda.

Dani Altmayer

Exercício para a Oficina de Escrita Criativa com Pedro Gonzaga, módulo III.
"Um homem vai para o motel com sua amante e acorda com a esposa."



terça-feira, 27 de maio de 2014

Viagem



Solidão é um caracol que viaja pela parede.
Solidão é lua cheia que não reflete no mar.
Solidão é pescador sem rede.
Solidão é um excesso de dar.
Solidão é um homem de terno puído.
Solidão é ter te perdido.
Solidão é a unha vermelha descascada da mulher que faz ponto na esquina.
Solidão é um menino sem bola.
Um menino e a bola, sem time.
Solidão é apenas uma menina.
E um laço na trança.
Solidão é uma lágrima que rola. 
Da solidão do véu.
Azul cor de rosa.
É o velho balanço de vime.
Há tempos abandonado.
Solidão é uma escada para o andar de cima.
Escada de caracol que viaja pela parede do céu.
E sobe de lado.
Solidão é carimbo de devolvido.
Nítido, incontestável, definitivo.
Solidão é uma forte, insuportável ... dor de olvido.

Dani Altmayer 

domingo, 25 de maio de 2014

Fica?


Não conhecemos o (dis)sabor de uma meia estação.
Fomos inverno, e verão.
Tudo e nada.
Queimamos a língua no calor. Secamos a saliva, esgotamos. Depois congelamos o amor. Ou o que era.
Já está fazendo frio, agora. De novo.
Tem dias que não sei o que fazer com o que sinto por você. Uns dias são mais complicados do que outros. À noite, é sempre mais. Mais difícil de acomodar.
Já tentei deixar na sala, no sofá. Na cozinha, com o cachorro. "Fica aí", eu falo. Fica quietinho, dorme, que a noite é para dormir. Tranco no banheiro. Guardo dentro de um livro, ou dois. Dois livros. Guardo em dois livros. Na minha cabeceira.
Embaixo da cama tem um colchão, para os hóspedes. "Fica aí." Não é muito confortável, e também não serve. Não comporta. Já falei que faz frio?
Acontece que sentimento não tem limite, nem educação. Não obedece.
Não respeita parede, porta, barreira, tempo. Atravessa.
Eu falo sempre: "fica aí." Mas não adianta, ele não foi bem treinado. Não sabe fingir de morto.
Vem atormentar, insiste em latir, quer deitar no meu peito.
Então, de vez em quando, eu me entrego. E deixo dormir na cama, comigo. Agarrado no meu travesseiro.
São as noites de sonho.
É sempre quando as noites insones adormecem de cansaço que ele dorme ao meu lado.
Quando já não sei o que fazer, eu me rendo. E me aqueço no abraço.
É isso que faço. Quando não sei mais o que fazer.
Isso, ou então escrevo. Mesmo sabendo que você não gosta, que talvez não leia, te escrevo um poema.
Porque isso, isso eu sei fazer.
E não mando, perdi endereço.
Escrevo mesmo é para me descongelar. Porque não sei mais onde botar.
O verão acabou, o outono não vi. Faz frio aqui.
Logo já é inverno. De novo.
E logo ele também vai passar. Não vai ficar.
Nada fica. Quase nada.
Como os dias em que não sei.
"Fica aí".
Só eu obedeço, e deito, e me enrolo.
E só eu fico. Aqui.




Dani Altmayer

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Um Bom Momento




A vida é uma sucessão de domingos, com talvez uns poucos sábados, e uma sextas, no meio. Com sorte. Lera isso em algum lugar, ou talvez tivesse inventado. Mas era uma boa frase, ela achava.
Tiveram muitas crises, e uma vez quase se separaram, mesmo. Foi quando ela se apaixonou pelo Carlos, seu instrutor de yoga.
Mas eles tinham acabado de quitar o apartamento, e a cozinha nova nem tinha chegado. A filha mais velha ia ter bebê, e as passagens para Portugal já estavam compradas. Dava para esperar mais um pouco. Já tinham esperado o filho se formar, a mãe dele morrer, a mais nova, que ia casar. Então, como veio, se foi.
Há alguns anos, os dois dormem em quartos separados, desde que a última filha saiu de casa.
Acontece que ela nunca gostara de ver televisão à noite, e ele tinha insônia. Havia também o problema dos roncos, os dele se ouvia a portas fechadas, dos dela só ele reclamava. Sabe lá se existiam, de verdade. Quem haveria de o contestar?
Não foi uma decisão, foi quase por acaso. Começou com ele querendo ver algum programa qualquer, depois foi levando uma ou outra coisa, e acabou montando um home theater no quarto de hóspedes. Que agora era o dele.
Ela pensava nisso, enquanto arrumava seu quarto. Ia ter que meditar em outro lugar. Precisara tirar seus livros e CDs da estante, para dar lugar à enorme TV, que carregara sozinha. Joaquim não podia mais pegar peso, desde a ponte de safena. Por sorte, e graças à musculação que fazia três vezes por semana, ela ainda tinha a força de uma jovem de quarenta anos, apesar de estar um pouco acima do peso. Aliás, em que instante da vida a gente começa a achar que juventude é ter quarenta anos?
Os filhos estavam chegando para o Natal, os três. Fazia muito tempo que não vinham todos. Pensou no netinho português, Gabriel, que estava com quase dez anos, e sentiu seu coração apertar. Estava crescendo muito rápido. Muito longe.
- Joaquim, vem ajeitar estes fios, que disso eu não entendo nada.
O marido ia se mudar para o quarto dela, por duas semanas. Tinham que acomodar todo mundo. Ele poderia até dormir na sala, com o filho, mas as crianças iam estranhar, e fazer perguntas. Melhor se ajeitarem por ali.
- Sofia, você sabe onde está a extensão?
Joaquim observa as mudanças no quarto, e comenta que ficou bonito. Ela não acha. Trocara a colcha da sua cama, por uma mais neutra, em tons de bege e marrom. Achou que o quarto parecia escuro, assim. Triste. A dela mesmo, era cor de rosa, com flores lilás e amarelas. Fora uma das primeiras coisas que fizera quando ele se mudara, comprara uma colcha nova. E muitas almofadas. Sempre sonhara com um quarto de menina, bem feminino. Cresceu dormindo com o irmão, e saiu de casa apenas para casar, aos dezoito anos. Com Joaquim, doze anos mais velho.
- Você vai comigo no aeroporto, Joaquim?- Ele não dirigia mais, embora não estivesse proibido. Também quase não saia de casa.
- Lógico, Sofia, que pergunta! Como foi o filme ontem?
- Bom.
- Ótimo.
Ela fora ao cinema com a Sílvia, às vezes ia sozinha. Joaquim não gostava de ir ao cinema, nem de ver filmes, aliás. Muito menos os franceses. Fora o filme que a fizera lembrar do Carlos, há muito não pensava nele. Era sobre uma mulher casada, aposentada, que se apaixonava por um homem bem mais jovem. No fim, a coisa não funcionava e ela terminava com o marido mesmo.
Ah, Carlos... Carlos e suas mãos fortes, macias. Ele não era mais novo do que ela, não, tinham a mesma idade. Dividiam as mesmas paixões. Tão diferente do Joaquim. O que fora feito dele?
Estremece e sacode a cabeça para afastar o pensamento, bobagem, depois de tanto tempo.
- Vou tomar banho, enquanto você acaba aí.
A água quente dissolve a tensão. Não quer se atrasar, mas demora mais do que pretendia.
Ao sair, Joaquim já terminou de instalar a TV, que está ligada em algum programa de futebol. Uma mesa redonda. Ele dorme, vestido e meio sentado, na cama dela. Ronca feito um urso.
Sofia faz uma anotação mental. Precisa passar na farmácia do aeroporto, e pegar os remédios do Joaquim. Sem falta. E também, comprar uns tampões auditivos, ali ela sabe que tem.
- Que dia da semana é hoje, Sofia? - pergunta Joaquim, acordando do cochilo.
- Sábado. Hoje é um sábado.

Dani Altmayer

Execício para Oficina de Escrita Criativa, módulo III, com Pedro Gonzaga










quarta-feira, 21 de maio de 2014

Sobre Quem?


Nem tudo o que escrevo é real. Mas é tudo de verdade.
São muitas as histórias. E são todas minhas. Todinhas. Vividas ou não.
As minhas favoritas são as histórias de amor.
De todos os tipos.
O bom de escrever é isso: poder viver todas estas vidas. Experimentar ser homem, mulher, criança.
Ser bicho, e até árvore.
Imaginar, inventar, transbordar.
Por vezes, apenas contar.
Apaixonar-se mil vezes por dia. Morrer outras tantas. Renascer, sempre.
Há quem se encontre, aqui e ali. Num personagem ou noutro. Numa história ou outra.
Há quem se desencontre. E tudo bem. Acontece.
Há quem me encontre, e há quem me perca também.
Mas não é sobre mim.
Eu nem sempre estou por aqui. Vai depender de um outro querer.
Eu não sou interessante, as histórias é que são, ou não.
E eu sou todas elas, por isso não sou ninguém.
Eu não existo.
Definitivamente, não é sobre mim.
Eu sou insignificante.
Mas pode ser sobre você. Aí pode ser.
É só escolher, o que você deseja, ou quer.
Porque você, sim. Você é importante.




Dani Altmayer






domingo, 18 de maio de 2014

Na Vida

                                                   
                                                 
                    A gente se quebra, muitas vezes.


sexta-feira, 16 de maio de 2014

A Última


Por quê? Por quê?

As coisas mais obvias são as mais difíceis de enxergar.
As mais simples, as mais complicadas de entender.

Uma gota basta para transbordar um copo.
Não é uma gota que enche o copo, veja bem.
São várias, muitas, centenas delas. Mas apenas uma o fará transbordar.
Basta uma. E ela não é a culpada, coitada.
Ela foi apenas isso, mais uma.  Aconteceu.
Mas foi "a"uma.
A que tinha que ser.

Não existe um ponto, é sempre uma linha. 
Contínua. Mutante. Feita de vários pontos.
Eles vão se somando.
Um, depois do outro, depois do outro e do outro.
Eu sei, eu sei. É difícil de acreditar.

A gente queria muito que fosse um ponto. A gente sempre quer. É sempre mais fácil culpar um ponto. Ou uma gota.
Sinto muito.
Não dá para fixar. Nunca dá.

Não foi isso, ou aquilo. Ou só isso, ou só aquilo.
Para compreender, para saber o porquê, tem que olhar o quadro.
Como "um todo."
De longe, e de perto.
O filme, desde os créditos iniciais.
Bem do começo, até a gota final.
É sempre o conjunto da obra.
E é sempre o copo, que já estava muito cheio.
Cheio demais.

Dani Altmayer




quinta-feira, 15 de maio de 2014

Sentimentos



A luz tênue de um abajur.
A voz rouca da Nina Simone, interpretando Feelings.
" ...Trying to forget my feelings of love..."
Uma caneca de chá de gengibre, morno.
Uma chuva fria na janela, apagando a lua. 
"...Feel you again in my arms..."
Uma sensação de calor no peito.
"...Feelings like I`ve never lost you ".
Saudade também tem lado bom.
Quando não dói, preenche.



http://youtu.be/mH5ZE3N8cxU



Dani Altmayer


quarta-feira, 14 de maio de 2014

A Vendedora

Daiane tem 23 anos. Loira, bem arrumada, unhas pintadas de azul.
Chega para fazer um exame admissional. Pergunto onde trabalhava antes, ela responde: "na funerária X." Função? "Vendedora."
Vendia planos de funeral.
Ficou nove meses na empresa. Conta que só uma vez não bateu a meta de vendas.
A meta era atingir vinte planos por mês, no mínimo. Fala que, de cada cem, cento e cinquenta ligações, vendia um. Quando realizava a venda, o primeiro pagamento devia ser feito no ato. Mandava o motoboy imediatamente para a casa do comprador. "Tinha que ser na hora, doutora. Se esperasse um dia, o cliente desistia."
Quanto custa este plano? Cinquenta reais por mês, não é caro. E a carência é de um semestre. Depois disso, já pode morrer. Com cobertura total.
Nove meses, vendendo vela e caixão. Gaveta ou cremação.
Começou a ter pesadelos. Outro dia quase desmaiou, achou que estava tendo um derrame, o corpo todo formigando. Era stress. Psicológico.
"Sou muito nova, doutora, para falar de morte o dia inteiro. Pedi demissão."
Questiono sobre a nova função. Ela abre um sorriso enorme, e declara, orgulhosa:
"Agora vou trabalhar numa loja, no shopping. Vender lençóis de algodão egípcio. São lindos. Aparece por lá."
Deixa um cartão.
E um perfume gostoso no ar.

Dani Altmayer



segunda-feira, 12 de maio de 2014

Tatuagem



Os olhos vendados não percebem.
A lágrima, que escorre solitária.
Do mendigo, que mata sua sede na água salgada.
Que sacia sua fome num prato sem fundo.
Que assopra o beijo como a uma vela.
Um beijo infinito, de chama infinita. No calor, infinito.
A cera que pinga, derrama e queima.
E se acaba.
A lágrima.
Misto de dor, e prazer.
Tudo é assim. É sempre assim.
Tudo, e nada.
Doce e amargo.
A ferro e fogo.
Marcada.
É tarde. É noite.
E arde.
A memoria da pele... não deixa esquecer.

Dani Altmayer

terça-feira, 6 de maio de 2014

Um Barco Chamado Solidão

        

Ela incomoda ( Os Outros)
Parte Um- Os Amigos

Entra num site. No tinder. Tem que sair mais. Tem que investir. Dinheiro? Não, né? Tempo, disposição. Energia.
Quem sabe uma agência de relacionamento. Agência de re. la. cio. na. men.to! ( de graça?)
Conheço alguém. Conheço alguém que conhece alguém. Conheço alguém que conhece alguém que conhece alguém. 
Ah, dá uma chance. O que que tem? Todo mundo arrota depois de comer. Normal. Nem todo mundo sabe quem foi Gabriel Garcia Marques. Nem todo mundo sabe o que é um livro. Serve revista, jornal, HQ? Ninguém é perfeito, afinal. Deixa de ser exigente. Ao menos sabe ler.

                (corta) 
    
      
O(s) Salvador (es)
Parte Dois - Ele (s) 

Olha, eu não gosto do que você escreve. Não gosto da sua família.  Não gosto de ir ao cinema. Sua mania de usar camiseta rasgada para dormir me incomoda. O seu cachorro é peludo. Mas eu gosto de você. Juro. Eu quero casar com você. ( Desde que você pare de escrever, lógico. E de usar camiseta). Eu acho que te amo. Não, eu tenho certeza. Eu te amo. Acho.
Você está sozinha, deve estar carente. Precisando... bem,você sabe. Eu sou o cara. Agora vai, deixa eu entrar, quero dizer, invadir. Você, a sua casa. Fazer um sexo animal. Deixa eu me instalar, depois traz a cerveja. Não tem mais canais de esporte nesta TV?
Eu não estou fazendo nada, você também não. Ninguém tá. É o que temos para o momento. Não pensa que tem coisa muito melhor por aí. Mais do mesmo, sempre. Seis por meia dúzia. Ruim comigo, pior sem mim.
A gente briga mas a gente se ama. Só sofre quem tá vivo.
Você precisa de um homem na sua vida, um homem de verdade. Pra chamar de seu.Que cuide de você. Um homem como eu. Ah, mês que vem eu conserto o chuveiro e a janela. Tá pronta a janta?
            
                   ( corta)
     
   Eu, hein?
   Parte Três- Ela

De novo, sexta à noite enfiada neste sofá vendo filme belga?  De camiseta furada e pantufa?
Enrolada num cobertor? Comendo pipoca?
Não acredito, você passou o fim de semana só lendo?
Pedalou até onde? Tudo isso?
Não saiu de casa todo o domingo? Ficou escrevendo e ouvindo música?
Não falou com ninguém?
Ah, foi na academia. Acordou cedo? Dormiu tarde?
Foi ao cinema sozinha? 
Jantou sanduíche e vinho?
So. zi. nha?


           (corta para um grito. Ou um suspiro. Depende, se foi na yoga ou não)

Parte Quatro- Eu, interrompendo.
Só um instante, por favor. 

Obrigada aos príncipes encantados e seus cavalos brancos, por sua participação especial.
Estão dispensados.
Assim como os ogros e os sapos.
As boas intenções e a sua opinião.
Os outros podem prosseguir. 
Mas antes, um aviso: 
Pode não parecer. Mas é, sim. Opcional. Op. Ci. O. Nal.

           ( a ser continuado)

Obs: Aqui, qualquer semelhança é mera coincidência. Sempre.

Dani Altmayer



quinta-feira, 1 de maio de 2014

Anas e Tantas Outras

"Doutora, é que teve uma briga ontem, eu e o meu marido. E ele me empurrou na parede. Dói tudo, os rins, tudo."
Imagino que doa, muito. Tudo. 

Vou chamar esta moça de Ana. Mas poderia ser Maria, Lúcia, Cláudia, Rita. Poderia ser qualquer uma, e ter um nome qualquer. 

Ana tem 21 anos, e está casada com este homem há quase 7 anos. Tem com ele uma filha de cinco.

Pergunto se ele costuma bater nela, e se faz isso há muito tempo. Ela responde que no começo não, ele não batia. Mas que sim, sempre a agrediu, com palavras. "Ele me ofende muito, diz coisas horríveis." Só há uns dois anos ele começou a bater, de verdade, "nunca na cara, para ninguém perceber".
E quebra tudo em casa, já quebrou o celular dela, a TV nova, até o microondas.
Mas não na frente da filha, isso não, graças a Deus. Agora cismou que ela tem um caso com o gerente do supermercado onde trabalha, porque vai ser promovida. Uma vadia, por isso chegou tarde ontem. Este foi o motivo da briga.

Pergunto porque ela não denuncia, Maria da Penha, etc... e ela me responde: "e adianta, doutora? É até pior. Me diz, adianta?". Eu não tenho o que responder. Fico olhando para ela, e ela fala, e fala, fala muito. Não chora, está conformada. Conta que ele já disse que se ela fizer alguma coisa, qualquer coisa, ele a mata. Que não se importa de apodrecer na cadeia.
Ela vai sair da consulta, depois de pegar a receita dos analgésicos, e pedir demissão. "Não tem outro jeito, doutora, ele exigiu. Falou que se eu não pedir, ele vai lá no mercado e quebra tudo, quebra a cara do gerente."
Pergunto a Ana se não tem apoio na família. Ela diz, "tem a minha mãe, ela fala para eu denunciar ele. Mas e daí?  Como ela ia conseguir me proteger?" Finaliza, com um suspiro: "Pior é que eu gosto dele. mas ele não acredita em mim. "

Ela parte e me deixa com dor, também. Nos rins.


Ela vai embora e me deixa as mãos vazias da impotência e da descrença.
No indivíduo, e no sistema.


Ela sai sozinha. Mas não está sozinha. E isso não faz a menor diferença para ela. Em breve, pode se juntar às outras muitas, e se tornar mais um número de estatística. 

Mais uma, entre tantas. Menos uma.

Ana, Maria, Lúcia, Cláudia, Rita, Fernanda, Daniela. Você. Eu.

Dani Altmayer