quarta-feira, 25 de agosto de 2021

A nova governanta do Hotel Paris

 



A nova governanta do Hotel Paris

                               Daniela Altmayer





Dois meses. É o tempo que falta para eu assumir minha nova função, governanta do Hotel Paris. Não que eu já não faça o trabalho todo, mas em dois meses vai ser de papel assinado, na carteira, uniforme novo, lenço no pescoço, plaquinha dourada com meu nome: Mabel B.
A Marta está se aposentando, vai morar com a filha na capital, coitada, pensa que vai ajudar a cuidar dos netos, mas não é isso. A Marta anda meio esquecida faz tempo e, não fosse eu, nada estaria funcionando nesse mausoléu. Levo as meninas num cortado que dá gosto de ver, os quartos têm que estar sempre arrumados e cheirosos, o chão de taboão bem encerado, a prataria brilhando, os vitrais limpos e os banheiros impecáveis. Não é porque é velho e falta manutenção que a gente vai relaxar, pelo contrário. Aí que entra o capricho. Inspeciono tudo, de lupa: elas não me suportam, as camareiras. A Marta disse que me apelidaram de general, nem ligo. Não importa a opinião desse bando de caturritas, o que interessa é que o seu Carlos me elogia sempre, e a Marta me adora. Foi ela quem me ensinou a ser assim, detalhista. Quase chata, como tem que ser.
Entrei nesse hotel bem novinha, logo fui promovida a camareira sênior, o que sou até hoje. Ninguém dobra um lençol como eu, quero ver achar um vinco, uma ruga sequer. A Rosa do 53 só deixa eu entrar no apartamento dela, está cada vez mais esquisita e cheia de manias, desde que o último amante se foi. Um menino de 20 anos, magrinho e franzino, parecia até doente. E ela toda grandona, toda velha, os braços pelancudos, os seios encostando no umbigo. Eu tinha um pouco de nojo quando chegava de manhã e encontrava os dois na cama. Não sei que tanta graça acham, nunca me interessei nessas coisas. Sou muito discreta.
A Marta me alertou desde o começo, discrição e disciplina são fundamentais para se dar bem neste ofício. Dizem que quem paga o quarto da Rosa é um ex-político conhecido da cidade, parece que está pago até ela morrer. No hotel, de morador só tem a Rosa e o Ruiz, um argentino que não vai com a minha cara. Ele mora na cobertura, suíte presidencial. Fumante e mulherengo, tomador de uísque, pior tipo. De resto, só os hóspedes temporários, cada vez mais escassos e menos interessantes, trabalhadores do porto, representantes comerciais, uma ou outra puta, um turista desavisado, que essa cidade não se presta para isso. Lembro de quando acontecia a feira agrícola na região, era um tanto de fazendeiro rico e mulher cheia de jóia, o restaurante do hotel ainda tinha aquele lustre enorme de cristal, o piano era afinado e a música, boa. Faz tempo isso, bons tempos. Era muito chique jantar no Paris.
A Marta está bem ruinzinha hoje, ficou deitada lá no quartinho dela, pediu para eu receber a menina nova. Parece que é amiga da filha do seu Carlos, a que está estudando fora. Carolina não sei de quê. Magra ela, toda elegante, cabelo curto de francesa, unhas feitas. Simpática também. Fala espanhol, está conversando com seu Ruiz. Ele, que estava rindo feito bobo, fecha a cara quando me vê. Cuidado com essa daí, diz. Ele pensa que não sei que me chama de bruxa? Seu Carlos também está todo derretido com a Carolzinha, homem não pode ver mulher nova que já arria os quatro. Carol, tu vai aprender tudo com a Mabel Beatriz, ele sempre me chama assim, pelos dois nomes. Mas na plaquinha dourada vai estar escrito só Mabel B.
Falo para a Carolina tirar o esmalte vermelho das unhas, explico o serviço, alcanço o uniforme engomado, aposto que nunca pegou numa vassoura na vida.
Ela é boazinha, tem jeito de sonsa, mas até que aprende rápido. Fez curso de hotelaria, cheia de ideias.
Ontem levou uns lírios para a Marta, elogiou os netos dela. A Marta fica toda boba. Coitada, está cada dia pior da cabeça.
Esta manhã me atrasei um pouco, quando cheguei com o café, a Carolzinha já estava abrindo as cortinas do quarto da Rosa, as duas no maior papo de comadre, olhando fotos antigas, mulherão hein, Rosa? Nem me viram deixar a bandeja.
Ela também conseguiu que o seu Carlos comprasse travesseiros e roupa de cama nova, e que pintasse o terceiro andar, onde teve a infiltração ano passado.
Não sei de onde estão tirando dinheiro para as reformas, onde já se viu pintar parede de cor forte, amarelo, vermelho? Mas está ficando bonito, isso tenho que admitir. A Carol também fica bonita no uniforme, a touca preta em contraste com o loiro quase branco, a testa alta, os olhos verdes delineados, a boca rosada sempre sorrindo, as mãos hábeis para fazer a dobra. Parece saída de um filme antigo, da Marilyn Monroe, com aquele aventalzinho de voil marcando a cintura fina, pudera, come feito passarinho.
A Marta me falou que seu Ruiz está encantado, aquele sem vergonha. Chama ela a qualquer hora, dá chocolate, livro, vinho caro, acho que está apaixonado.
Metade do hotel está apaixonado pela Carolina.
As meninas da cozinha guardam doces e sobremesas para ela, as camareiras estão mais sorridentes, os quartos mais arejados e o recepcionista da noite finalmente fez a barba.
O seu Carlos vem todo dia, agora.
Estão planejando abrir o salão de festas para eventos, já tem um casamento e um batizado agendados. É bom que dá movimento.
Falta menos de um mês para a Marta se aposentar, pobrezinha. Já não resolve mais nada. Se não fosse eu, não gosto nem de pensar.
Amanhã vem o filho do seu Ruiz, de Buenos Aires. Vai ficar no andar abaixo da cobertura, seu Carlos pediu para arrumar o 69. Se não me engano, tem uma torneira pingando naquela suíte, preciso ver isso, chamar o Márcio- o cretino do encanador que vive furando comigo. Vou lá conferir, depois ligo para ele, nem que tenha que ameaçar.
Não acho o molho das chaves, não está no prego, ninguém viu. Pego a chave mestra, bufando. É cedo ainda.
O apartamento é amplo, com uma antessala onde flores delicadas estão dispostas na mesa de centro, num vaso de porcelana fina, junto a uma caixa de charutos e um cinzeiro de pedra. É proibido fumar no hotel, mas o seu Ruiz e o filho podem.
Passo os dedos no toucador, nem um traço de poeira, o espelho sem marcas me devolve um rosto bem marcado. Anos de trabalho duro e dedicação exclusiva cobraram o preço da juventude, sorte que não ligo para essas coisas. Como diz o outro, beleza não põe mesa. E ainda desarruma a cama, digo eu.
Sobre a antiga cama de dossel, os lençóis brancos, lisos e imaculados, almofadas verde-musgo e toalhas felpudas dobradas com esmero. Um perfume suave toma conta do ambiente. Cheiro de roupa limpa e almíscar. O quarto está perfeito.
Carolzinha sai do banheiro, cantarolando em francês. Parece um anjo. Atrás dela, o encanador suado cumprimenta, tirando o boné: problema resolvido, tá tudo tinindo, dona Raquel. Ops, Mabel.
Mabel Beatriz na certidão. Para a plaquinha dourada, Mabel B.

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Vinte e um






Vinte e um anos e nove meses do nascimento do meu amor errado, tão certo, do meu amor assustado, assombrado pelas dores, delícias e vulgaridades de se ter alguém assim tão dentro, tão íntimo, tão fora e tão outro.


Vinte e um anos e nove meses de aprendizado, decepções, alegrias e tristezas, tudo junto e misturado, e tudo elevado a potências estratosféricas, potências essas que só um amor de mãe pode calcular.

Que só um amor de mãe pode dar conta, desmedir, na conta que, mesmo assim, nunca fecha.
Vinte e um anos, e parece que foi ontem que vi pela primeira vez o azul profundo dos teus olhos, ainda outro dia eu te pegava no colo, te segurava pela mão, e tua mão ainda cabia na minha.
Vinte e um anos se passaram num piscar de olhos, e não imagino minha vida sem ter concebido a tua.
Metade do que sou, é porque tu és.
É tão bom saber que tu existe, te saber tão bonito por dentro, mais ainda do que por fora, tão inteiro, tão querido, tão legal. Meu implicante preferido. Obrigada por dividir comigo o mesmo tempo-espaço.
Te desejo amor, saúde, paz. E integridade, que é o essencial. O resto a gente corre atrás.
Estou do teu lado desde sempre, e para sempre. Conta comigo para tudo.
Te amo no infinito do universo.
Happy 21!

PS
E veio com a vacina, o melhor presente. Grande dia!

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Iniciais

 


Gabriel Silva, comum demais. Solicitação de amizade na rede social, a foto meio desfocada, um homem meio barrigudo, de cabelos grisalhos, óculos escuros e regata. Entro no perfil, não tem muita coisa. Examino a foto, a tatuagem no ombro, uma águia, as iniciais do nome -dou um zoom. Conheço essa tatuagem. Gabriel Henrique da Silva. O Ique. 

Fecho a página, volto mais de trinta anos. Quinze anos, e um coração partido na primeira valsa, o primeiro porre, os rodopios com o par espinhento, o salão decorado de rosa. A viagem para a Disney, os cartões postais, o presente, uma camiseta do Hard Rock, que ele desdenhou, rindo das histórias que eu contava, num misto de deboche e graça, vocês fazem tudo igual, se parecem com todo mundo. Ele não se parecia com ninguém que eu conhecia, era um homem já, de seus vinte e tantos, a pele morena, os braços fortes, as tatuagens, o cabelo aloirado de surfista, uma boca larga. Andava de skate, não no colégio, claro, que era proibido, o pai dizia que era coisa de marginal. Andava lá na lomba da Barão. 

Tinha vindo da praia para trabalhar em Porto Alegre, e morava num quartinho anexo à portaria da escola, queria fazer faculdade de educação física. Usava um uniforme azul, tinha olhos puxados, de gato. Nas tardes de sábado, dia do treino de vôlei, era o Ique quem abria o ginásio, e ficava por ali, de bermuda, fumando, escutando heavy metal no walkman, observando os saques e as pernas das meninas. De vez em quando a namorada também aparecia, não sei se era permitido, mas nos sábados não tinha ninguém para controlar. A Verônica, uma estagiária peituda que trabalhava na secretaria e cursava letras à noite, mulher mais velha, sempre de batom vermelho, com a bunda e a sensualidade que me faltavam, que faltam até hoje. Vulgar, minha mãe diria. 

Eu imaginava os dois naquela cama apertada, no quarto sem janelas, a única luz que entrava era pela basculante do banheiro.O quarto tinha um cheiro de tabaco e suor, de colônia barata, cheiro forte de homem. Na primeira vez que entrei ali, senti enjoo e susto, eu, com meu uniforme impecável e detestado, a saia plissada, as meias brancas, a mochila de grife. Atônita com a desordem e a sujeira, não arrisquei tocar em nada. Sentei na beira da cama, enquanto ele ficava de joelhos e desabotoava minha camisa. Depois acostumei com o cheiro e a confusão, até gostei. Gostava de tudo nele, comecei a fumar, a mentir. Inventava desculpas para ficar até bem mais tarde, estudando na biblioteca. O motorista era meu cúmplice silencioso, me dava balas de menta, ninguém perguntava nada, contanto que as notas estivessem boas, e estavam. 

A Verônica uma vez me pegou no corredor, e me disse que sabia o que estava acontecendo, me chamou de trouxa, falou que o Ique ia se ferrar por se meter com uma menina, filhinha de papai, ele só está tirando uma onda contigo, não acha que tu é especial não, uma fedelha sem sal dessas. 

Saiu pisando forte, rebolando, os saltos estalando nas lajotas. Vulgar. 

Não contei nada para ele, mas naquela noite eu chorei escrevendo no meu diário. No dia seguinte, pintei os lábios de vermelho pela primeira vez. O Ique disse que eu parecia uma puta, e isso me deixou feliz. Nenhuma das minhas amigas sabia de nós, nunca falei para ninguém. Só para a psicóloga, anos depois. 

Quando voltei da viagem de férias, em março, ele não estava mais lá. Nem a Verônica. O quartinho estava trancado e o novo zelador era um velho que não morava no colégio. Os rumores eram de que ele havia sido demitido, a pedido do pai de uma aluna, mas nunca descobri quem, nem porquê. 

Gabriel Henrique Silva. É, o tempo não foi gentil com ele, mas por que deveria?

Um cheiro conhecido me sobe às narinas, excluo a solicitação e vou até a sacada acender um cigarro. 

Nunca consegui deixar de fumar.


(Exercício para a oficina de escrita- o protagonista tímido. De volta aos contos.)

domingo, 8 de agosto de 2021

Nosso país




Sem público, sem torcida, mas com nossos aplausos.

A vitória sobre o medo, as histórias de superação. 

Os ouros, pratas, bronzes.

As máscaras, as distâncias, fusos.

As lágrimas, os risos, a redenção do hino. 

A reapropriação da bandeira. 

Verde, amarelo, azul e negra, são as cores do nosso país.

Redivivas, triunfantes, o troféu da alegria sobre a tristeza.

Apesar de tanto descalabro, de tanta crueldade, apesar de tanta dor, e tanta morte, tanta falta de sorte, esta olimpíada foi respiro e suspiro.

Alívio por um futuro possível. De amor e de esperança.

O Brasil que nós queremos tem a cara bonita dos Izaquias, Anas, Rebecas, Ítalos, e todos estes atletas que nos deixaram sonhar, que nos fizeram vibrar, que nos devolveram um pouco da felicidade, no breve interlúdio desses dias. 

Obrigada, Tokyo 2020.

domingo, 1 de agosto de 2021

No plantão








Trago livros, carrego-os sempre comigo.

Neste instante eles estão na mesa, à minha espera. Eu, que enquanto espero, estou no celular. Lendo textos, diga-se a meu favor, mas ainda assim. Vejo fotos também, vídeos não me atraem, os longos então, não tenho paciência. Mas assisto à entrevista, e comemoro o ouro da Rebeca, a humildade e a alegria vencendo as dores todas, vencendo as dores expostas, também as ocultas, uma menina vitoriosa num país que é cruel com as mulheres, com as pretas, com os pobres.
Orgulho dela.
Os livros, são dois, os que estão aqui, mais um que não veio, são três livros começados, se não me engano, não, são quatro, mais um que falta apenas um capítulo, os livros andam sempre comigo, ainda que nem sempre os abra, é uma coisa antiga, desde criança. Fazem-me companhia, mas sinto que preciso estar a resgatar constantemente o conhecido hábito, coisa recente, esta distração cotidiana, a vida toda uma leitora contumaz, e isso me dói, estes livros a me olharem com suas belas capas duras, magoados pelo desprezo que nem é, mas eles não sabem. É preciso sempre que se diga, menos em palavras e mais em ações, é assim que se demonstra o afeto, em todas as coisas, em todas as ocasiões, sempre, é só assim que é possível: no ato, não na omissão. Amor não é para ser adivinhado.
E um livro, como as gentes, foi feito para ser descoberto, abrindo as páginas devagarinho e com cuidado, lendo cada palavra com atenção e vontade de entender.
Sem vontade não tem solução. (Sem atenção não tem tesão.)
No toque é que o amor floresce, na disciplina se forja a força, não largar a mão de ninguém é também não abrir mão dos velhos amigos, os mais leais que já tive, os melhores mestres. Ler é resistir. É existir. Na verdade, não sou eu quem os carrega, é o contrário.
São os livros que tomam conta de mim. Um de cada vez, e todos ao mesmo tempo.