sábado, 17 de dezembro de 2016

Poesia



Bebo tuas palavras com a sofreguidão de quem tem uma sede ancestral, então as sorvo com a delicadeza que elas merecem, como fossem um vinho raro a ser saboreado lentamente, na fragilidade transparente de um copo de cristal, o som puro que vem de ti e tudo mais que adivinho me inebria, aos goles prolongo o prazer, adiando a despedida, e me embriago de ti eternamente, meu poeta, depois te conservo escondido, intacto, na minha mais cruel, impotente e doce fantasia.

Dani Altmayer

Sonhei-te, outro dia.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Papai e mamãe


Abri o computador dele, e num primeiro momento achei que era um site de pornografia. Fazia tempo que a gente não transava, uns três meses entre o final da gravidez e o nascimento da Alícia. Minha gineco inclusive já liberou, mas eu andava tão sem vontade que nem contei para o Artur.
Não estranhei então as fotos de peitos, bundas e bucetas, estava achando normal até perceber que era um catálogo enviado para o email dele. "Vai comer uma puta o filho da puta. "
Fechei o catálogo e comecei a olhar as outras mensagens. Pelos títulos imaginei que ele andara fazendo uma boa pesquisa de mercado. Estava achando meio engraçado, o homem quase nunca queria saber de sexo nem parecia gostar tanto. "Não vai saber o que fazer com essa loira peituda,"pensei com certa tristeza, olhando para a nenê que dormia no carrinho ao meu lado.
Já ia desligar o computador para ele não perceber a cagada que tinha feito (e que eu não tinha o menor interesse em discutir, do jeito que eu andava ocupada com fralda e mamadeira) quando vi um email da Cristiele, filha da minha irmã do meio. Ela tinha passado uns dias com a gente antes da Alícia nascer, veio para prestar vestibular para nem sei o quê. Eu, mais pesada que um hipopótamo, inchada do dedo do pé até a ponta do nariz e num humor do cão, estava era preocupada em montar o berço, lavar as roupinhas, comprar o que faltava. Mal podia comigo e a infeliz andava pela casa toda magrinha, de short e fone no ouvido, não me ajudou a pregar um quadro sequer na parede cor de rosa. O Artur foi quem fez a mão de trazer e levar de carro, e acabou despachando na rodoviária uns dias depois do parto. Eu estava no hospital ainda, porque a Alícia teve amarelão.
O título do email era titio.
Estou chegando na segunda e vou direto para o apartamento. Tudo combinado com o cliente. Me encontra lá depois?
PS -Estou nervosa.
Procurei nos enviados e achei a resposta dele:
Relaxa. Você vai se sair bem. Você é boa nisso.
É só fazer o que combinamos e não esquecer de usar salto alto.
Boa sorte! Passo lá depois para falar com todas vocês.
Voltei para o email do catálogo e examinei com mais atenção as fotos. Além da minha sobrinha de rabo empinado, achei duas alunas bem bonitinhas do Artur que haviam jantado aqui em casa no semestre passado quando ele foi paraninfo e dei de cara com a vizinha do 205 de peruca ruiva e peito de fora. Eu sabia que era silicone... Ah, e a menina da pet shop, essa nunca me enganou mesmo, com aquela boca vermelha enorme. Liguei para o número de telefone que piscava na tela e uma secretária eletrônica de voz sexy atendeu: "O que você procura? Deixe seu recado, entraremos em contato." Engoli um desaforo e desliguei com um grito, acordando o bebê.
Alícia acorda buscando meu peito. Estou só de calcinha, faz calor nessa sala e o ventilador mal dá jeito de um vento morno. Olho minha imagem no espelho, engordei mais de vinte quilos na gravidez, só perdi cinco no parto. Vejo minhas coxas grossas e cheias de estrias, a barriga mole e murcha, e a cabecinha careca com laço cor de rosa perdida como uma azeitona entre meus seios brancos e caídos.
Ouço o barulho da chave na fechadura e desligo o computador abruptamente.
- Oi meus amores. Como vão as princesas do papai?
Ele se inclina para nos beijar a testa. Recoloco Alícia no carrinho e puxo o zíper da sua calça para baixo. Ele me olha surpreso. Do meu mamilo esquerdo escorre um fio de leite, e eu falo com raiva.
- Me come, Artur. Agora.

Dani Altmayer
(texto para a oficina- uma história horrível. Era para ser anônima, mas me identificaram pela ironia...)

sábado, 10 de dezembro de 2016

Liquidação



- É aqui que vendem ideias prontas?
- Sim, temos de todo tipo. As radicais estão em promoção, pode ficar à vontade.
- Vocês vendem fé também?
-  Claro. Aliás, fazemos muito essa venda casada. Ideia pronta e fé cega. Funciona super bem.
-  É fácil de usar?
-  Facílimo.
-  Hum... E empatia vocês têm? Ouvi falar que era bem legal.
-  Ah, isso acabou faz tempo, junto com tolerância e pensamento crítico. Não compensava o custo-benefício, sabe?
- Sei, acho que sei. Se é você que está dizendo...

Dani Altmayer

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Seis de dezembro




Amor...


Se teu corpo tem a chave do meu,
Se teu toque desvela meus segredos...
Se gozar nos teus braços é verter poesia,
Então...
Cada poema que te dou
É só devolução.

Dani Altmayer



segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Respeita minha fé

Mais uma de consultório ...


É sua terceira consulta comigo.Ela tem quase oitenta anos e me conta que está fazendo um tratamento espiritual para a falta de equilíbrio, andou caindo muito nos últimos tempos. "Eu tenho muita fé, doutora." 
Vem para me mostrar exames, e enquanto conversamos ela me dá um santinho de Santo Antônio de Categeró. Diz que vai na capela dele antes do Natal e vai mandar rezar uma missa, e acender uma vela por mim. Que eu tenha fé que ano que vem vou estar com um marido muito bom ao meu lado, " como eu mereço". Santo poderoso esse, foi escravo, não conhecia. Desconfio que ela anda falando com a minha madrasta, mesmo assim agradeço sua preocupação e carinho, renovo sua receita e lhe desejo boas festas.
Antes de sair ela pede para me contar uma história, consultou com uma residente de cardiologia pois sua médica estava doente, e levou uma lista escrita de coisas para não esquecer. Entre elas, ela queria falar da novena que fez para um santo do interior de São Paulo, e que, graças a isso, tinha regulado sua pressão. A médica residente riu, fez pouco caso, mas sacou o celular, pedindo para tirar fotos da sua listinha.
-Doutora, ela queria rir de mim com os outros. Na hora não soube o que fazer, deixei. Ela era tão novinha, mas sem educação.
Perco a hora conversando com ela, e no fim ela conclui: "existem médicos e médicos, doutora."
Eu digo, existem pessoas e pessoas, dona querida. Ela segura na minha mão, olha bem fundo nos meus olhos e diz, profética: ano que vem, pode acreditar! Eu sorrio, achando graça na minha pouca fé e guardo o santinho na bolsa.
Tudo bem.
Achar graça pode até ser inevitável. Ridicularizar e desrespeitar é que não pode. Nunca.


Dani Altmayer

domingo, 4 de dezembro de 2016

Cúmplices



Dois únicos no universo,
Despidos de todas as máscaras,
Gêmeos no grito de prazer e dor,
Libertos
Sem qualquer fantasia.

Naquele dia estranho e triste
Éramos apenas isso,
No fio invisível da vida:
Um homem e uma mulher, sós.

Dani Altmayer (revisado e editado)


quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Meditando



Depois de tanto minha mãe insistir, me matriculei na academia. Não é a mais próxima de casa como ela queria, mas é um lugar onde consigo me sentir bem. Talvez "me sentir bem" seja um pouco de exagero, acho que o mais certo seria dizer que é um lugar onde consigo passar desapercebida. Lá quase não tem aquela gente gostosa e sarada se exibindo em frente ao espelho. Todo mundo parece meio cansado e de saco cheio como eu. Suspiram e bufam como eu. A gente está ali cumprindo um dever mesmo, empurrando aqueles pesos todos com as pernas e pensando na vida, dura e difícil como ela é.
Comentei com o instrutor que eu andava meio ansiosa, o terapeuta está diminuindo os remédios, e ele me recomendou fazer uma aula de meditação. Tem todo sábado pela manhã, junto com alongamento. De tudo o que já li sobre meditação achava quase impossível eu conseguir, essa coisa de parar o pensamento só funciona comigo depois de uma garrafa de vinho, aí eu faço merda mesmo, não penso em mais nada. Ou apago, o que dá no mesmo. De resto, se me perguntarem o que eu faço o dia inteiro, respondo fácil: eu penso. Eu penso o tempo todo sem parar. A ideia de meditar era meio absurda e improvável, mas decidi arriscar.
A aula é numa salinha no andar de cima. Cheguei em cima da hora, eu tinha vestido uma daquelas calças largas de yoga que ficam lindas nas magras, e só nelas. Talvez nem nelas, pensando bem. A sala estava à meia luz, e haviam acendido um incenso bem forte. Eu até que gosto, minha rinite é que não. Sentei em uma das almofadas dispostas em círculo, e cruzei as pernas imitando os outros. Não foi nada fácil. Logo o professor começou a entoar um mantra que não consegui repetir, fiquei fazendo um barulho com a boca na esperança de soar parecido, e depois ele mandou a gente ficar em silêncio por dez minutos, fazendo um malabarismo com os dedos da mão que ele chamou de mudrá. Concentra na respiração, inspira, expira, deixa os pensamentos passarem. E eu fixa no almoço de família na casa da minha avó, na massa com carne de panela e mais especificamente na sobremesa, arroz de leite. Ultimamente penso muito em comida. Dez minutos parece pouco, mas experimenta ficar com as pernas e os dedos cruzados sem se mexer esse tempo todo. Comecei a sentir um formigamento insuportável, acho que deve ser isso o que eles chamam de consciência corporal.
Quando achei que não ia aguentar mais, começaram os exercícios de alongamento para liberação dos músculos e da tensão acumulada na semana de trabalho (eu não trabalho, mas tensiono igualmente). Passamos a libertar nossas dores uma a uma, em posições que não ouso descrever. Teve uma hora que achei que não ia voltar ao normal, minha coluna fez um barulho estranho e quando vi tinha todas as dores do mundo em mim. Santa rigidez.
No fim de tudo ele mandou a gente deitar no tatame, fechar os olhos e colocou uma música suave, violinos e piano, e começou a falar. "Imaginem que estão numa praia deserta, o dia está chegando ao fim, os últimos raios de sol banham a areia de cor de laranja, e as ondas do mar batem em suas pernas, a água está quente"... E por aí ele continuou, tocando uns sininhos.
Não sei se foi  a música, o incenso, o tom de voz dele ou o Rivotril que tomei escondido, mas de repente eu estava naquela praia, e era quase magra como há cinco anos, meu cabelo longo e esvoaçante, meu corpo não tinha peso algum, eu flutuava em uma luz dourada, depois eu estava nua deitada na areia, deixando as ondas lamberem meu corpo em carícias mornas, a espuma macia me tocando, e senti uma mão por entre minhas pernas, não abri os olhos, abri mais as pernas, não sei de quem era a mão, mas estava bom, tão bom, tão...
A música parou, e eu levantei a cabeça, subitamente arrancada do meu deleite. Todos me olhavam, uns mal disfarçaram um sorriso constrangido. Eu sorri também, ainda fora de foco. As luzes se acenderam e a aula acabou com mais um mantra que não tentei imitar. Só pensava em chegar em casa e terminar o que tinha começado naquela praia.
No almoço, para alegria da minha mãe, eu não repeti a massa e pulei a sobremesa.
E para seu desespero, resolvi dar um tempo na academia para me dedicar à prática da meditação. Transcendental.

Dani Altmayer
( exercício para a oficina- "sair de si")