quinta-feira, 25 de maio de 2017

Umidade



O destino era surpresa.
No carro, quase dava para tocar o silêncio ofegante de palavras suspensas que, densas, pairavam entre eles como suspiros.
Nenhuma palavra se fazia necessária ainda. Eles sabiam que estavam ali à espreita; mais tarde elas viriam com a força que tem as palavras de destituir o momento perfeito onde antes era tudo fome e respiração.
Quase dava para tocar o silêncio de sua confusão, seus olhares febris, suas bocas sedentas. O tremor das mãos vorazes, os vidros embaçados de suor, a densidade do ar que faltava.
Alheios ao almoço improvisado à beira do lago, cinzento como o céu desse outono sem frio. Apesar da brisa, fazia calor à beira do rio.
Num dia que poderia ser como qualquer outro: nublado, sem horizonte, quase banal.
Mas o destino é sempre surpresa.
Como um vento que súbito muda de direção, a mágica da vida se (re)desenhava ali. Na densidade daquele úmido instante.
Feito um presente em preto e branco, o contorno de um enorme sorriso- revelado.
Devolvendo a paleta de cores- vibrantes-ao cinza dos dias que se seguiriam às palavras.
Que foram ditas, então. Com todo o cuidado que mereciam.

Dani Altmayer

domingo, 14 de maio de 2017

Moral da história




- Qual a moral de ver um filme pra ficar chorando? Sobre o que era esse filme?
Essa é a pergunta que o JP me faz quando termino de assistir Manchester à beira mar e o chamo para um abraço apertado.
Um filme duro, sobre luto e vida que segue. Tem muita dor nesse filme, muita perda. Mas o que me tocou não foi tanto a tragédia em si, e sim a forma como aqueles homens lidam com o que acontece.
É sobre um mundo masculino e suas emoções represadas, mal faladas, contidas em muros que dificultam a expressão do afeto. (Que está presente o tempo todo, não duvide.)
A cena final dos dois, tio e sobrinho, caminhando e jogando a bolinha um no outro me comove.
Eu faço um resumo rápido para o JP e ele diz: "mãe, tu vê um filme em que todo mundo morre e não fica triste por isso. Tu fica triste porque homem não consegue se relacionar. Tu fica triste pela coisa errada. "
Sorrio entre as lágrimas, mas não concordo. Eu choro pela solidão da neve. Pelo frio que dá.
Não quero que seja assim para ele nunca, nem para ninguém. Homem ou mulher.
Respondendo à pergunta lá do início: não tem moral nenhuma.
Um bom filme é como um bom livro. Uma história e uma oportunidade. Só isso, e basta.
Eu é que não tenho jeito: sou chorona mesmo.

Daniela Altmayer

Momento



A sala está ensolarada. Sento no sofá puído e fico espiando por um recorte na janela as nuvens que pintam o céu depois da chuva. Na frente do meu prédio tem uma árvore calma cujos galhos se debruçam sobre a calçada e formam uma moldura para o azul.
É domingo, faz silêncio.
Os lírios no vaso em cima do aparador exalam um perfume suave.
Olho em volta, é bom estar aqui.
A casa precisa de reformas, os móveis estão gastos pelo uso e pelo tempo. Volta e meia o tempo precisa ser arrumado: muita coisa se acumula. Um pouco já fiz, dois sacos de papéis vão encontrar melhor destino que o fundo das minhas gavetas.
Achei esse desenho horrível do meu filho, lindo aos sete anos. Guardei.
Olhei fotos antigas, livros sem palavras: perigo de me deixar levar pela nostalgia.
Tem muita coisa a fazer ainda. Só que não agora. Não há pressa, outros domingos virão.
Do resto sinto uma preguiça boa.
E essa vontade de perder meus pensamentos. Mas tem vento, fecho a janela.
Não quero que voem. Hoje não.

Dani Altmayer

sábado, 13 de maio de 2017

A falta que você faz

Carta para uma mãe ausente



O tempo envelhece as fotos, mas não amarela o amor.
Faz quase dez anos que costuro meus pedaços sem tuas mãos para me ajudar.
As tuas mãos longas, tão parecidas com as minhas, tão mais hábeis em tricotar afetos e tão mais ágeis em bordar ternura no tecido áspero do cotidiano: elas me fazem falta, mãe.
Assim como me faz falta tua voz a cantar no violão as músicas do Chico que aprendi a amar contigo, tua voz a inventar histórias para o meu filho, tua voz a me acalmar. 
De vez em quando toca o telefone fixo de casa, esse mastodonte, e eu penso que poderia ser você a me perguntar, de longe: "oi neguinha, como estão as coisas por aí?"  E eu te diria que estão bem, e se fosse mentira, você saberia. Era um pouco irritante, mas você sempre sabia.
Tua voz me faz falta, mãe.
Não sinto falta da tua comida, tua inabilidade na cozinha só perdia para a minha. Mas sinto falta da roda de chimarrão com rapadura de leite ou pipoca, de comer pão com açúcar e do teu sanduíche de batata frita. Daquele mingau de aveia, não.
Teu alimento me faz falta, mãe.
Sinto falta das tuas perguntas indiscretas, da tua interferência direta, da tua presença na vida do teu neto.. Ele cresceu, o JP. Você ia gostar de ver, tão alto. Ele ainda sente falta do teu colo como eu.
Teu colo nos falta, mãe.
Dez anos é tempo. Tanta coisa aconteceu: sou tia, agora. Você ganhou mais uma neta, linda. Ela está voltando para a Inglaterra, para a tua terra. Eu me separei, de novo. Tive um gato (você ia odiar), depois um cachorro. Pintei o cabelo e comecei a escrever. Vou publicar um livro. Me apaixonei, de novo e melhor e errado. Tenho corrido mais riscos e surgiram algumas rugas. Me meti em várias enrascadas. Sobrevivi. 
Envelheço sem saber, aos 47, a resposta para aquela pergunta que você me fez aos 37: "afinal, o que tu queres da vida? Acho que já tá na hora de saber."
Não sei que hora é essa, mãezinha, em que relógio encontro o tal ponteiro da coisa certa - sigo na base da tentativa e erro. Tateando. Sabendo quase nada, cada vez menos.
Só sei que sinto tua falta. No teu dia e em dias de chuva como hoje.
Teu amor me faz falta, mãe.

Dani Altmayer