sábado, 27 de dezembro de 2014

Novo Ano Novo


Um dia ele não mais virá.
Mas enquanto ele vem, aproveite.
Chore até secar, ria até a barriga doer, dance até o amanhecer.
Respire. Inspire, inspire-se.
Bote para fora, da casa e da vida, tudo o que não te faz vibrar.
Silencie e grite.
Tudo o que te faz doer.
Abrace, se afaste, ame muito, faça muito amor.
Faça amor, por favor.
Acredite e duvide, sempre e ao mesmo tempo.
Não tenha certezas, são as dúvidas que nos comovem.
Peça, despeça-se, deseje.
São os desejos que nos movem.
Deixa sempre uma chama acesa, por menor que seja.
Encha de beijos quem você ama. Aceite, deleite-se.
Corra riscos, em nome do amor.
Procura tua paz, seja onde for.
Distribua sorrisos, palavras doces ao vento, diga sempre obrigada.
Para as surpresas, boas e ruins.
Para tudo que vem.
Exercite seu corpo, e sua tolerância.
Curta as longas tardes de verão, as noites curtas de sonhos.
Receba, de braços abertos, a benção imensa que é poder sentir muito.
E sentir tanto. E sentir tudo.
Pule sete ondas, e faça uma prece.
Agradece, agradece muito. Agradecer te engrandece.
Enquanto ele ainda vem. E quando ele vem.
Na alegria, e na tristeza. Na saúde, e na doença.
Até que a morte nos separe, ou impeça.
É sempre outra chance.
Na pele nova de um ano novo.
Celebra tua vida.
Essa esperança meio boba, que sempre se renova.
E sempre, invariavelmente, te amanhece.

Dani Altmayer


quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Viva a impermanência




Se a vida fosse mesmo um quebra cabeças gigante, seria um presente que ganhamos sem a caixa.
Não vem com o modelo, nem com as regras para copiar.
E, ou não vem com todas as peças, ou é a gente que as perde com o tempo, sei lá.
O meu, a minha, é cheia de buracos, está sempre faltando pedaços, sobrando saudades, desejos, vontades.
Talvez porque eu não saiba guardar, ou cuidar.
Quando completo uma parte, vem sempre alguém ou um vento, e espalha tudo, desfaz o trabalho, e é de novo a hora de reconstruir.
Quando a gente pensa, ufa, está pronto, não, nunca está.
Se a vida fosse um castelo, minha casa seria de areia, e não de tijolos.
Tijolos constroem muros, prisões, e aparam os ventos, mas não furacões.
A areia se pode moldar.
Mesmo se uma criança destruir, ou uma onda levar.
Deixa, isso é poesia… a criança a sorrir.
A maré a subir… a baixar.
É a vida, que leva e traz, infinita enquanto durar.
Nada fica para sempre, não mesmo.
Nenhuma certeza, nenhuma garantia.
Difícil é o que ela exige de mim, todo dia, esse constante desapegar.
Porque é tudo quase uma brincadeira. Mesmo que não se queira.
É tudo feito de surpresas, que às vezes são boas, tantas vezes são más.
Pode ser feia ou bonita, essa vida bendita.
Tanto faz. É feia e bonita, e boa, e má.
Mas nunca maldita.
Independe de sorte ou azar.
É só essa coisa que não se consegue controlar, menos ainda definir.
Se a vida fosse um jogo, seria jogo de paciência e verdade.
E é do jogo, a alternância. Perder e ganhar.
Mesmo faltando ( ou sobrando ) peças, é da vida, esse eterno desmanchar.
Para depois, mais uma vez, e(ternamente) recomeçar.


Dani Altmayer

sábado, 13 de dezembro de 2014

O mundo de Pietro

Pietro nasceu com um defeito na asa esquerda. Quando era bem pequeno, e ainda não tinha penas, ninguém percebera. Nem mesmo sua mãe.

Eles eram cinco irmãozinhos, famintos e gritões, e ela estava muito ocupada em buscar comida o tempo todo para alimentar aquelas bocas escancaradas.



Eles haviam nascido na primavera e moravam em uma árvore florida e cheirosa. Divertiam-se a observar os passantes na rua calma de um bairro de Porto Alegre.

Tinha o seu João, o afiador de facas. Ele se anunciava com um apito longo e agudo, que os filhotes tentavam em vão imitar.



Tinha a Tita e a Tata, as gêmeas que jogavam amarelinha na calçada. Desenhavam, com o giz, um céu lindo de sol e passarinhos.



Tinha a dona Cândida, uma velha mal humorada, e seu cachorro caolho, o Ogro. Ele sempre rosnava para a gurizada que jogava bola no meio fio.


E tinha o Bernardo, o Bê, que passava as tardes rodeado de livros, lendo à sombra da velha árvore. 



Era uma vida boa no ninho. Comiam, dormiam e contavam histórias para se inventar. 
Inventavam histórias para quando pudessem voar.

Quando suas penas começaram a crescer, Pietro percebeu que tinha uma asa torta. Mostrou para a mamãe, sempre ocupada.
- Não é nada, vai passar.

Mas não passou, e o problema só piorou. Seus irmãos começavam a dar os primeiros voos, bem curtos, de um galho ao outro. E ele sem sair do lugar.



A mamãe chamou o doutor Sabiá, que decretou:
- Esse daí nunca vai voar.
Pietro chorou.



Seus irmãos iam longe já, e voltavam cheios de aventuras e presentes. 
Uma minhoca diferente, uma flor, um galho macio. Eram legais com ele.
Mas ia chegar o dia em que não voltariam, e Pietro sabia.

Ele tinha as pernas fortes, de tanto saltar. De vez em quando tentava um pulo para o galho ao lado.
Com medo de que caísse, mamãe não deixava ele se arriscar.
Ele tinha o coração triste, por não sair do lugar.

Estava ficando muito grande para o ninho, agora. Sentia -se apertado. 
Já não achava graça de olhar a rua, nem de inventar histórias sem pé nem cabeça.
Queria vivê-las.
Adivinhava o mundo, mas não sabia. Nunca saberia.


Com o tempo, foi se acostumando a ficar.
Os dias eram sempre iguais para Pietro no ninho.
Uma tarde, no fim do verão, ele viu um menino subindo na árvore. 
Era o Bê, o garotinho solitário amigo dos livros.

Pietro ficou assustado, a mãe não estava por perto, ele estava sozinho.
Cantou alto, desesperado.
O menino subiu até onde ficava o ninho, e pegou o passarinho com cuidado.
- Coitadinho, tem a asa quebrada!


Bê então, devolveu Pietro ao ninho e desceu. Foi correndo para casa.
A pequena, da porta amarela.
Voltou instantes depois, com um livro e uma maleta na mão.
_ Vou consertar sua asa.

Olhando com atenção as gravuras do livro que para Pietro parecia mágico, Bê fez uma tala, com um pedaço de madeira. 
Esticou a asinha estragada.
No começo doeu um pouco, mas depois ele se acostumou. Agora Pietro podia abrir as duas asas e bater, de leve.
- Você pode voar! Tenta!

Ainda com medo, Pietro tentou. Um voo desajeitado, pousou meio de lado, dois ou três galhos mais abaixo.
Encorajado pelo novo amigo, voou e voou, devagarinho e ressabiado.
De lá para cá, e de cá para lá.
De galho em galho até o outro lado.
O sol se punha quando a mamãe chegou, e se assustou com a novidade. Mas ficou feliz.
Pietro estava muito feliz.

Sabia que nunca poderia voar alto. Nem longe.
Não se importava.
Dava pequenos passeios pela árvore, e de vez em quando descia para ouvir o Bê contando as histórias de seus livros de aventura. 
Pousava no ombro do menino e olhava as figuras, sua imaginação viajava.

Pietro descobriu muitos mundos assim. 
Nos livros.
Mesmo sem voar longe, nem alto.
E conheceu, assim, algumas das coisas mais importantes da vida.
A esperança, o amor e a coragem.

Porque, quase tanto como água e comida, a gente precisa de amigos.
A gente precisa que acreditem na gente, para a gente também acreditar.
E é só quando se acredita que se conquista.
As coisas todas, e a maior de todas as coisas, nossa pequena liberdade infinita.


Dani Altmayer

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Ninguém merece

"É quase uma unanimidade: 96% dos jovens brasileiros entre 16 e 24 anos percebem a existência do machismo em nossa sociedade. Mesmo assim, mais da metade dos entrevistados concordam com padrões de comportamento considerados machistas. Por exemplo: 51% deles defendem que a mulher tenha a sua primeira experiência sexual somente em um relacionamento sério; 41% afirmam que a mulher deve ficar com poucos homens; 38% garantem que a mulher que fica com muitos homens não serve para namorar e, difícil de acreditar, 25% dos jovens pensam que, se usar decote e saia curta, a mulher está se oferecendo. Os dados foram revelados hoje no Fórum Fale Sem Medo, promovido pelo Instituto Avon, em São Paulo. (…)
(…) Ainda pior do que constatar o machismo entre os meninos é perceber que o sentimento está disseminado em toda a sociedade. A pesquisa mostra que 80% dos jovens (de ambos os sexos) acha errado que as mulheres fiquem bêbadas na balada ou em bares; 76% acha errado ter vários casinhos ou ficantes; 48% consideram incorreto sair à noite sem a presença do marido ou namorado e 68% acham errado ter relações sexuais no primeiro encontro. Em todos os casos, os homens praticam tudo o que consideram inadequado para as mulheres, com mais frequência."
Fonte: Caderno Donna, Zero Hora ( 07-12-2014)

Nana Queiroz. Fonte: google images


"Duas meninas se beijam em uma festa. Isso é normal. Os meninos curtem, acham até legal.
Dois meninos não se beijam em uma festa. Aí não, né? Coisa de veado."
Mulher pelada é bonito. Homem pelado é feio.
Ela tá pedindo, com uma saia daquele tamanho. Não se dá ao respeito.
Claro que você quer, está só se fazendo. Gostosa!
Depois de me deixar louco desse jeito, não vai me deixar na mão, vai ter que dar.
O que estava fazendo sozinha, àquela hora da noite?
Coisa feia mulher bêbada.
Homens não gostam de mulheres poderosas. De mulher que pensa.
Mulher tem que ser doce, feminina. Submissa, de preferência.
Mulher gosta de ser maltratada.
Se não ficar comigo, não fica com mais ninguém. Eu mato.
Mata mesmo.
Mulher direita é dentro de casa.
Você precisa de um homem para te cuidar. Para te proteger.
Para te possuir.
Anda tão chata, deve ser falta…
Muito feia, não merece a honra de ser estuprada.

O estupro é a forma mais descabida de violência contra as mulheres. Mas é apenas a ponta do iceberg.
E o que a gente não vê?
Está na hora de mergulhos profundos para descobrir o que está submerso, pois é ali a base de tudo o que está aí fora. De toda esta merda.
Eu fico louca quando vejo alguém falar mal de feministas, que, aliás, podem ser mulheres, e também podem ser homens.
Não gosto de rótulos, mas este eu uso com distinção. Sou feminista assumida, de carteirinha e sindicato.
E, sinceramente, estou me lixando para o que possam pensar.
Não admito que depois de tanta luta, ainda estejamos submetidas a uma sociedade que faz pouco caso da gente, que nos paga salários mais baixos, que mutila suas meninas para que não sintam prazer.
Uma sociedade que nos estupra porque merecemos.
Uma sociedade machista formada de homens, e também de mulheres que tem medo do feminino.
Não sou especialista no assunto, apenas leio muito e sou curiosa.
Estudos dizem que os homens estupram as mulheres que eles pensam não ter família.
Quem não tem família?
Vejo mensagens no whatsapp em que enviam fotos de mulheres peladas, uma profusão de bundas e seios e bucetas, misturadas com as fotos de suas filhas bebês e piadinhas infames.
Fico pensando, que mundo essas meninas herdarão?
Vejo reportagens de revistas dirigidas para mulheres que nos tratam como objetos. Mil dicas de como arranjar um marido. Como enlouquecer seu homem na cama. Como ter o corpo dos seus sonhos em trinta dias.
Vejo o machismo explícito, e me assusto muito mais com o implícito. Aquele que é socialmente aceito, por eles, e por elas, por nós.
Você pode me dizer para não levar a sério, que são só brincadeiras. Ou que sempre foi assim, desde que o mundo é mundo.
Me desculpe, mas eu levo a sério sim. Isso não é uma brincadeira, e tem consequências. Graves. Basta ler jornais e ver as estatísticas.
Não consigo me calar. Não é esse o mundo que quero deixar para meu filho. Nem para a minha sobrinha. Nem para minhas irmãs, minhas amigas, e suas filhas, e as filhas de suas filhas.
Não é o que eu quero para mim, este lugar inseguro.
As coisas sempre foram assim, não. Já foram muito piores.
Mas podem ser muito melhores. Podem ser infinitamente melhores.
Se a gente tiver a coragem, todos nós. De dar um mergulho, bem fundo.
Está mais do que na hora, de dizer chega, de dar um basta!

Dani Altmayer










domingo, 7 de dezembro de 2014

Ainda ontem


Não são as rugas e os cabelos brancos que denunciam nosso envelhecimento.
Nada marca mais a passagem do tempo do que ver nossas crianças crescerem.
Longe estava o dia em que eu precisaria olhar para cima para falar com meu filho. 
Não faz muitos anos, eu pegava numa pequena mão para atravessar a rua. Hoje, é essa mão, o dobro da minha, que me segura tantas vezes, para atravessar a vida. 
"Mãe, vai ficar tudo bem. Tamo junto."
Às vezes entra no consultório algum menininho saltitante, de chinelos do homem aranha e camiseta do Batman, e o meu coração se aperta de saudade. 
É que passa tão rápido, ainda ontem eu procurava o Nemo e me divertia com o Buzz Lightyear, tinha minha unha do pé quebrada jogando futebol na areia do clube e esperava ansiosa a continuação da Era do Gelo.
Ainda ontem, eu juro.
Daqui a alguns dias meu filho se forma no primeiro grau. Uso o termo errado de propósito, para que ele me chame de velha, como um dia chamei a meu pai. E falo coisas como "no meu tempo…" 
"No meu tempo não tinha essa bobagem de formatura na oitava série, nem no ensino médio. Eu só me formei na faculdade."  Digo isso, mas só uma parte de mim acha bobagem. Outra parte, a que foi por ele proibida de chorar na tal formatura, fica toda orgulhosa. 
Na semana passada, ele foi sozinho buscar o boletim. Notas excelentes, por mérito dele, que se organiza sem que eu precise ficar controlando o tempo todo. Há anos que já não estudo junto. " Não faz mais que a obrigação", e ele sabe disso. Ainda assim, faz, e me faz feliz.
Acompanho, mesmo que à distância e com um pouco de culpa (que mãe não tem?) suas vitórias no esporte que tanto gosta, vejo o suporte de medalhas repleto de suas conquistas, resultado de muito treino, dedicação e suor. 
Olho para este guri enorme, e meu peito se enche de um amor cada vez mais alto. 
Nem tudo são flores e corações na nossa história, lógico.
Sei que estamos ao meio do caminho. 
Em plena era das espinhas, amores e humores imprevisíveis. Na era do sono e da preguiça sem fim. 
Das brigas e negociações e conversas com paredes e muros.
Na fase em que pais passam de heróis a bandidos, é agora que somos muito ridículos e é agora que quase nunca temos razão. Ao menos até doer na pele a prova em contrário. "Eu avisei"…
Ah, a paciência. A preocupação, o orgulho, as dores e as alegrias, tudo junto e misturado. Tudo o que faz parte da grande confusão que se chama vida.
No entanto, uma etapa é agora finalizada com sucesso. E eu mudo de opinião, porque desde que ele nasceu vivo mudando. Batalhas vencidas devem ser sim, celebradas e festejadas.
Prometo ser discreta, e chorar escondida.
E prometo não esquecer que nós dois ainda temos muito o que aprender. 
Eu e ele. 
"Tamo junto".
E é por isso que eu sei… vai mesmo, vai ficar tudo bem.


Dani Altmayer

Na esperança de que um dia, não agora (que é mico), ele leia meus textos, me perdoe, e saiba que isso é amor. E que é dele que vem a minha força maior para continuar, deste " amor errado mais certo do mundo."



quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Domingo de Sol



Laura estava pedalando há umas duas horas, tinha saído da Redenção para a Beira Rio, fora até o Barra, e agora voltava para casa. Atrasada para o almoço na casa da mãe do Beto, já podia imaginar a briga que se seguiria. Por tanto tempo pedira um namorado, e depois que conhecera o Beto tudo fora bem rápido. Na verdade, ele estava quase morando na casa dela. Finalmente tinha alguém para ver filme enrolada no sofá num sábado à noite. O problema é que o cara gostava demais do sofá. Além de não levantar cedo de jeito nenhum, e de tomar coca cola no café da manhã, ficava o dia todo assistindo a programas de esporte na TV da sala.

No começo, ele até ia junto nas pedaladas, mas não tinha muita disposição para exercícios. E ela bem que preferia, pedalar sozinha. Podia ouvir as músicas de que gostava, deixar a mente vagar, e o corpo suar bastante. Acordava cedo, tomava um belo café, depois saía sem rumo. O chato era aquele compromisso de alemão, rígido, almoço ao meio dia na casa da sogra, sempre maionese e carne assada. Domingo não é dia de ter agenda. Mas dona Vanda não abria mão de ver o único filho, ao menos uma vez na semana.

Laura estava quase chegando em casa quando decidiu virar numa rua antes, para pegar o jornal na banca. Beto queria olhar os classificados de emprego. Ela ainda conversou um pouco com o Chico, dono da banca, que tinha sempre uma fofoca boa da vizinhança. Olhou o celular, estava um pouco atrasada. Enrolou o jornal para caber no cesto, junto com as flores que comprara na feirinha, e quase foi atropelada por um ciclista que vinha pela calçada, carregando, na cadeirinha da frente, uma menina de vestido e capacete cor de rosa. Laura ia gritar "cuidado", mas ao ver o rosto do homem, perdeu a voz. Era o Beto.

Ele não a viu, seguiu na direção do parque numa conversa animada com a garotinha, que devia ter uns três anos e o chamava de papai. Laura foi atrás. Ele pedalava surpreendentemente rápido.

Dirigiu-se a um recanto perto do lago, onde estavam uma mulher, sentada de pernas cruzadas e um bebê, que engatinhava em uma colcha enorme estendida na grama. Um triciclo estava jogado ao lado. Uma bola cor de rosa, e uma boneca sem braços completavam o quadro, mais uma bolsa enorme de carregar fraldas e essas coisas de nenê, e alguns blocos de montar coloridos. A mulher, usando um vestido solto, estava de costas para ela. Beto encostou a bicicleta, pegou a menina no colo, e tirou seu capacete. Cachos dourados explodiram para todos os lados, e a menina gritou para a mulher. "Oi mãe! Tô com fome!"

Laura via o homem com nitidez, a mesma mecha branca nos cabelos escuros, de um lado só, na altura da têmpora direita. Os olhos azuis apertados, por conta do sol e da miopia. Beto detestava usar óculos. Não conseguia ver direito a mulher, que usava um chapéu de abas largas, tinha os cabelos escondidos num coque, e a cabeça inclinada para o bebê que agora mamava no seu peito. Ela lhe pareceu vagamente familiar. O homem pegara na bolsa um potinho com frutas picadas e dava para a menina. Dividiram uma garrafa de água. Ele abraçou a mulher por trás, e a beijou com carinho no pescoço, muitas vezes, antes de iniciar uma partida de futebol com a filha.

Laura sente o telefone vibrar no bolso, mensagem da sogra. "Poderiam trazer maionese e coca cola?" Sem tirar os olhos da cena à sua frente, responde no automático, sim. Vê as horas no celular, passa do meio dia. É domingo, não é dia de hora marcada. Suspira. Monta na bicicleta, dá uma última olhada na família fazendo piquenique. Beto não está mais à vista. A mulher limpa a boca da filha com um lencinho. Laura não consegue ver seu rosto.

Ela resolve ir embora. Pedala de volta para casa, em silêncio. Faz muito calor para agosto. Mal gira a chave na fechadura, ouve um "você está atrasada, para variar. Mamãe já ligou duas vezes".
O ar condicionado está no frio, e a TV mostra as últimas voltas da corrida.
Apesar da pressa, Beto está deitado no sofá, de cabelos molhados, os pés apoiados no encosto branco. Fumando, tranquilamente.


Dani Altmayer

Último exercício do ano para a Oficina de Escrita Criativa ( realidade e fantasia).


sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Mais uma vez


Todas as roupas espalhadas sobre a cama, as malas abertas à espera, e a inércia. Mais uma vez, as roupas e as malas, além de um porta retrato vazio, um estojo de maquiagem e três livros.
Poderia uma vida caber em duas malas?
Sentada na beira da cama, ela chora baixinho. Mais uma vez, a dor.
Pela janela aberta entra a luz tênue do fim de um dia de verão, pintando o quarto de dourado e laranja. Fora um dia quente, mas agora sopra um vento morno que a faz sentir calafrios. Segura na mão o vestido floreado, o mesmo que usara no último Natal. Ele sempre implicara com seus vestidos floreados, "coisa de hippie", dizia. Lembra da noite feliz, na casa da praia. Ouve os ecos dos risos forçados da família durante a ceia, relembra as histórias não contadas, e por tantas vezes repetidas, os presentes sempre meio fúteis do amigo secreto. Ganhara um porta retrato, com foto.
Se naquela noite ela soubesse, teria escolhido outra roupa?
Suspira, dobra o vestido com cuidado, é um vestido bonito, azul e branco, e o coloca no fundo da mala. Enxuga as lágrimas com o dorso da mão, decidida. Se uma vida cabe em duas malas, não vale a pena chorar.
Tem pressa agora. Joga de qualquer jeito o restante das roupas, o estojo de maquiagem, os sapatos e o porta retrato vazio. Senta em cima da mala maior para fechar. Não cabem os livros, que guarda na bolsa.
Olha uma última vez o quarto, já cheio de sombras na penumbra da noite que se avizinha. Respira fundo, não esqueceu de nada.
No cesto de lixo, jaz a foto, rasgada ao meio. Ele, de bermudas brancas e camisa amarela, ela com o vestido azul floreado. Dois rostos sorridentes, e um abraço, partidos.
Mais uma vez, partida.

Dani Altmayer
( Desafio)

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Haja terapia!



Como é complicado essa coisa de conhecer a si mesmo, e será que um dia a gente chega a se conhecer, de verdade?
O que é mais difícil, o auto conhecimento ou a mudança que precisamos fazer a partir daí?
Freud disse mais ou menos assim: o dia em que a dor de não estar vivendo for maior do que o medo de mudar, a pessoa muda.
Mas, e quando é esse dia?
Haja terapia!
Uma vez um amigo me falou, "não basta chegar no fundo do poço. Porque, no fundo do poço, ainda tem o ralo."
E o ser humano gosta de testar o limite, de ir até o fim, só assim para aprender.
Do contrário, se está mais ou menos, ser humano é que nem brasileiro. Vai dando um jeitinho.
São anos e anos de convivência íntima consigo mesmo. A gente se acostuma, sei lá.
Depois dizem que a gente não consegue enxergar bem tão de perto, deve ser isso. A visão embaralha, tem sentimento, atrapalha.
Ficamos apegados às ideias, que têm e que temos de nós.
Até que chega o ponto em que não tem mais jeito. Depois que toca o fundo, e passa o ralo.
Depois que carregam todas as nossas certezas, a gente se olha no espelho, tenta ser honesto.
É nessa maldita hora da verdade, que, ou a gente muda ou se conforma.
Ou segue a viagem, com mais bagagem e menos peso e mais coragem. Em busca do "si encantado."
Ou assunto encerrado, porque viajar para dentro dá mesmo um trabalho, um cansaço danado.
Então a gente faz o quê, aceita. Enfia o rabo no meio das pernas, guarda a viola no saco, tranca a mala no armário. E joga a chave fora.
Porque haja né…haja terapia.


Dai Altmayer 
(Desafio)


quarta-feira, 5 de novembro de 2014

O sonho de todo homem


Fazia tempo que ele me pedia isso. Começou como uma brincadeira na cama, para apimentar o sexo. Ele falava no meu ouvido, descrevia o que poderia acontecer, como seria, onde. Eu ficava excitada na hora, mas nunca levei muito a sério. Depois de 24 anos de casamento, a gente tem que usar a imaginação. Nada contra uma fantasia, um brinquedinho, uma venda nos olhos. Qualquer coisa serve para quebrar a rotina.
Como todo casal, a gente passou por um período complicado, quase nos separamos uns anos atrás, quando o Marcelinho foi estudar nos Estados Unidos. Acho que ele teve um caso nesta época com uma colega médica, nunca soube ao certo. Eu não queria me separar, gostava dele, não tive outro homem, nunca trabalhei, ele achava que não precisava. Toda a minha vida foi sempre em função de marido e filho, não reclamo, a vida era boa.
 Moramos numa cidade pequena, todo mundo conhece o doutor fulano e a esposa, ele é um dos diretores do hospital onde faço um trabalho voluntário, e que me ocupa umas poucas horas na semana. De resto eu corro, danço e faço academia, ele não pode reclamar, estou com um corpo bom para a minha idade, cuido da alimentação, me visto bem. Ao contrário dele, que não se cuida, que trabalha demais, é estressado, e está até um pouco barrigudo.
Quando meu filho viajou, eu passei um tempo por lá, alugando apartamento, ajeitando as coisas para ele. Depois que voltei, a casa me pareceu enorme, os dias vazios, repletos de horas que se arrastavam, Meu marido fazia muito plantão, e chegava sempre tarde, cada vez mais. Eu acabava jantando sozinha, na maioria das noites. Quase não conversávamos, tínhamos brigas terríveis. Sexo muito pouco, para não dizer nunca, eu sempre arranjava uma desculpa para evitar, ou dormia antes. Não tinha a mínima vontade mesmo.
Um dia, de repente, ele me disse que a gente devia dar um tempo. Eu achei que ele não ia ter coragem, mas teve, passou cinco noites fora de casa, num hotel. Eu ligava toda hora, ele não me atendia, entrei em desespero. Uma amiga me disse que no hospital andavam falando que ele estava de caso com a residente do terceiro ano. Aí uma noite ele voltou, não sei se tinha vindo para ficar. Eu estava fora de mim, chorava, gritava, falei que não queria perder ele para aquela vagabundinha. Berrei que ele ia se arrepender, que eu iria infernizar a vida dele, ia tirar todo o seu dinheiro, que ele não valia nada. Acho que ele se assustou comigo. Falou muito pouco, negou o caso quase com frieza, disse que o problema era outro. Depois sentou na poltrona de couro e ligou a TV, parecia distraído. Então eu me avancei nele, queria que ele reagisse. Ele me pegou pelos cabelos com força, "cala esta boca", me deu um beijo de tirar o fôlego, daqueles de início de namoro. Arrancou minha calça ali mesmo, na sala, e naquela noite transamos de um jeito como há muito não acontecia, duas vezes, e dormimos abraçados como há anos não dormíamos.
Ele acordou todo sorridente no dia seguinte, me mandou flores, cartão. À noite chegou cedo, e com duas passagens para Amsterdã. Foi lá que descobrimos as sex shops, tudo começou com algemas e um chicotinho, depois fomos experimentando outras novidades. Desde então as coisas melhoraram bastante, não vou dizer que eu estou sempre a fim,  mas estou mais disposta. Sexo é tão importante para homem, e eu não quero mais correr o risco de ser trocada por uma puta qualquer. Deixo ele ter o controle, me submeto, não nego mais quando me procura, até gosto de uma sacanagem de leve.
Uma bela noite, durante o jantar, ele chegou com a surpresa. Quase engasguei com o vinho quando ele disse que tinha tido uma indicação, que a gente não ia correr risco nenhum, que era muito tranquilo. Tranquilo? Eu confesso que fiquei com muito nojo, parecia tão fora de contexto aquele assunto, enquanto comíamos nosso peixe ao molho de alcaparras. Uma coisa é falar na hora do tesão, outra é chegar assim, tudo arranjado, com data e hora marcada. Quase disse que não, mas aí pensei em tudo o que a gente já tinha passado, pensei na residente gostosa, rodou um filme na minha cabeça. Se ele queria tanto, se era importante para ele...Concordei.
Viajamos para a serra uma semana depois, e nos hospedamos em um hotel de luxo, meio afastado, com cabanas bem separadas umas das outras. Quando chegamos, o quarto estava cheiroso e enfeitado de pétalas de rosa, e tinha espumante num balde de gelo, que eu logo comecei a beber. Havia uma jacuzzi na varanda envidraçada e aquecida, dava para ver o bosque escuro. Meu marido estava bem calmo, ao contrário de mim. Esperamos em silêncio. Uma hora depois, mais ou menos, bateram na porta.
Milena era a mulher mais linda que eu já tinha visto, uma morena de olhos verdes e peitos enormes, vestida de forma elegante num vestido preto justo e saltos altíssimos.
Oferecemos espumante, mas ela recusou. Tomou água tônica. Conversamos um pouco, fiquei sabendo que ela era artista plástica e poeta, morava na capital e estava noiva de um italiano. Não sei como tudo começou, eu já havia bebido muito, mas em pouco tempo estávamos as duas na banheira cheia de espuma. Meu marido de início ficou fora, sentado na borda e vestido de calça e camisa, enquanto ela acariciava meu corpo de um jeito que nunca imaginei. Depois ele juntou-se a nós.
Passamos a noite juntos, dividindo a enorme cama de casal. Lá pelas tantas da madrugada ele adormeceu, exausto, mas Milena continuou me tocando, e a gente não dormiu naquela noite. Eu não conseguia tirar os olhos daquele corpo perfeito, dos seios fartos e naturais, daquela pele macia e perfumada. Ela tinha um gosto doce, bom.
No dia seguinte, um domingo, meu marido tinha um congresso na capital e demos uma carona para a Milena. Paramos para almoçar em um restaurante alemão, ele tomou umas duas cervejas, e deitou-se no banco de trás para dormir. Fui dirigindo, e enquanto ele roncava, nós duas conversávamos sobre arte e sobre vida. Eu tentava prestar atenção às curvas da estrada, enquanto Milena passava as mãos pela minha coxa, subindo com seus dedos ágeis por dentro da minha saia, até me fazer gemer baixinho.
Quando estacionei na porta do seu prédio, ela pediu para esperarmos um pouco. Tinha uma coisa para mim. Subiu correndo e voltou ofegante, trazendo nas mãos um pequeno livro. "O que te falei", ela disse. Era uma coletânea de poemas eróticos, de um concurso no qual fora selecionada.
Quando chegamos ao quarto do hotel, sem trocarmos uma palavra, meu marido foi para o banho.
Eu sentei na cama, e abri o livro na página 22 para ler seu poema. No rodapé da página, rabiscado às pressas, havia um número de telefone.
"Quero te ver de novo."

Dani Altmayer

Texto para a oficina de escrita criativa

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Quem disse?

Não precisa ser muito.
Nem ser tanto. Menos ainda ser tudo.
Mas tem que ser o suficiente.
Sempre. No mínimo.
E o suficiente é isso.
O suficiente é o bastante.
Mesmo que seja pouco.

Dani Altmayer

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Coisas de Mulher


O corpo da gente é uma máquina que funciona sozinha, e, quando tudo vai bem, nem lembramos que ele existe, na maior parte do tempo. É nosso veículo, mas de um jeito ou outro não estamos lá muito atentos às suas funções. Respira-se sem consciência, e o coração, mesmo quando partido, continua batendo, teimoso.
Até  que um dia o corpo nos prega uma peça.
Acho que hoje nem se usa mais um médico vestir-se todo de branco, mas eu tinha este costume, por causa do meu avô, que era um daqueles médicos de família bem tradicionais. Lembro que ele dirigia um galaxy verde, e às vezes me levava junto em suas consultas, com a condição de que eu ficasse quietinha para ganhar um sorvete depois. Eu adorava. Meu avô parecia um anjo, vestido de branco, e foi com ele que aprendi a amar a medicina.
Já não tenho mais consultório faz tempo, desde que publiquei meu primeiro livro e passei a me dedicar às pesquisas e área acadêmica, mas segui usando branco no trabalho. Faço palestras em empresas e participo de congressos nacionais e internacionais, viajo muito e acho o branco prático e elegante.
Achava.
Em uma ocasião, eu estava em Buenos Aires para apresentar meu projeto de pesquisa num congresso de psiquiatria. A platéia, lotada de renomados colegas, era na sua maioria formada de homens. Bom, estava começando a projeção dos gráficos quando senti uma cólica. Disfarcei uma careta de dor, e segui demonstrando meus dados, sem dar muita importância. Alguns minutos depois, outra pontada, mais forte, e uma sensação de calor no meio das pernas. Sem parar de falar, pensei "não pode ser, menstruei há uma semana."  Olhei para minhas calças de linho branco, e lá estava ela, inconfundível, uma mancha vermelho- escura. Lembrei de quando eu tinha uns quinze anos, e fiquei menstruada na escola, uma colega, no recreio, avisou que minha calça jeans estava suja na bunda. Alguns meninos perceberam e começaram a rir. Consegui um casaco de abrigo com a Ritinha, para amarrar na cintura, e fui para casa chorando. Passei dois dias com cólicas terríveis e sem colocar o pé no colégio, morta de vergonha.
Só que agora, eu não tinha quinze, e sim 46 anos de idade. Meus ciclos sempre haviam sido regulares, depois daquela fase inicial. Havia esquecido que uma mulher na pré menopausa é como uma adolescente no que se refere a suas funções hormonais. Totalmente descontrolada. Isso explicava então o súbito ataque de fúria que eu tivera no dia anterior. Meu marido até brincara "está naqueles dias".
Estava lá eu, então subitamente consciente de todas as funções do meu corpo. Sentia o coração acelerado, aos pulos, a respiração pesada, a boca seca, tinha uma cólica insuportável, e pensava "e agora?" Enquanto falava, porque, não sei como, segui falando, a vontade que eu tinha era de chorar, de abrir um buraco no chão, de sumir dali. Minha mente se distanciou do meu corpo, que suava frio, molhando a fina camisa de seda branca. Enquanto explicava meus resultados, senti saudade da Ritinha. Eu queria seu abrigo.
O auditório estava ainda na penumbra, mas em breve as luzes se acenderiam para dar início às perguntas.
Foi naquele instante que decidi. Sinto muito, vovô. Branco não mais.

Dani Altmayer

Exercício oficina de escrita- fácil, fácil: " Pessoa contrangida em seu trabalho, sente subitamente algo físico( dor de barriga, etc) , que a atrapalha no curso de sua atividade."
O texto não andava, e acabou saindo em forma de crônica. ;)

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Desabafo




Quando fui morar em São Paulo, ainda no século passado, eu tive uma empregada doméstica chamada Bia. Ela era baiana, e morava em SP há alguns anos. Tinha fugido da miséria de sua terra natal, e  trabalhava para uma família que a pagava bem. Mas não estava feliz. Ela não sabia pegar sequer um ônibus sozinha, tinha medo de tudo, sentia-se insegura na cidade grande. Morava na casa desta outra família, e em tudo dependia deles. Não saía nem nos finais de semana, a não ser que eles a levassem, de carro, para ver os primos que moravam por lá. Ela veio trabalhar comigo por um motivo. Porque eu a ensinei a se locomover. Aprendemos juntas, porque eu também andava de ônibus. Dois anos depois, ela foi viver a sua vida, bem faceira e independente.

Ontem fui ao banco, antes do horário de abrir. Uma mulher que estava com os dois filhos no auto atendimento da Caixa, veio me pedir ajuda para ver o extrato do bolsa família. "Moça, eu sou analfabeta". Tinha a senha escrita na carteira de trabalho, perguntei se ela queria tentar. Ela respondeu, "não, morro de medo deste negócio aí". (Do cartão). Perguntei se os filhos não poderiam aprender. "Eles também não sabem ler". Não vão à escola? "Sim, mas não sabem ler. " Os dois meninos corriam de um lado para o outro. Tirei o extrato, e saquei duzentos e poucos reais para ela.

Ajudei a moça, mas fiquei frustrada.

Não escrevo para criticar o bolsa família, e nenhuma das ações sociais que acho louváveis, de verdade.
Critico sim, o paternalismo e a falta de investimento na educação básica, a falta de investimento na liberdade pessoal, porque ninguém é livre sem poder andar com as próprias pernas, mesmo que tenha dinheiro. Infelizmente, não basta.

Eu sou privilegiada, e reconheço. Pertenço à elite, e podem me chamar de burguesa, não ligo, apesar de não gostar de rótulos ou definições que me limitem.
Completei minha formação em escola pública, por opção. Estudei muito para passar no vestibular, numa federal. Mas sempre tive todas as ferramentas à minha disposição, comida, amor e livros. Então, sou sim, privilegiada.
Sou médica, não trabalho no SUS.
Isso não quer dizer que eu viva numa bolha, ou seja alienada. pelo contrário. Ando de ônibus, saio de casa às sete horas da manhã, atendo gente muito simples, de poucos recursos, conheço suas histórias, converso muito no meu atendimento. Não poucas vezes me entristeço e me desespero com seu sofrimento, com suas dores e suas mazelas. Ajudo como posso, e nem sempre posso.

Não sei quem vai ganhar estas eleições.
Não entendo de política ou economia, menos ainda de socialismo.
Não sei nem se entendo daquilo que mais gosto, que é de gente.

Só acho que está na hora de mudar, e começar a ensinar esta gente, de verdade.
Seja quem for que vá governar este país a partir de então, que tenha como principal meta a educação.
O princípio de tudo. No seu nível mais básico, no ensino fundamental mesmo, para que aqueles meninos que corriam ontem na Caixa possam ajudar sua mãe a não ficar à mercê de homens de má fé. Para que aprendam a ler, escrever, raciocinar e agir por seus próprios pés. Para que possam escolher. Para que tenham um futuro como os cidadãos reais que são e não percebem ser.

Porque, me desculpem a rima pobre, sem educação não há inclusão. É só ilusão. E estamos todos desiludidos, sem exceção.

Eu hoje estou, além de desiludida, triste, porque transformaram eleição em guerra suja, Nós contra eles, e não deveria ser assim. Porque eles somos nós, e nós, quem somos, se não eles?
Acho que este é um bom momento para se pensar a respeito. Para se pensar o respeito.
Toda mudança começa dentro. Sem hipocrisia.
"Atire a primeira pedra quem nunca pecou"
Eu descobri que peco todo dia. E você?
Tudo que aí está nada mais é do que um reflexo do que aqui está.

Se minha calçada é meu dever de cuidar, e está toda esburacada, como posso apontar o meu dedo para a calçada alheia?

Vivemos numa sociedade que espera. De Deus. Do governo. Do outro.
Chega!
"Quem sabe faz a hora", não é isso?

Então, está na hora de mudarmos este padrão. De assumirmos as rédeas, e nos tornarmos responsáveis por nossas escolhas, com suas inevitáveis consequencias. Que ninguém nunca sabe, com absoluta certeza, se serão boas ou  más. Só o tempo irá nos mostrar. Sempre o tempo, este senhor implacável da verdade.
Mas que hoje sejam as melhores escolhas que podemos fazer, conscientes daquilo que acreditamos e queremos. Para todos nós, que somos um neste exato instante.

Ninguém é dono do tempo, não. Mas cada um é dono de sua própria história.

Dani Altmayer





terça-feira, 21 de outubro de 2014

Cabelos vermelhos




Você ao menos podia ter esperado eu segurar a sua mão, eu tinha tanta coisa para te falar, e o que eu mais precisava dizer não ia demorar mais do que um minuto. Eu queria ter podido dizer que te perdoava, sabe, como nos filmes em que as pessoas morrem e no instante final fica tudo bem, todos os erros são redimidos e a pessoa morre sorrindo, vendo uma luz, ou seja lá o que for, e quem fica chora e aceita a vida como ela é, com início, meio e fim. Mas nunca foi assim, com a gente, nunca foi como eu queria, você sempre fez do seu jeito. Eu não estive nos seus planos, a minha hora sempre foi errada.

Hoje eu fui ao cemitério te ver, levei umas flores amarelas lindas, fiquei olhando a sua foto no túmulo. Sabe, as pessoas sempre falavam, você era tão parecida comigo, os olhos, a boca, o cabelo vermelho. Era a minha cara naquela foto, uma perfeita estranha sorrindo em preto e branco, que sensação esquisita, se olhar num espelho de mármore.

Não consegui chorar, nem no avião, nem no cemitério, até agora não derramei uma lágrima, e acho que por isso tenho uma dor que esmaga o meu peito, e não me deixa respirar. Liguei para o Luís, foi ele quem disse para eu escrever para você, que isso ia me aliviar. Amanhã ele vai me ver, vai prescrever um remédio que eu não vou tomar, cansei de tanto remédio, não tomo mais nada, desde que fui embora.  Nem para dormir. Foi tão estranho ouvir a voz dele, tão familiar e rouca, depois de tanto tempo.

Lembrei daquela vez que fiquei no hospital com ataque de asma, e durante o dia a Rosa ficava comigo para você trabalhar, e à noite eu ficava sozinha, abraçada com o Teddy, no escuro, não conseguia dormir de saudade, quantos anos eu tinha, uns dez, acho. Estou me sentindo daquele mesmo jeito, um aperto, uma solidão sem ar, só que sem o Teddy desta vez. Você botou fora, quando eu fiz doze anos. "Não é coisa de mocinha", determinou. Ele estava todo desbotado e velho, mas eu o adorava.

Eu queria ter estado ao seu lado, e ter segurado a sua mão quando você partiu, e ter dito que te perdoava. Queria ter podido contar dos caminhos por onde me desviei, e foram tantos, tantos desvios para chegar até aqui, nesta casa vazia. Aliás, gostei de ver minha foto na estante da sala, a foto que te mandei da Austrália, eu estava feliz naquele dia. Eu nunca te disse, mas eu fiz um aborto quando morava lá. Não me recrimine, você não me recriminaria, eu sei. Porque fiz aquilo que você deveria ter feito, mãe.

Agora quem tem que ter coragem sou eu, para mexer nas suas coisas, fechar esta casa enorme, vou vender tudo, para não ter que voltar. Eu só queria que você segurasse a minha mão, que você me perdoasse. Queria chorar um pouco, preciso, para poder respirar, mas está tudo trancado aqui dentro. Faz frio, vesti uma blusa sua, ainda tem aquele perfume forte, que me dava alergia. Você tinha tanta roupa bonita, tanto sapato e tanta bolsa.

Precisei usar a bombinha, fazia anos que não tinha uma crise.

Vou continuar morando em Londres, mãe, vou casar ano que vem. Um dia eu vou ter uma filha, ou um filho, ou os dois, quando for a hora certa, porque eu quero muito. E talvez eles tenham os mesmos cabelos vermelhos, e os olhos tão verdes como os seus.

Dani Altmayer

Exercício para a oficina de escrita criativa
( Mãe sem "instinto maternal", ou melhor, que não nutre pelo filho nada do que é positivo na maternidade)


quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Mesa para dois





" Você fica com a sua certeza, então. Eu fico com Paris. "
A frase martelava em sua cabeça há dias. Não era um mau consolo, Paris. De jeito nenhum.
"Você fica com a sua certeza. "
Ela estava atrasada. Fazia muito tempo que não jantavam fora, só os dois. Um ano, desde o último aniversário de casamento. Ele havia comprado flores, rosas vermelhas colombianas. Pedira ao garçom para colocar em um vaso, e para acender as velas. Era um destes restaurantes escuros da moda, que ela escolhera. Ele colocou os óculos para conferir o celular, enquanto bebericava seu uísque sem gelo. Nenhuma mensagem, melhor assim.
Já passava das nove quando ela chegou. Vestida com elegância, tinha o rosto corado, e a fala meio arrastada. Andara bebendo, de novo.
- Espero que não tenha vindo de carro.
- Vim de táxi, como você pediu. Lindas as rosas, obrigada- ela agradeceu, sem sorrir.
Pediram um espumante e uma água com gás. Ela esquecera os óculos, como sempre, não gostava de usar. Ele leu o cardápio inteiro para ela.
- Você precisa mandar fazer um óculos novo, amor. Há quanto tempo este está assim remendado?
Ele não respondeu, fazia meses. Fez o pedido ao garçom, salmão grelhado para ele, filé para ela, uma salada de entrada.
Brindaram aos quinze anos de casamento. 
- Que venham mais quinze!- ele desejou.
Ela concordou, revirando os olhos. Ele fingiu não notar, e conferiu o telefone. Nada.
- Que horas são?
- Vinte para as dez. Até que horas a babá pode ficar?
- Até as onze.
- Você se atrasou.
- Fiquei de papo com a vizinha nova, tomamos uma taça de vinho. Uma velha muito interessante, já andou pelo mundo todo. Viúva de diplomata.
- Hum.
- Falando nisso, como estará a Stella? No dia da mudança ela me contou que ia estudar na França,  mas não parecia muito animada. Ela era meio estranha, né?
Ele não respondeu. Baixou os olhos para o celular que piscava. E mail do trabalho.
- Vou lá fora fumar um cigarro.
- Achei que você tinha parado.
- Tinha.
A noite estava fria, e ele saíra sem o casaco. Um casal  discutia, mais adiante. Ela começou a chorar de repente, e o homem a abraçou com firmeza. Beijaram-se.
Ele desviou o olhar, apagou o cigarro, e entrou. 
- Chegou a salada.
Comeram em silêncio, ela pediu outra garrafa. Ele tomou a água. O celular estava piscando, de novo. Mensagem da sua mãe," parabéns e vida longa ao casal."
O flié estava cru, voltou para a cozinha. O salmão tinha gosto de borracha.
- Não sei o que você viu neste restaurante.
- Saiu no caderno de gastronomia.
Dispensaram a sobremesa. Ela esvaziou sua taça. Ele pediu um café e a conta.
- O senhor poderia chamar um táxi, por favor?
Ele tenta segurar a mão dela, que o afasta, irritada. Bebeu demais.
No táxi, a caminho de casa, ela adormece em seu ombro. Seu cabelo cheira bem, e um perfume adocicado invade sua lembrança. Ele sente-se um pouco tonto.
Confere o celular, que vibra. Uma mensagem do cunhado, emails de propaganda. Suspira. Melhor assim, com certeza.
- Chegamos.
Ela esfrega os olhos, e soluça:
- Amor! Esquecemos as rosas no restaurante.

Dani Altmayer

Exercício  para a oficina de escrita criativa-
"Triângulo amoroso"

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Dia do Professor








"Se deres um peixe a um homem faminto, vais alimentá-lo por um dia. Se o ensinares a pescar, vais alimentá-lo toda a vida. "  
 Lao- Tse



Hoje pela manhã, história real:
Peço que ela assine seu nome. Chama-se Kayla. Ela pega a caneta com a pontinha dos dedos e desenha, com cuidado, seu nome na linha pontilhada. Erra uma letra e risca, bem forte, rasurando a assinatura redondinha. Kayla é auxiliar de serviços gerais, ensino fundamental completo. Tem 32 anos.
Na teoria, ela sabe ler. Mas, na prática, ela não sabe o que é teoria.

Quando eu era criança, enfileirava as minhas bonecas e escrevia no quadro verde, brincando de dar aula. Usava minha irmã caçula de cobaia. Se me perguntassem o que eu queria ser, quando crescesse, a resposta vinha pronta: professora. Eu tentei, mas depois de algumas escolhas arrependidas, o teste vocacional apontou para medicina. Descobri que não tinha vocação para ensinar.

Vocação, talento, aptidão natural. Do latim "vocare", que significa chamar.
Respeito  e admiro imensamente quem faz esta incrível escolha de doar-se para outro ser humano.
Quem tem a coragem de responder a este chamado.
Ensinar é ter fé. É um ato de desesperada esperança.
É coisa de gente meio maluca, de gente muito boa, de gente que acredita em gente.
Que não cabe em si e transborda para o outro.

Não basta somar dois mais dois, e ler a placa do ônibus. Só se deixa de ser analfabeto quando se consegue compreender.
Quando histórias são contadas. Interpretadas. E reescritas.

Educação é a única forma de revolução, eu acho. Gente que lê e reflete, não fica à mercê.

Assim como mais médicos, não precisamos apenas de mais professores.
O buraco é bem mais embaixo, literalmente.
Precisamos de melhores condições, melhores salários, melhor valorização.
Melhor tudo.
Precisamos de estrutura e reforma, urgente. Nos fundamentos.
Precisamos de um olhar atento lá no começo. Na base.

Para que pessoas como a Kayla , que sabem ler e escrever, não errem seu nome. Jamais.

Só assim para mudar o que aí está.
Só assim para fazer alguma diferença.

Liberdade é saber pescar.

Dani Altmayer



domingo, 12 de outubro de 2014

Pequeninos- Fragmentos




O sol é assim, meio exibido.
Está sempre sorrindo.
E se de repente, ele fica triste, se tapa de nuvens para chorar escondido.



Eu não gosto de desenhar chão, prefiro céu. Mas a professora disse que precisa de chão.
Pode ser grama, então? Porque de grama eu gosto, e grama é um tipo de chão. Que não dói.



O chafariz está desligado.
O menino fica triste :"a água foi dormir, mãe."




Não admira este cansaço.
Esqueceram de me dizer.
Não se para aos dezoito. Não se para nunca, de crescer.



   
                   CLASSIFICADOS
    
    Urgente!
    Troca- se um grilo falante por um anjo da guarda.


Porque tem parte da gente que não cresce nunca...

Dani Altmayer


segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Chá das Cinco e uma outra história.

                                     


                                  Chá das Cinco

- Minha filha quer contratar um jardineiro para cortar a grama. Disse que paga.
Era um final de tarde, e estavam as três tomando chá na varanda dos fundos, aproveitando o clima ameno do início da primavera. O jardim, comprido e estreito, que um dia fora o orgulho das irmãs, estava mesmo com ares de abandonado. Fora um longo e úmido inverno. Apesar das rosas já terem florescido, o capim estava alto e vários arbustos de ervas daninhas haviam brotado ao longo do quintal.
Havia chovido mais cedo, e um cheiro de terra molhada misturava-se com o perfume doce das senhoras e ao cheiro do bolo recém saído do forno.
Uma súbita brisa as faz estremecer, e apertar os casacos junto ao corpo. Ainda está frio para ficar na rua a esta hora.
- Estamos velhas demais para um jardim. Talvez fosse melhor mandar cimentar o pátio.



                                                    O Visitante
                                                 

João força a fechadura, e entra na casa com a tranquilidade  que só um hábito pode trazer. "Qualquer dia elas vão me servir café", pensa, e sorri. Olha ao redor e percebe mais uma vez o capricho nos detalhes, a limpeza extrema, o cheiro de biscoitos de ervas assados no forno. Sempre tem este cheiro, ali. Mesmo que elas não tenham assado biscoito nenhum. Pelo menos não tem cheiro de mofo, como na casa da tia dele.
O gato branco está na estante, como sempre, os pêlos ouriçados, dentes arreganhados. João não gosta de gatos, são traiçoeiros. Mas este está tão velho que não lhe mete medo.
Não tem mais ninguém em casa. Ele prefere assim, por isso escolhe a hora da feira, ou da missa. Nem sempre tem sorte, às vezes uma delas está doente, ou cansada.
Faz tanto tempo, que ele até sente um certo carinho pelas três irmãs. Tem um pouco de pena delas, bem se vê que a família não liga muito. Só que não é problema dele, o problema dele é outro. Tem que achar o esconderijo da vez.
Senta um pouco no sofá puído, e olha ao redor. "Por que velho gosta tanto de caixa e porta retrato? "
Estende o braço e abre uma caixinha de música, que começa a tocar. Põe a bailarina para girar. Há muito não tem jóia nenhuma ali. Ele gosta da música. Distraído pelo som da valsa, não percebe os passos atrás de si.
De repente, sente algo gelado e duro encostando no seu pescoço.





Dani Altmayer

PS Exercício sobre finais, para a oficina de escrita. Mote:
"Três velhinhas viviam sozinhas em uma casa de periferia, e eram constantemente atacadas por um ladrão. Até que uma delas consegue um revólver e mata o assaltante. Não chamam a polícia, e o enterram no quintal."
Primeiro final- fechado
Segundo final- aberto

domingo, 28 de setembro de 2014

Que vença o melhor





"Eu tenho medo deste amor tão certo, pois com ele está perto, meu princípio e meu fim. "
Este é o trecho de um poema que eu gostava quando era adolescente. Não sei de quem é, mas é mais ou menos assim que lembro, sem muita exatidão.
Memória nunca é algo confiável, mesmo. Memória é construção.
"Eu tenho medo deste amor tão certo."
Isso sempre me intrigou. O medo do amor.
E eu tenho medo deste medo. Deste medo que tenho.
E que você também tem, eu sei.
É  ele que, por vezes, impede o amor de acontecer.
Ele é tudo o que o amor não é. Se o amor é um bote salva vida, o medo o põe à deriva.
Se o amor é bússola, o medo é a tempestade que rasga suas velas.Se o amor te encontra, o medo te sabota. Se o amor te enleva, o medo faz uma toca. Enterra. Amarrota.
Eu tenho medo. Do medo. Do amor.
Para o amor, são tantas perguntas. Para o medo, só existem duas respostas.
O medo tem, tão somente, duas estreitas saídas.
Ou lutar. Ou fugir.
Nenhuma delas serve ao amor.
Se o amor é entrega, então o medo é a guerra.
Porque amor é poder, vontade, verdade. Infinita possibilidade.
Medo é falta de esperança. Falta de fé.
Medo é emboscada, e trincheira.
Ter medo é, ao ver o barco afundando, agarrar-se ao mastro, na ilusão de não cair no mar.
Mas amar é se afogar. Aliás, amar é mar.
É morrer sem saber, e seguir respirando. Melhor.
Amar é permitir, dissolver. É perder tudo, para depois encontrar mais.
Amar é total rendição, e paradoxal liberdade.
E é escolha, não tem outro jeito. Sempre só cabe um, dos dois.
Ou o amor, ou o medo. No peito.
Se um entra, o outro sai. Isso é inevitável, visto que eles não se suportam.
Amor é desapego, e coragem. Oposto do medo.
É uma luta constante. Amor X medo. Medo X amor.
Eu, apesar do medo que tenho, e admito, torço para o amor, que também tenho, e confesso. Quero que o meu amor seja sempre maior.
Dizem por aí que o amor conquista tudo. Eu acredito, mas tenho algumas ressalvas.
Ainda que vença o amor, não há certezas. É sempre, só o início. Começo de uma aventura. De riscos imensos, incalculáveis, intermináveis.
Porque, tal como a memória, e a vida, aliás, o amor não é confiável.
Não. Não tem garantia.
Ele é tudo, menos certo. Mesmo tão perto.
Amar é contínua atenção.
Amor é também construção.
E todo amor é sempre um fim, e um princípio, sem fim.
Todo dia, mais uma batalha. Nesta guerra, diária, eterna.
Do amor contra o medo.

Dani Altmayer


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segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Pensamentos floridos

Nesta noite muda a estação. Chegam os ventos, as flores e os dias mais longos.
A primavera é a minha época favorita do ano. E da grande maioria.
Adoro.
Deve ser por causa do cheiro. Ou da poesia.

Nem sempre é primavera.
Mas quando é, como é bom!

Sonho é também semente que se cultiva.
No terreno fértil das infinitas possibilidades.
Onde a fé é adubo, a esperança é chuva, e o amor, pura luz.
Tudo que não pode faltar, tudo que torna a semente viável.
Que os melhores sonhos desabrochem nesta primavera. 
E se transformem em belas, coloridas e perfumadas realidades.




Dani Altmayer

domingo, 21 de setembro de 2014

Nas Asas da Borboleta

O céu está azul, e o sol brilha com sua força quase primaveril, enchendo a sala de luz e calor. Mas não foi o dia todo assim, neste último domingo de inverno. Há poucas horas estava nublado, ventoso, e fazia frio. Pouco depois, choveu. O tempo está indeciso. Mesmo agora, ainda existem nuvens escuras, indicando que a qualquer momento tudo pode mudar.
E tudo muda, mesmo. O tempo todo. Todo mundo. No mundo, lá fora. No mundo aqui dentro.
É natural.
"Se hoje eu te odeio amanhã lhe tenho amor."
Metamorfose ambulante, sim. Por que não?
Uma verdade é derrubada a cada instante, uma história é modificada a cada segundo, porque a vida é isso: fluxo, correnteza e troca de estação.
Uma nova informação, o batucar de uma caneta, a mudança de um móvel do lugar.
A escolha deste, e não daquele. Vestido, caminho, amor.
Um desencontro, um mal entendido, um resgate.
A semente que se plantou, a que se regou, a que se perdeu.
Uma flor que nasceu nas pedras, só porque o vento carregou o grão.
Uma flor que vingou, contra todas as evidências.
Para um sonho que fracassou, outro se realizou. Outro ainda, de repente, se acabou .
Tudo passa. Muda de sentido. Tudo se transforma.
Coisas acontecem o tempo todo, coisas que fogem ao nosso controle.
E o controle é nossa grande, imensa, perdida ilusão.
O apego, nosso doce e ledo engano. Um fantasma camarada, delírio, alucinação.
Se cada evento modifica o outro. Se para toda ação há uma reação. Se ela nem sempre é previsível.
Nada pode ser insignificante, ou definitivo.
É o efeito borboleta, a teoria do caos, um bater suave de asas, um furacão. Ordem e desordem.
Hoje sim, amanhã talvez, um belo dia não. E vice versa.
Para sempre é um lugar que não existe.
O que existe é alternativa e adaptação. Atenção e renovação, constantes. Dos votos, das certezas, da direção.
É preciso saber que no "balanço das horas tudo pode mudar." E, mesmo que tenha sol agora, e tem, e mesmo que você saiba a previsão, e acredite, não custa levar um guarda chuva na bolsa. Por precaução.
Não dá para confiar nas borboletas.
E olha, quanto sofrimento poderia ser evitado.
Se não construíssemos tantas prisões com os tijolos de nossa rigidez.
Tantos muros feitos de nossa inquestionável razão.
Quanto sofrimento seria evitado.
Se não houvesse nunca, em hipótese alguma.
Nenhuma opinião formada sobre nada.
E, se, acima de tudo, a gente não se importasse de voar no vento. Quando ventasse.
Ou de dançar na chuva, de vez em quando.
Quando chovesse.




Dani Altmayer




sábado, 20 de setembro de 2014

Ele



O plantão estava calmo, até então. Distraído com a leitura do caderno de cultura, estremeceu quando o telefone tocou.
- Doutor Carlos, chegou uma internação. Veio de ambulância!- avisa a recepcionista, gritando.
O médico idoso dobra com calma o jornal, e enquanto se dirige devagar à emergência, pensa na esposa, que também grita quando fala com ele. Este é um dos motivos pelos quais ele vem adiando a aposentadoria, indefinidamente. Continua a fazer parte do conselho do hospital psiquiátrico, no qual foi diretor por anos, e ainda faz plantão na internação, duas vezes por semana.
De natureza discreta e gestos contidos, nada parece abalar o humor fleumático do elegante doutor.
Ao chegar na sala de emergência, ele vê uma mulher estendida na maca. Um residente estava com ela.
- Tentativa de suicídio, doutor Carlos. A camareira do hotel a encontrou, os punhos cortados. Cortes superficiais, já fiz um curativo.
A mulher tem cerca de sessenta anos, e parece calma. Está de olhos fechados, a mão sobre o rosto. Chora baixinho.
- Você sabe o nome dela?
-  Ana.
- Bom dia, Ana- toca suavemente o braço da mulher.
Ela abre os olhos escuros, e ao vê-lo, dá um grito de pavor:
- Você!
O médico fica pálido, e trêmulo, encosta na parede para não cair. "Não pode ser".
- Você! Major Bauer!
- Doutor, o senhor está bem?
A mulher, agora aos berros, fala palavras desconexas, tentando levantar da maca. Chama pela filha, e grita por socorro, em franca crise de histeria. O residente amarra suas mãos, e percebe, por baixo do corte no punho, algo parecido com uma tatuagem. Aplica-lhe uma injeção na veia, para que se acalme. Ela apaga, aos poucos, murmurando… "monstro".
O jovem volta-se então para o médico mais velho, que parecia prestes a desmaiar.
- Sente-se, doutor Carlos. Enfermeira, por favor, traga um copo de água.
Após medir a pressão, e verificar que estava tudo bem, o residente pergunta:
- Major Bauer? Não entendi nada. Esta mulher o conhece, doutor?
O médico idoso levanta a cabeça. Os olhos claros parecem de vidro, e ele o olha como se não o enxergasse. Está numa espécie de transe. Transportou-se para outro tempo, perdido numa lembrança recém desvendada.
Muitos anos atrás houve uma guerra. E um campo de prisioneiros. Ela era uma menina bonita, pouco mais do que uma criança.
Uma menina que ele quis. Uma criança linda. Ana.
- Não tive culpa, não tive, não tive culpa - balbucia.
O residente o sacode pelos ombros:
- Não teve culpa de quê, doutor? Do que o senhor está falando?
Doutor Carlos parece acordar, num estalo. Pigarreia, e, novamente no comando da situação, olha para o residente, decidido:
- O que esta mulher acabou de ter foi um surto histérico. Associado à tentativa de suicídio, melhor manter a paciente sedada, até segunda ordem. Peça à enfermeira para entrar em contato com o hotel, e descubra o nome da filha. Veja também a idade, é importante. Anote na ficha, terapia de escolha: eletrochoque e sedação.
Dito isso, levanta-se sem dificuldade, e segue pelo corredor do hospital, a passos largos.
Olha para as paredes descascadas, aspira o cheiro de desinfetante e álcool. Naquele lugar passou mais da metade de sua vida.
Suspira, resignado.
Talvez sua mulher tivesse razão, afinal. Estava na hora de se aposentar.

Dani Altmayer

Texto exercício da oficina de escrita criativa. Editado.
Tema: "Um homem, que esteve na guerra, tem um trabalho qualquer, um dia algo acontece, e o passado vem à tona." Deveria haver uma epifania. Tenho dificuldade com epifanias. ;)
E tive muita dificuldade com este texto.
Mas valeu o desafio.
Nada de parar no meio do caminho, isso não. Por pior que seja.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

No Infinito

   
                                                                               

                              Vidas paralelas.                            Não se encontram.
                                           
                                                   

 Dani Altmayer

domingo, 14 de setembro de 2014

Medo do Espelho

"Vamos pedir piedade
Senhor piedade
Para esta gente careta e covarde"

Mulher ao Espelho - Pablo Picasso

Todos somos narcisos fixados em nosso reflexo no lago.
E os outros são caleidoscópios formados por cacos de um único e imenso espelho.
O espelho para o qual perguntamos, sem cessar.
Existe alguém mais belo do que eu?

A parte não reflete o todo, como deveria. Ao menos, não tão de perto assim.
O que eu vejo, quando te olho, a não ser um pedaço de mim?
O que vê quando me olha, senão uma projeção de si?

Passeamos pelo mundo buscando nossos reflexos nas vitrines de almas alheias.
Por vezes os encontramos, inteiros. Belos, na luz perfeita da verdade, do amor.
E isso é muita sorte.

Outras vezes nos vemos distorcidos. Irreais.
Perdidos, como na sala de espelhos de um parque de diversões. No labirinto dos medos.
E isso não é azar.
É apenas o espelho que agora escolhi.

Alguns espelhos emagrecem. Outros, engordam.
Uns mostram cada pequena imperfeição. Outros disfarçam, cada uma delas.
E alguns, ainda, desvendam aquilo que mais tememos enxergar.
Mostram o outro lado.
E, do outro lado, tem o outro.
Tão igual, tão diferente. De mim.

Tenho medo do que me reflete e me é tão estranho.

Levo um susto:
Por que eu?
Por que não eu?
É, já dizia Caetano. Narciso acha feio o que não é espelho.

Cacos podem espelhar, brilhar.
Ou cortar. Cegar.
Machucamos o outro, porque não nos sabemos ele.

Não nos sabemos cacos, que são os outros, e também somos nós.
Pedaços de um todo, mas as peças mais diversas.
De um mesmo, gigante e complicado quebra cabeça.
Deste enorme imperfeito espelho.
Que quase ninguém parece entender. Ou ver.


Dani Altmayer
( Reflexões sobre preconceito)





quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Sempre Tarde Demais

"Ah, o amor
Que nasce não sei onde, vem não sei como e dói não sei porquê."
Luis de Camões




Tem gente que não precisa de óculos, mas não consegue enxergar um palmo à frente do nariz.
O Carlos Eduardo:
- Amar é um pouco como dirigir na neblina. Tem que ir devagar- filosofa.
Está bêbado.
-Sim, meu bem, mas não TÃO devagar, né?
Estamos os dois deitados no sofá, um para cada lado, nossos pés se tocando. Eu de meia, ele sem. Acabamos de abrir a segunda garrafa de vinho.
Cadu é meu melhor amigo. Nem por isso deixa de ser um idiota. Desde que chegou, não para de falar na Helena. Tem coisa mais chata que dor de cotovelo alheia?
- O que você acha que deu errado, Nina?
Ah, tudo, Carlos Eduardo, tudo deu errado. Eu poderia dizer, mas não digo. Sirvo mais um pouco de vinho.
- Bebe.
Ele começa a chorar. Alcanço a caixa de lenços. Ele é muito sensível, o Cadu.
A Helena deu um pé na bunda dele. Estavam juntos há uns 3 anos, e olha, até que durou.
-Tinha tudo para dar certo.
Tudo, menos o Carlos Eduardo.
Ele não trabalha,para começar. Estuda, está na terceira faculdade, tem uma bolsa de pesquisa. Mas com 35 anos, ainda mora com a mãe.
A Helena é uma mulher independente, separada, tem uma filha pequena .
Mas isso não seria nada. O pior é a mania que ele tinha, ou tem, de sumir, de vez em quando. Vai para a caverna, como diz. Não atende o telefone, não responde mensagem. Passa uma ou duas semanas sem sinal, e depois volta. Na maior cara de pau. Cansei de avisar. A Helena sofria.
Um dia, a Helena se encheu. Arrumou as coisas dele, colocou em três sacolas de supermercado, e deixou com o porteiro. Mudou a fechadura, sem avisar.
- Nina, com o porteiro, acredita? O Luis, um baita fofoqueiro.
- Hum…
- E assim, do nada, do nada?
Carlos Eduardo não para de falar, e eu já nem estou escutando. Preciso de mais vinho.
Olho para a taça, contra a luz do abajur, e deixo meus pensamentos divagarem, enquanto o Cadu choraminga.
Nunca é do nada. Mas tem gente que não percebe os sinais.
Uma flor que não é oferecida, uma lâmpada que não é trocada, uma gentileza perdida. Oportunidades que se vão, para sempre.
Uma falta de respeito, depois outra, e lá escorre a admiração pelo ralo, junto com a louça que não foi lavada.
Uma conversa adiada, e se acumulam os silêncios.
Os "eu te amo" esquecidos, negados, adiados.
Não retribuídos ou nunca ditos.
Vai tudo para um lixão. O limbo.
- Nina, eu mandei flores. Eu implorei. Eu até pedi em casamento.
- Mas foi DEPOIS. Depois é sempre tarde demais, Carlos Eduardo. Cadu.
-  Mas e ela, que me dizia a toda hora, "eu te amo, eu te amo"? A Helena mentia, Nina?
-  Ela cansou, foi isso. Amar sozinha cansa.
-  Que merda, Nina, não é justo! Eu amo a Helena, é a mulher da minha vida.
Ah, chega. Faço um discurso:
 - Cadu, amar não é como dirigir na neblina, nem exige cautela. Nada a ver. Ao contrário. Amar de verdade é se jogar de cabeça no abismo. Alguém disse, "tudo o que o amor requer da gente é coragem." E é mesmo. Tem que bancar, pagar para ver. Mais do que tudo, tem que saber MOSTRAR, entende?
- Entende… não?
Ele resmunga. Fica bonitinho, de olho vermelho.
Faço um carinho com meu pé, no dele.
Eu também estou bêbada, agora.
- Esquece.

Dani Altmayer

Exercício Oficina de Escrita-  Tema. " A descoberta do amor."