quinta-feira, 23 de junho de 2022

Ela

 


Está tudo nos pendrives, terceira gaveta, a que fica chaveada. Se eu quisesse, poderia ferrar com a vida dela. Mas não quero. A mulher é foda. Uma puta diretora, se é que você me entende. Feia que dói, a cara parece ter sido atropelada por uma jamanta, mas o corpo até que dá pro gasto. Raimunda, sabe? Um amigo falava, com um travesseiro no rosto é uma delícia. Não que ele tenha experimentado ela, nem eu, sou só o secretário. Nem quero. Gosto do meu trabalho. Ganho bem, ela me trata legal, tenho minhas liberdades. Não julgo porque se fosse juíz, era rico. Não julgo, mas observo e observando, vejo tudo. E vendo tudo, tenho cá minhas opiniões. Mente quem diz que não tem opinião. Só que guardo para mim, necessidade nenhuma de fazer fofoca ou divulgar nas internet.
Ninguém mais sabe, só eu, e ela não sabe que eu sei. Nem vai saber. Não sou bobo.
De vez em quando eu assisto os vídeos, para bater uma. Sexta à noite, quando ela volta para São Paulo. Ela é casada com uma mulher, tem uma filha pequena. Mas pega homem também. Ô se pega, pega bem mesmo. Bem cadela. Adora ficar de quatro, fica doidinha. Mas gosta mesmo é da outra fruta, sabe de qual estou falando?
Aquela que começa com a letra B. Ela é bi, mas mais sapata do que bi.
Num festival de Gramado ela foi com a Betânia. A Betânia foi diferente, puta atriz famosa agora. Anda fazendo filme na Argentina.
A Betânia não assinou nada, acho que se deu foi por gosto mesmo, tem gente que é assim, não faz caso não, ela se apaixonou um pouco pela Betânia, exaltou muito, foi um baita empurrão, a mulher é foda, estou te falando. Eu também me apaixonei pela Betânia, até copiei o video delas. Tenho salvo no meu computador, que mulher lindíssima, mulher nada, era uma menina ainda, dezessete e tudo aquilo, não me admira que a outra tenha se arriado toda, mas a Betânia era esperta, fez bem direitinho. E mais de uma vez. Mexeu gostoso os pauzinhos, se é que você me interpreta. Agora está casada com um espanhol, cara de toureiro, pegou pelos chifres, é ator de segunda linha, bonitinho mas ordinário. Ele não passou pela minha diretora, só uma vez apareceu na jogada um estrangeiro falando inglês, todo metido, acontece que na hora H todo mundo geme igual. Esse tinha a bunda bonita, mas não decolou. Era meio viado, oh my god, yes. Bunda branca, de gringo.
Sexta eu vejo os videos, sábado me confesso, domingo sou ministro na igreja. O padre gosta de mim porque trabalho com gente famosa, às vezes ajudo no sopão das quartas, na quarta tem a Cida que faz curso de teatro, quer ser atriz e vive me pedindo para conseguir entrevista com ela, quer saber como é, o que precisa fazer, mas a Cida é gorda. Ela não gosta de gorda, já ouvi ela falando, então enrolo, faço promessas pra Cida em troca de um favorzinho no banheiro da paróquia. Eu mesmo gosto de gorda, tem onde pegar, e a boca da Cida é uma gostosura, às vezes as pessoas se apegam numas coisas que não tem nada a ver, sabe? Quem tem preconceito perde o bom da vida, aprenda. Eu aprendi, faz anos. Tudo vale a pena experimentar, até mocotó.
A Cida tem namorado, ele luta jiu-jitsu, se chama Joel e é todo cidadão do bem, não sei se anda armado mas usa camisa da seleção e tem o bíceps maior que a minha coxa. Não sou do tipo machão, sou até meio covarde, mas a Cidinha vale um pouco de risco, já dizia o outro que a vida sem tempero não tem graça nenhuma. Quarta feira, pão dos pobres, caridade, um belo boquete. Tudo nos bastidores, que é onde as histórias boas acontecem. Pelas beiradas.
É como sempre digo, o que é do gosto regala a vida, vida que segue, essas coisas, eu tenho a Cida, e ela lá, a fodona, tem todos os outros, outras, outres. Mas no fundo todo mundo quer a mesma merda. E caga igual.
Ela não sabe que eu sei, é aquilo, como falam por aí: saber é poder.
Mais que isso, o segredo é a alma do negócio. Pode confiar, que eu só observo, e deduzo. Tenho minhas consequências. Sou quase um filósofo.



Texto trama idiossincrática, para a oficina de escrita.

sexta-feira, 3 de junho de 2022

Tarde de domingo


Dez gotas ao dia
alguns vidros vazios
então o mel as coincidências
uma janela para o poente
a promessa de novos
horizontes o olhar
que sereniza, bonito
   - o sorriso, ah o sorriso
não há ameaça ou pressa
só descoberta e deleite e de repente
o tempo
desliza lento por sobre as peles
a vida
adquire o ritmo certo
dedilhado
na cadência do teu violão

(na certeza de que a sorte, vez ou outra,
nos acontece)


quinta-feira, 2 de junho de 2022

Sue Ellen, anos depois



O banheiro. Não, a cozinha. Deve ter uma porta de saída para a rua, na cozinha. 

- Vou retocar o batom, já volto. Licença. 

Quem fala isso, na vida real? 

Sue Ellen pega a bolsa com estampa de oncinha, arruma a minissaia e é quase atropelada por um garçom:

- Pizza de javali com molho de menta, senhora? 


10 minutos antes 


Não pode ser. Bem que pareceu familiar. Mas não pode ser, o Zé Gordo? Ele teria dito alguma coisa. Impossível não me reconhecer, não mudei nada nos últimos 20 anos. Bom, mais peito, mais lábio, uma costela a menos, de resto continuo a Su...

- Sue Ellen do céu, eu sabia que era tu. Quanto tempo, guria. Senta aí, quer um chopp?

- Oi, Zé.



5 minutos antes 


E seis fatias de pizza depois.

- Nem nos meus sonhos mais loucos tu saía comigo, Sue Ellen. Essa é a beleza dos aplicativos. Democratização, coisa linda. 


2 minutos antes 


Tem três fatias de pizza no prato dele: pepperoni, portuguesa e filé com cebola caramelada.

E ele ainda tem a mania de fungar no final das frases. Como era mesmo o outro apelido? Mister Pig.

- Senta aqui do meu lado, princesa. 


35 minutos antes 


O uber chegou. Dou uma última olhada no espelho. Vestido curto, sim. Cabelão. Decote moderado, para seduzir sem parecer piranha. A Marcinha vive falando que já passei da idade, inveja dela. Fiz quarenta mês passado, ainda estou podendo. Depois, isso de pode não pode é uma besteira que as feias inventaram. Mulher gostosa pode tudo. Mais uma gota de perfume, e pronto.

A bolsa combina com o escarpin. Animal print, adoro. Vamos lá, conhecer o tipo. 


Um dia antes 


-Amiga, rodízio de pizzas? Nossa, é antiafrodisíaco total, hein Su?

-Sabe que achei até bom, Marcinha? Sinal que não quer só me comer. 

- Quer comer, isso é certo. É gordo?

- Engraçadinha... Não sei, não tem foto de corpo. Parece intelectual, uma foto conceito, desfocada. Tu sabe como é, os homens não capricham nestas fotos de aplicativo.

- Coragem, hein. 

- Desespero, amiga. Tu sabe. 


Uma semana antes 


Decide entrar no aplicativo. É a quinta vez, a primeira desde o divórcio. 

Carlos Eduardo, o canalha. Anestesista é isso, cidadão de bem até a hora de mentir no imposto de renda para pagar mixaria de pensão. Corno, sem remorso. Mereceu. 


Hum, gostei, não gostei, cara de pobre. Um like, deixa ver... Nome de rico, José . Foto de Paris, uma Harley, foto do Rosa. Serra gaúcha, vinho tinto, gosta das coisas boas da vida, curte viajar, sem filhos, não fuma. Só fotografia de paisagem e essa de rosto, fora de foco, com a barba por fazer. Deve ser feio, mas tem a minha idade e tem uma Harley. Já viajou para fora, critérios básicos.  Paciência,  vamos lá. 


Um segundo antes 


O beijo tem gosto de alho e óleo, e cebola. E é babado.

Lembra do meu aniversário de dez anos, Su? Sempre fui apaixonado por ti, olha que sorte a nossa, esse encontro justo agora. Viva o tinder! 


Trinta anos antes 


Com quem será, com quem será que o Zé Gordo vai casar?

Vai depender, vai depender se a Sue Ellen vai querer. 


Gargalhadas. 

A menina mais bonita da sala e o guri do cofrinho de fora?

Nem em sonho, José.

Exercício para a oficina de escrita, trama reversa.