quinta-feira, 19 de maio de 2016

Morango com chocolate



Um café no meio da tarde, ele deve ser casado.
Só entrei nesse negócio por insistência da minha mãe, mas até que fui com a cara dele, se não nem tinha dado um like. Ele escreve direitinho, o papo é um pouco chato. Inventei umas coisas para ele, que trabalhava em casa, escrevendo. Eu escrevo mesmo, aqueles diários intermináveis para o meu terapeuta, quem sabe isso um dia vire um livro desses de auto ajuda, "como cair no sono em cinco minutos lendo a vida mais sem graça do mundo"? Um bom título.
Enfim, hoje levantei antes do meio dia, tomei um banho (frio, porque o chuveiro queimou e meu pai tinha saído para comprar outro), não pude lavar o cabelo. Para desespero da minha mãe. Falei para ela que era bom o cara ver logo a realidade, não mencionei a minha desconfiança quanto ao seu estado civil. Eu sei que ela quer que eu arranje outra pessoa para cuidar de mim, tipo um marido. Vive repetindo a minha idade, como se fosse algo que a gente pudesse esquecer e precisasse de uma mãe para lembrar. Tomei umas gotinhas logo cedo, tinha mensagem dele confirmando o local. Respondi com um ok e um coração. Não consegui almoçar. Nenhuma calça fecha, vestido nem tenho, coloquei uma legging e uma bata solta, estava me achando bem bonita até a mãe aparecer e perguntar se eu estava grávida, coisa que ela sabe melhor do que ninguém que não tem a menor possibilidade de ter acontecido. Enfim, troquei de roupa, ou melhor, de blusa, e fiquei parecendo um salame, mas ela aprovou. Não posso comentar com ela, porque a minha mãe não é do tipo que conversa, mas estou um pouco ansiosa. Minhas fotos no aplicativo são as mesmas do face, tem mais de dois anos e são do tempo em que eu ainda sorria de verdade. Sem falar que eu estava pelo menos dez quilos mais magra. Bom, quem me garante que as fotos dele também não são antigas? Na dúvida tomo mais umas gotas. 
Meu pai ligou do centro dizendo que está atrasado, não vai poder me levar. Penso em ir de táxi, mas não tenho dinheiro e a mãe fala para eu deixar de frescura e pegar o ônibus que deixa na frente. Esqueceu do meu pânico, com certeza. Faço o que ela manda, o ônibus está lotado de adolescentes, nenhum levanta para eu sentar mas uma menina me ajuda; "deixa que eu seguro a sua bolsa, tia. " 
Penso em mandar uma mensagem cancelando, o shopping está vazio numa segunda feira às três da tarde. Espio minha imagem na lateral da escada rolante, pareço estar numa daquelas salas de espelhos dos parques de diversões, toda deformada. Chego no café e o vejo de longe. É mais bonito que nas fotos, e isso me irrita. Ele me vê e acena sorrindo, se percebeu o tamanho do engano não demonstra. Sem qualquer sinal de decepção, me cumprimenta com um beijo e convida para sentar. Pedimos um café e uma água, resisto à torta de chocolate com morangos, faz de conta que sou daquelas gordas que nunca comem nada, que a culpa é do metabolismo. Não comi nada hoje mesmo, devo estar com mau hálito. Coloco um halls na boca. Ele fala bastante, e ri muito também, como se a vida fosse mesmo engraçada. Me conta da ex-mulher, dos quatro filhos, do trabalho como corretor de imóveis. ( Não era casado, afinal. Tinha uma visita num apartamento ali perto). Fala que sou a primeira pessoa que ele conhece pelo aplicativo, que coincidência. Essa coisa de conhecer gente é um saco, eu isso, eu aquilo, numa espécie de autobiografia resumida e mal editada. Guardo para mim esse pensamento e por sorte quase nem preciso falar, ele está todo empolgado. Acho que gostei dele. Alto, gentil, engraçado, parece inteligente e normal. Gostei! Fico nervosa com essa constatação, juro que não esperava gostar. De ninguém, nunca mais. Começo a suar e minha mão treme um pouco, o que me faz derramar o café na blusa clara. Peço licença para ir ao banheiro, e aproveito para tomar mais umas gotas. Não quero demonstrar ansiedade. Homem cheira ansiedade de longe. Meu cabelo está sujo mesmo, prendo num coque e retoco o batom. Tiro a echarpe da bolsa para disfarçar a mancha no seio. De repente, é importante parecer bonita. O celular vibra, vejo que é uma mensagem da minha mãe. Uma não, três. Melhor não ler.
Volto para a praça de alimentação. Além de uma moça com um bebê, não tem mais ninguém no café. A garçonete está limpando a nossa mesa, e me olha como quem conhece essa história.
O telefone toca, atendo num instante, com alguma esperança. É a minha mãe:
- Filha, seu pai está saindo para te pegar. Vou junto, estou louca para saber como foi!
Desligo na cara dela e resisto à vontade de jogar o celular no lixo. Sento na mesma mesa, chamo a moça e peço um pão de queijo, uma fatia grande da torta de chocolate com morangos e um capuccino com chantilly.
Para começar.

Dani Altmayer
(exercício para a oficina de escrita, um dia ruim, uma situação limite na vida da personagem 3 D- é a mesma do conto "Ainda não" de 29/04/2016)

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Às mulheres da minha vida





Das lembranças que trago na vida, essas são as saudades que eu gosto de ter.
Minhas duas mães, e nós, numa bela edição feita pelo meu irmão das filmagens do meu pai.
Emocionada por esse olhar de tanto amor.

Obrigada, Guigo!

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Maria e o rio



Ela não queria mais ficar naquela margem. Esteve ali por muito tempo, e se acostumou.
Não era ruim, só que já não era bom. Não mais lhe servia. Teve um vislumbre do outro lado, de como poderia ser, e decidiu. 
O problema era o rio, a distância entre as margens que era enorme, a profundidade, a correnteza, a força que faria, o trabalhão que ia dar aquela coisa toda, aquela travessia. Porque não tinha ponte, nem barco, nem madeira para segurar. Ninguém que a levasse, era por sua conta e risco.
Quando que não é?
Maria sabe nadar. Estava meio fora de forma, mas sabe. E nadar é um pouco como andar de bicicleta e aquelas coisas que não se esquece. Então, era questão de engrossar a perna e se preparar para a corrente, contrária e forte.  
Metade do caminho é ter vontade. Não qualquer uma, carece é de uma bem aferrada. Arretada. Força de vencer correntes.
Ela tinha a vontade, a resolução, a promessa da outra margem. Cansada que estava de não ser ruim e nem ser bom. Cansada de ser muito bom e depois ser tão ruim. Triste de repetir o passado, repetir-se no presente, como um dia da marmota sem cinema e sem opção. 
Com a coragem do medo, porque a coragem só nasce assim do medo, ela se jogou naquele rio caudaloso e hostil.
Contra o fluxo, teve momentos em que cansou. Muitos, mais do que gostaria. Pensou em desistir, e boiou. Foi levada de volta à velha margem onde foi feliz um dia. Pensou em agarrar-se a ela em busca do aconchego, exausta. Depois soltou, já não era. 
Nadou com força e sem ar, tendo como bóia apenas sua convicção e uma leve suspeita.
Foi vista pela última vez no meio do caminho. 
Não se soube mais dela. Talvez tenha chegado onde queria. Pode ter se afogado, morrido. Ou mesmo voltado, para um último pôr do sol e nascer, um afago, um abrigo.
Mas o mais provável é que ela esteja perdida das margens, lutando contra a corrente, nesse rio de águas turvas e turbulento que é o rio de algumas decisões tomadas.
Pode ser que ela esteja ainda, mesmo nadando, contente. 

Dani Altmayer