quarta-feira, 23 de setembro de 2015

A la minuta



Recebi a notícia de sua morte por telefone, um vizinho ligou avisando. Passava da meia noite, eu estava bêbado e no meio de mais uma DR. Foi a Ana quem atendeu, interrompendo a contragosto o fluxo de palavrões. Sempre fico besta com a criatividade dela.
Viajei logo cedo, na maior ressaca, e ela não veio comigo. Nove horas de viagem.
Eu não conhecia o macaco, há muito tempo não falava com meu pai. Ele fora vendedor por um tempo, entre outras coisas, antes de ser vencido pelo álcool. Deve ter ganhado o bicho numa dessas suas viagens, nunca vou saber. O enterro se dera há uma semana, caixão fechado, me contaram. Ontem alguém finalmente lembrou do Zé, esse é o nome do macaco. Por isso me chamaram, por causa do Zé.
O coitado estava sentado no canto do sofá, e não esboçou reação ao me ver. A casa, uma cabana de madeira na beira do rio, estava imunda como era de se esperar e cheirava mal. Eu havia comprado um cacho de bananas, na rodoviária, que o Zé desdenhou com um tapa. Ainda assim, ele parecia amistoso, apesar de entediado. Não havia um lençol limpo à vista, e a luz estava desligada. Decidi que não podia dormir ali, e fui para o único hotel da cidade, uma espelunca de dois andares, quase tão suja quanto a casa do meu pai. Deixei a chave com a vizinha, dona Alzira, e levei o macaco. Dividimos a janta, um a la minuta honesto. O bicho comeu todas as batatas fritas, e descobri que ele gosta muito de coca cola normal. Depois de algumas cervejas, eu apaguei sem ligar para a cama dura, o macaco roncando e peidando ao meu lado.
Acordamos cedo no dia seguinte, com o celular que apitava. Mensagem da Ana, não li na hora, estava sem meus óculos. A cabeça girava, o corpo doía, e, com o macaco agarrado na minha cintura, desci para tomar o café. Comemos pão com manteiga e uma geléia de algo parecido com uva. O Zé se mostrava mais disposto, depois da segunda refeição. Quantos dias ele teria passado sem comer? Parecia triste, talvez sentisse falta do velho. Eu precisava ver um veterinário. Mas antes tinha que ler a mensagem da Ana, encontrei os óculos no bolso da blusa do Zé, esqueci de dizer que ele estava vestido com uma camisa xadrez imunda. "Estou saindo fora, Ronaldo. Vou para a casa do Júlio, acho que você já sabia. Boa sorte com o macaco. Ana."
Eu não sabia, mas não me espantei. Júlio é o meu melhor amigo, baita parceiro e um canalha de marca maior. Não sabe a roubada em que está se metendo, a Ana é gostosa, mas chave de cadeia, mulher barraqueira que só. Não paga a conta, ele vai ver.
Acontece que eu tinha mais o que pensar, no momento, e precisávamos de um banho, eu e o Zé. Do chuveiro elétrico pingavam dois fios de água, um fervendo, o outro gelado. Esfreguei o macaco como pude com o toco de sabonete que alguém tinha esquecido por ali. Emprestei uma camiseta limpa do Timão para ele e voltamos à casa na beira do rio. Dona Alzira havia aberto as janelas e tirado o lixo. O cheiro estava um pouco mais suportável. Achei duas garrafas de pinga embaixo da pia da cozinha, e comecei a beber enquanto vasculhava a cabana em busca de não sei o quê. Mais de dez anos que não via meu pai, desde que minha mãe morrera de desgosto, ou antes. Depois, ele se mudou para essa porcaria de cidade ribeirinha, menos de mil habitantes. Ele teve um bar aqui por um tempo, depois fechou, faliu. Decerto bebeu o bar, o velho cachaceiro. Vivia da aposentadoria precoce, por invalidez, um acidente de trabalho mal explicado. Mal dava para o cigarro e o trago, disso estou certo. Aluguel pagava não sei como. Revirei as gavetas e achei uma foto de nós três, de quando eu tinha uns cinco anos. Minha mãe era bonita, professora. Foi ela quem me fez estudar, fiz faculdade de administração à distância. Culpa da crise eu estar desempregado, agora. Tinha planos de negócios com o Júlio, mas com a história da Ana, sei lá. O velho não era feio, não, de bigodinho e chapéu, alto. Fora a foto, umas certidões e pilhas e mais pilhas de contas, não achei nada que prestasse além da cachaça.
Comemos as bananas, o Zé um pouco contrariado, e dormimos no sofá de molas da sala, ele deitado na minha barriga. Acordei no dia seguinte com o bicho me puxando a calça, tínhamos visita. Uma menina magrinha e muito preta, de enormes olhos verdes, estava sentada sob os joelhos, no tapete puído, e me observava.
- Quem é você?
- Clara.
Sem dizer mais nada, ela levanta e começa a arrumar a casa, com o Zé a seguindo feito bobo. Não devia ter mais do que quinze anos, usava um short jeans e uma camiseta branca e curta, sem sutiã. Tinha uma espinha na testa, os cabelos carapinha presos numa trança grossa mal feita e chinelos de dedo.
- Você é a faxineira? - Perguntei, espantado que o velho tenha podido se dar a esses luxos.
- Não. Sou, quer dizer, era... namorada dele. Clara, já disse. Trouxe coca para o Zé, e um bolo para você.
Ela recolheu as garrafas de pinga vazias, pegou uma sacola grande que estava junto à porta e foi embora, tão silenciosa como chegou. Mastigo um pedaço do bolo duro de aipim, e dou outro para o Zé, que está usando meus óculos. Estou com sede, mas o Zé se recusa a dividir a coca comigo. Tomo um copo da água suja da torneira e saio também, com o macaco agarrado à minha cintura. Dona Alzira me intercepta no caminho, e oferece uma bem vinda xícara de café.
- Vejo que conheceu a Clarinha, boa moça ela. Cuidava bem do teu pai.
Não respondo. Precisava levar o Zé ao veterinário, ele ainda parecia meio desanimado. Vai que estava com alguma doença de macaco. Dona Alzira me avisa que o dono está pedindo a casa de volta, e que tem dois meses de prestação atrasada. Ela me deu o endereço do senhorio e do veterinário, que não é bem um veterinário, e eu caminho devagar até o centro. As ruas de chão batido estão empoeiradas e secas ao sol do meio dia. Como é hora do almoço, rachamos um a la minuta no restaurante da esquina, o Zé como sempre ficou com as batatas e eu com os ovos e o arroz mal cozido. Tomei duas caipiras,  e voltei para o hotel a fim de cochilar um pouco, antes de resolver os pepinos. Tinha esquecido o celular carregando, apago sem ler umas dez mensagens da Ana. Durmo abraçado com o macaco. Durmo demais.
Já é madrugada quando levanto para ir ao banheiro. O Zé resmunga qualquer coisa quando afasto seu braço do meu pescoço. O pelo dele me dá uma coceira danada. O celular está piscando no escuro, mais mensagens, deve ser a Ana, não acho meus óculos. Enquanto estou mijando, a porta do quarto se abre com um estrondo e eu quase me molho todo.
- Roni?
É o Júlio, aquele filho da puta, com uma caixa de Skoll e uma garrafa de pinga. Ele me abraça forte, e dá um tapa na minha cabeça.
- Cara, vou te dizer! Tu é um santo, bróder, aturar a Ana tanto tempo, fala sério?
- Hum...
Penso na Ana, toda apetitosa, um mulherão,  que adianta? Baita louca, bipolar. Sem querer penso nos peitinhos pequenos e silenciosos da Clara. Nas coxas magrinhas. Ah, velho safado.
- Vem cá, esse é o famoso macaco?
Nessas alturas o Zé está sentado do meu lado, na beira da cama, esfregando os olhos e com cara de poucos amigos. Macacos não gostam de ser acordados no meio da noite, imagino.
- É. O Zé.
- Bom, pensei numas coisas pro nosso negócio, coisa de gênio, cara. Podemos até usar o amigo peludo aí... Ele é treinado?
- Não sei. Acho que não.
O Júlio abre as cervejas, alcança uma garrafa para mim e outra para o Zé, que vira a cara com um beiço.
- Ele prefere pinga, é?
Dou um gole na cerveja quente, e explico.
- Ele não bebe, cara. Só Coca, normal.

Dani Altmayer
Exercício para a oficina de escrita criativa.

(Um homem herda um macaco do pai distante, a mulher o deixa pelo melhor amigo, o pai tem relacionamento com uma menina de quinze anos, o amigo chega para pedir desculpa e dizer que deixou a mulher. Tudo isso acontecendo em 4 dias. Pois.)


domingo, 20 de setembro de 2015

Palavras apenas




Substantivo e verbo.
De que vale um, sem o outro?

Você fala da vida como se ela fosse uma entidade, e não algo que está acontecendo.
Agora, gerúndio, no presente contínuo.
De que vale uma vida, se não for para viver?

Você fala do tempo, sem saber que seu verbo é voar.
De que vale um tempo, um suspiro, os dias,
Se não houver pelo que suspirar?

Você fala do amor como se soubesse o que é,
Amor não é outra coisa senão amar, e amar é outra coisa.
( É mais, muito mais que desejar.)
De que vale o amor, se você não sabe amar?

É feito ter olhos e não poder ver.
Ter livros e não saber ler.
Ganhar um presente e não o abrir.
É ter uma chance, e não arriscar.
Ganhar um milhão, e não viajar.
É fazer a viagem, e não entender.

É feito ter saudade de si mesmo,
É não ser, não estar, em todo lugar.

Você só sabe falar.

Objeto sem o sujeito.
Sujeito sem o verbo.
Palavra sem palavra.
Inerte, inútil. Vazia.
Morto. E morta.

De que vale uma morte, se não for para morrer?

Dani Altmayer

domingo, 13 de setembro de 2015

Afasia




Quando finda o dia,
A solidão se põe.
Na hora que seria sua.

No silêncio da noite,
Recolhe ela toda palavra escrita.
Mal dita.

Não sabe,
Não sonha.
Adivinha.
( Não mais)

Cobre-se com a colcha de retalhos.
Do nada que sobrou,
Asfixia.
E cala.

Ela te ama, também.
(Também?)
Ou só,
Tão só. Mente.

A quem?

Dani Altmayer

domingo, 6 de setembro de 2015

Mais que na hora


Uma das coisa que mais me incomoda no mundo é a hipocrisia, em qualquer relação. Ainda mais a minha.
A tela fica preta, e as luzes do cinema não acendem. A senhora sentada ao meu lado reclama do escuro. Eu não. Eu agradeço a privacidade para enxugar as lágrimas que embaçam meus óculos.
Durante todo o filme, não consegui entender o motivo das gargalhadas aqui e ali, como se fosse uma comédia a que assistíamos. Tinha partes engraçadas, sim, mas mesmo essas só fizeram me arrancar um leve sorriso constrangido. Talvez eles rissem de nevoso, como se faz às vezes, em velórios.
A patroa "gentil", a empregada servil, o marido desencantado, a casa no Morumbi.
O cachorro, o menino maconheiro, a faxineira, não falta nada no filme. Nem a fachada. Muito menos a fachada.
O abismo social brasileiro retratado, filmado e muito bem mostrado. A ambiguidade de todos os lados.
"Que horas ela volta"?
Um frágil e falso equilíbrio, inesperadamente quebrado com a chegada da filha (da empregada).
Eu me percebi, ali. Eu e tantos outros de mim. A tela ficou feito um espelho gigante, a arte é por vezes um espelho cruel. Não gostei de me ver tão feia.
Gostei de ver o outro lado, um lado que nunca foi meu, de verdade. Por mais que eu acreditasse que podia ser.
E gosto de pensar que as coisas estão mudando, nesse sentido. As oportunidades cresceram. Leis foram criadas. Um dia, quem sabe, ninguém precisará ser mais do que ninguém, porque não é menos. Como diz a Jessica no filme: "Eu não me acho melhor, só não sou pior". Exatamente.
Está mais perto o dia em que todos os resquícios desse vergonhoso passado escravagista serão enfim, extirpados e redimidos. Está chegando um tempo em que não se esvaziarão mais as piscinas. Nunca mais.
A Regina Casé está maravilhosa, mesmo. Esquece o Esquenta e vai ver. Um filme que faz rir só se for para não chorar. Que me fez chorar. Que faz pensar. Um baita filme!

Dani Altmayer