terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Vai, dois mil e quinze!


Existem anos bons, e anos ruins.
Anos são feitos de meses, que são feitos de dias, que são feitos de horas, que são feitas de minutos, que são feitos de segundos.
E o tempo pode ser contado de um jeito, ou de outro. Micro, ou macroscopicamente. Por convenção.
Como sempre acontece, no balanço inevitável de um fim, qualquer fim, a gente olha para trás. E o que eu vejo é que o ano que agora termina foi um ano ruim. Um ano que me encontrou triste, de maneira geral. Os motivos são meus, e também alheios.
Nem sempre foi fácil levantar da cama às seis horas da manhã de todo dia.
Os sorrisos custaram a vencer a rigidez de olhos que só queriam chorar. 
(Mas não choraram, não o suficiente.)
As palavras engolidas inteiras, sem digestão, causaram dor. As que foram ditas, e mais ainda o que foi interdito.
Perdi no caminho coisas muito importantes, amor, sonho, inspiração.
Perdi a verdade, e a magia, em troca de mentiras e desilusão.
O que era bolha de sabão se acabou. Era de vidro, e se quebrou.
O ano que agora finda teve um gosto amargo, e leva com ele uma tristeza imensa.
A imensa tristeza da decepção.
Nem sempre foi fácil levantar da cama nesses doze meses. 
Mas foi sempre preciso. Encontrar a força necessária para não deixar o espírito quebrar. 
Vidros podem quebrar, espíritos não. Espíritos podem, no máximo, vergar. É permitido chorar um pouco, ainda que a seco, com sorrisos disfarçados. Escondido, para não incomodar ninguém, nem por muito tempo, para não gastar a paciência. E logo depois tocar. O barco, e a vida. Viver é preciso, sim, e tem contas a pagar.
E, porque não se pode parar, o tempo se encarrega de arrumar. Toda essa confusão.
A cama, o cabelo, as dívidas, as dúvidas. O coração bagunçado.
De arrumar bons momentos, e outras boas histórias para contar.
Tem que seguir. Trabalhar, trocar, estudar. Viajar.
Permitir. Encontrar, acontecer. Dar chances.
Conhecer, desconhecer... reconhecer-se. 
Desfrutar.  De muito prazer, em conta gotas de segundos preciosos. E nos segundos, ser feliz por um ano inteiro.
Dois mil e quinze me encontrou de um jeito, e depois me transformou. Dolorosa e silenciosamente, me endureceu. Ainda não sei o que sobrou de quem eu fui no início.
Nem sempre foi fácil, mas foi sempre preciso. E por ter sido preciso, foi. 
Vai, dois mil e quinze. 
Não vou sentir saudade.
Apenas gratidão, pelo aprendizado. (Que ainda não assimilei.) Continuo sem entender. Mas dizem que é assim que se tem que dizer. Obrigada, então.
Pela saúde, acima de tudo, é preciso agradecer.
Obrigada pelos belos e raros encontros. Houveram alguns. Que me devolveram sorrisos, molhados. Verdadeiros, e mais uns tantos suspiros, dobrados.
Eternos nos minutos de algumas horas de uns dias, quaisquer. Instantes apaixonados, de pura poesia.
Pelas boas, e honestas descobertas, sou grata. Pelas músicas, livros, surpresas. Por duas rosas vermelhas.
Pelos amigos novos e antigos, para sempre. Obrigada. 
Vai, dois mil e quinze. Leva tudo o que não funcionou, e foi tanto. Apaga de vez o que não prestou, e deixa só o que tiver que ficar. Com permissão, dessa vez. De olhos abertos, com redobrada atenção e uma boa dose de ceticismo, que não faz mal a ninguém, ter cuidado.
Não peço desculpas pela melancolia, nem pelo desabafo contido nessa confissão. É que eu estive triste, por muito tempo durante esse ano. E para mim, escrever, é isso. Como viver,  preciso.
Escrever é o meu jeito de chorar, de jogar fora, de me desfazer. Para encerrar, relativizar, esquecer sem esquecer. Para saber que vai passar. Falta pouco agora, bem pouco.
Vai, dois mil e quinze! Passa logo.
Para você, só tenho a dizer:
Espero, e desejo que seja mais fácil, em dois mil e dezesseis.
Levantar. 
E mesmo que não seja, sem você... vai ser. Será.

Dani Altmayer



segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Pouca fé

 

Ela me contou que foi uma cura espiritual. Não usou os quimioterápicos prescritos para o longo tratamento da tuberculose pulmonar. Trouxe um exame de escarro negativo, tinha a pele acinzentada e devia pesar uns 40 kg. Quer retornar ao trabalho. Solicitei que me traga outras evidências da sua cura, como o raio-x e um laudo do pneumologista. Ela me olhou com certa pena, disse que entende que eu não acredite, e saiu em busca das provas.
Penso nela quando, ao voltar de mais um plantão, passo por um local chamado "pronto socorro espiritual". Tenho vontade de mandar o táxi parar, e entrar. Deus sabe como estou precisando de curativos, no peito, na cabeça, por dentro, onde quer que fique uma alma. Tenho alguns ferimentos feios, ali.
Gostaria de poder me ajoelhar aos pés de um homem ou mulher que seja, e receber de suas mãos a solução para todas as minhas dores, e para meu hipotireoidismo. Queria ganhar certezas, em troca de uma entrega verdadeira. Quem sabe, ao acender uma vela, se apagassem todas as perguntas, todas as dúvidas, quiçá até esses pensamentos, tão incômodos?
Talvez haja mesmo um culto, em que pessoas se deem as mãos, e cantem, ou gritem, palavras de ordem e amor, numa espécie de transe motivacional por repetição. Unidos pela ideia de que somos todos irmãos, eu receberia de volta uma fé que me convenceria. Seria só seguir a cartilha, e me deixar levar, sem desamparo ou incertezas. Fluir sem esforço, simples e fácil assim, feito desaparecer de si mesmo.
Cuidariam de mim, por mim. Alguém.
Então, eu poderia afinal desfazer essa estranha ideia que me assola cada vez mais, que é a de que os seres humanos, eu incluída, são (quase) todos uns loucos e perfeitos egoístas. Que o mundo é louco, e egoísta. Estaria livre dessa desconfiança, da solidão absurda de não pertencer.
Só que eu não parei. Estava com pressa de chegar em casa, e fazer outra coisa egoísta qualquer, tipo ler, descansar. Ou escrever um poema idiota sobre dor, sofrimento, mínimos de esperança e alguns contrapontos.
E, porque eu prefiro o poema à cura, acho que não tenho mais salvação. Devo seguir tomando o remédio da tireóide, toda as manhãs, para o resto da minha vida.
A paciente não voltou, ainda estou à sua espera.
Ela pensa que não, mas eu acredito sim, em milagres.
O problema é que eu também duvido muito. De tudo.
De todos, agora.

Dani Altmayer

sábado, 12 de dezembro de 2015

Sorrisos raros


"Ela lhe perguntou num daqueles dias se era verdade, como diziam as canções, que o amor tudo podia.
- É verdade- respondeu ele- mas será melhor não acreditares."
( Gabriel Garcia Marquez)


O trem seguia quase vazio, naquele horário. Estávamos sentados frente a frente, cada um com seu livro no colo, abraçados nos próprios pensamentos. No início da viagem não íamos a sós na cabine. Havia essa mulher gorda, com ares de cansada, que tinha em seus braços um bebê franzino e desdentado. Ela parecia ainda mais triste do que eu, com seus peitos enormes, vazando na blusa de algodão. Em certo momento, o cheiro inconfundível fez com que nos entreolhássemos, num sorriso constrangido, e a mulher saiu, em busca de um lugar para trocar fraldas, além daquele pequeno cubículo abafado. Ela não voltou para a cabine, e suspirei aliviada, pronta para seguir minha leitura, em paz. Ler é o meu refúgio favorito. Depois de tanto tempo fora de casa, eu só não queria pensar no que me esperava. Estava tão entretida que custei a perceber o olhar dele grudado em mim.
Embarcáramos na mesma plataforma, e eu já havia reparado nele antes, não tanto por suas roupas esquisitas e seu ar distraído, mais porque levava uma pilha de livros velhos, um exagero para uma viagem de apenas algumas horas. Gostei quando ele sentou no mesmo compartimento que eu. Gosto de gente que carrega livros.
Ele me encarava, o livro puído agora fechado sobre as pernas. Tinha os olhos apertados, meio vesgos, de um jeito charmoso. Falou, como se tivesse descoberto ouro:
- "É a vida, mais que a morte, que não tem limites."
Encantada por ele ter citado meu autor preferido, sorri em resposta. Ele guardou os livros na mochila rasgada, e sentou ao meu lado, dizendo de um jeito esquisito:
- Amor assim existe?
Dei de ombros, rindo com uma vontade idiota de chorar.
Ele não perguntou o meu nome, antes de me beijar. Eu nunca soube o nome dele, depois.
Ajoelhou na minha frente e abriu minhas pernas, se aninhando entre elas. Tocou o meu corpo com o cuidado de quem manuseia um livro antigo, folha por folha. As mãos, secas e ásperas, me seguraram as coxas com força e delicadeza, ainda por cima do vestido azul. E então subiram, como duas serpentes, farejando a minha pele fria. A minha urgência não era nada para ele. Com calma, ergueu minha perna e me tirou o ar. Antes que eu parasse de gemer, saiu da cabine para sempre.
Ele desceu uma estação antes da minha. A mulher gorda com o bebê, também. Ele não percebeu meu sorriso na janela. O trem partiu e ele se dissolveu em meio à nuvem de saciedade.
Uma hora adiante, Carlos e Pedrinho me esperavam na plataforma. Ganhei uma rosa.
-Tem presente, mamãe?"
-Você parece cansada, querida. Fez boa viagem?
Nunca mais o vi.

Dani Altmayer








domingo, 6 de dezembro de 2015

Mais minis

                                                     
                                                Amarelo
                               Na foto do perfil, os dois sorriem.



                                                     
                                                   Mudança
                                 Não havia espaço para carga pesada.
                                 Por isso não te levei.






                                                                 Ciclos
   Como vulcões adormecidos que despertam, as noites insones um dia cansam.
   Adormecem.

                                         



                                                 Cobrança
                             No banco das relações humanas não existe crédito.






                                                            Escondido
                       No dia em que assinaram o divórcio, começaram a namorar.





Teu corpo
É como um livro bom do caralho.
Difícil de largar.







Dani Altmayer

Leitura de contos no encerramento da oficina de escrita criativa (2015) em evento na Palavraria Livros.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

A roupa nova do rei


Todo ser que respira é frágil e imperfeito.
Tudo o que tocamos nos toca de volta.
Mas sob o manto invisível da vaidade, estamos todos nus.
Tecidos e sedas mal cobrem as veias.
Artérias pulsam, sob a pele exposta.
Máscaras escondem rugas, e rusgas. 
Só os olhos não disfarçam a dor. 
Um ouro qualquer compra o perdão.
Vaidades, em troca de verdades.
Mentiras costuradas como delicada teia.
Tramas encobrem o drama.
Segue o desfile, o baile no salão.
Nessa estranha, inventada sociedade.
Onde o que tocamos é superfície.
Só que não.
Muitos (todos) fingem, cuidado. 
Quase ninguém parece ver.
Que todo ser que respira, sangra.
E dói. 



Dani Altmayer




terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Para você que me faz sorrir




Ao fim de uma tarde quente e perfeita, desce a noite, exausta e silenciosa.
A chuva, sem avisar, dedilha no telhado uma música de embalar sonho.
Pelas janelas abertas chega um cheiro bom, de doce.
Um perfume forte, sensual. De terra, molhada, suada. Satisfeita.
Fecho os olhos, num suspiro antecipado, feliz.
E antes mesmo de adormecer, eu já sei.
Vou sonhar...

Dani Altmayer