sábado, 31 de outubro de 2020

Dia das bruxas






As mulheres evocam poderes
também elas sabem que bruxas
não existem só o medo
que eles nos têm 

na véspera de todos os santos
asas de morcego estarão proibidas
por motivos óbvios qualquer gozo
também

acendo uma vela porque não creio
nas poções mágicas mentiras líquidas incensos falsos
que eles insistem em nos tomar

dia dois
enterraremos apenas os mortos
os vivos já morreram faz tempo
nesta terra chamada pátria

Brasil

domingo, 25 de outubro de 2020

Há uma angústia dançando no ar








Todos os dias à tal hora em ponto

silenciosa ela me abraça por trás
segura nas mãos meus seios
me aperta até eu quase sufocar

o nó na garganta arranha a tinta
os azulejos os olhos marejam
com saudades dum certo mar
o sal das lágrimas que engulo
encheria um pote até aqui de mágoa

qualquer desatenção é um nome qualquer destes tempos

quando o cansaço dos dias é maior
quando o som surdo vence a barreira
dos silêncios
quando desmaiam as esperanças enfim

são estas vozes que restam as músicas que se confundem e
é sempre este tolo coração à espera
de uma gota d'água que
não vem porque

aprendi a me virar sozinha
e meu grito ecoa
nas fronhas do meu travesseiro

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Lista


 

         Lista

Mudar a roupa da alma
trocar a calma da cama
regar as flores de plástico
roubar do poeta um verso
dobrar o lençol de elástico
driblar o eterno cansaço
fazer faxina nas dores
limpar os cantos escusos
espanar a poeira das fotos
dia primeiro soprar a canela
temperar o peito de frango
salgar a sede na saliva
vigiar as vagens na panela
salpicar no azeite de oliva
ferver tudo em fogo manso
esquecer de fechar as janelas
deixar entreaberta a porta
da casa recém descoberta
receber os vivos os ventos
pássaros passos notícias
as cartas carícias escritas
dos amores sobreviventes
às intempéries e ao tempo.





















domingo, 18 de outubro de 2020

Sonhando acordada

 Outra tarde muito azul

é feriado na cidade é
findo o longo inverno
estação dos silêncios

ao longe uma criança ri
os pássaros cantam o dia
o vento toca uma harpa
no alumínio das cortinas
da sala

são os sons da primavera
crianças, pássaros, ventos
as noites já tardam e o sol
se põe em tintas mais fortes
definitivas

logo será verão e seus cheiros
seus sabores seus devaneios
o verão sabe a sal e areia
maresias e suores secretos
o mar se quebrando lento
o tempo ambíguo à beira

os corpos besuntados de óleo
de coco águas sorvetes
a preguiça quentinha na rede
a tua sombra escaldante
colada lambuzada
na minha








Dezoito de outubro


 Eu já contei uma história de amor sobre ela, há uns anos. Fazia tempo que não aparecia, olho o prontuário. Teve um câncer e um infarto no ano passado. É diabética com um controle ruim. Vejo que está tomando remédio para depressão. 

Entra na sala abatida, bem mais magra. Fala do filho, de um neto a caminho, mas conta sem brilho. Fala de uma dor na coluna. Tem a desesperança estampada no olhar, nos ombros caídos. É uma mulher bonita. A gente conversa por um tempo, faço o encaminhamento para a fisioterapia.
Uma semana depois, ela volta. Quer tirar uma dúvida, porque confia muito em mim.(sic)
No fim da consulta, ela me diz, com lágrimas nos olhos:
- Sabe que na semana passada saí chorando daqui? De felicidade, doutora, de te encontrar de novo, de conversar contigo. Tu me faz muito bem.
A fala dela me toca e me deixa contente comigo mesma.
Porque para mim, antes de tudo, a medicina é sobre isso.
É escuta e é amparo.
"Curar algumas vezes, aliviar quase sempre, consolar sempre."

Num ano de tantos desafios, meus parabéns a todos os que dividem comigo o juramento de Hipócrates.
Que possamos ser não heróis, mas humanos a serviço de seres humanos.
Que sejamos o melhor que podemos ser.
Obrigada!

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

O cata-vento



 




As paredes mofadas do prédio antigo

destes com floreiras no parapeito
onde crescem desordenadas folhagens
onde alguém plantou um cata-vento
destes que se vendem nos parques
junto com algodão doce e pipoca
destes de papel laminado
o catavento

é azul como aquelas flores desbotadas
de plástico que enfeiam as lápides
mas o brinquedo enterrado
num canteiro está vivo
é a insistência

que tem a infância de retornar
nas coisas desimportantes
já quase fora de moda
como bambolês petecas ioiôs
bilboquês bonecas de pano
e maçãs
do amor





sábado, 10 de outubro de 2020

Despedidas


 



Ele me disse obrigado por tudo, amor.
Veio para me dar um abraço, está de partida.
Eu, que não sou o amor dele há tantos anos, ele que não é meu amor há muito tempo.
Mas um dia fomos o amor um do outro. Ou pensamos que éramos.
Deste amor quase por engano nasceu um AMOR maior.
E é por ele que compartilhamos, abraçamos e entrelaçamos nossas vidas para sempre.
Por este AMOR maiúsculo que torna tudo o mais pequeno, sobrevive a palavra com que agora ele se despede, e fico aqui, neste lugar, ao mesmo tempo feliz e triste.
Porque o fim foi lá atrás, há muitos anos. Mas nunca termina.
Porque amar é verbo, e pode ser conjugado de tantos jeitos, e amor é mesmo o que fica, depois de tudo.
Transformação.
No meio de tantos erros, alguma coisa a gente fez muito certo.


terça-feira, 6 de outubro de 2020

Em Porto Alegre




 Ipês floridos roxos amarelos

 pródomos coloridos

da invencível primavera 

são prefácio perfeito
indolente preâmbulo
à estação de ventos e flores
aromas de pólen e rinites
mas este ano

entre pétalas sem páginas
nem versos
nem letras
nem tendas
nem lama
nas enxurradas de novembro
as preliminares de outubro
esta chuva patética
este ano

não haverá feira na praça
apenas

os jacarandás silentes
os ambulantes
os jogadores de gamão e
as pombas prenhas
de sempre

domingo, 4 de outubro de 2020

Sem título

 


procuro sempre nos lugares errados
penso nas cem formas de terminar um amor penso em três
nenhuma parece mais triste ou melhor
comparo o amor a balões
-o poema é onde as metáforas moram
e o amor é o álibi da poesia-
às vezes, o fim do amor é um balão que escapa lento até se perder no azul
ou estoura num susto ruidoso
espantando a gata
noutras tantas quiçá maioria
o fim é somente o balão
esquecido da festa
que murcha aos poucos
por trás da poltrona preferida

ninguém vê
nem sente falta

o amor definha sozinho na distração

sábado, 3 de outubro de 2020

Até o próximo


Até o próximo

Há sempre uma dor embutida
em todo prazer

acho que foi tu quem primeiro
me ensinou sobre despedidas
chego a teu fim relutante e faminta

ávida de pertencimento meus olhos
te devoram os dedos percorrem
teu corpo sublinhando
as páginas invadindo
teu mundo descortinando
capítulos

encerro esta história comovida
à última letra resto
sozinha e perplexa
por um tempo ainda tua voz
ecoando na minha

nunca fui de alguém como tua
jamais serás de ninguém, como meu
mas, como dizem por aí ...
só um livro cura o outro