domingo, 20 de novembro de 2022

Mudanças



Essa estranha mania de querer todo

De querer tanto

Pensar-se livre, estar sujeita a desejos

Já dizia a polonesa, na sabedoria infinita do poema:

Escolho excluindo porque não há outro jeito,
mas o que rejeito é mais numeroso,
mais denso, mais insistente do que nunca.
À custa de incontáveis perdas – um poeminha, um suspiro.

Escolhas e renúncias, chegadas e partidas

A tristeza escondida na mais absoluta alegria, o medo, a coragem, essas coisas

Essas coisas que chamamos paradigmas
Que existem para serem rompidos

São as duas faces da mesma moeda e ambivalência é seu nome do meio

Em vez de empacotar meus sapatos, roubo palavras, enfileiro clichês, me distraio e arremedo poesia
Tenho esperança, só não tenho cura








domingo, 30 de outubro de 2022

30 de outubro



 Há tantos choros entalados lutando para sair, há tantos choros enlutados, e há que se levar em conta as mortes que estão nessa conta, cada morte evitável, há que se levar em conta o desprezo pela vida, pela dor do outro, há que se haver lembrança, para quem apagou da memória a pandemia, o deboche, a grosseria, porque ainda há quem apoie armas, racismo, homofobia, misoginia, xenofobia e outras tantas "ias", por cada preto, pobre, mulher e gay, por cada minoria, por cada vida perdida, cada família partida, há que se votar com consciência, com respeito, com empatia.
Não é sobre um, é sobre tantos e sobre muitos. É pelos desvalidos. Pelo todo, que é sempre maior que a soma das partes. Faça a sua parte. Vamos hoje libertar o choro, encerrar o luto, lutar com alegria.

domingo, 25 de setembro de 2022

A mãe inglesa


Nasceu num setembro, 1943

outono ao norte primavera

nas bandas de cá onde

veio morar ainda menina

o nome bonito o nome difícil

os hábitos manias sanduíche

de batata frita pão com açúcar 

pepinos em conserva e aquele 

horroroso christmas pudding

o hábito de bater com o nó

dos dedos o barômetro 

na parede da sala de jantar a previsão 

sempre precisa se chuva se sol 

o bom dia acompanhado da temperatura 

...leva um casaquinho vai esfriar

e a pontualidade hereditária daquele

amor sem igual as coisas que a memória 

guarda são estranhas mas 

      o toque macio das mãos os dedos longos a ternura

          a voz rouca e o perfume ainda

depois de tantos anos

Isso de mãe desconhece o tempo 


E, ainda bem...

Happy birthday, mãezinha 


 

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Frestas


 
 


Sexta-feira, início da noite. A porta da loja está semicerrada. Pela fresta vejo que o Sérgio e o Antônio já chegaram. Subi a ladeira devagar, mesmo assim estou ofegante. Acendo um cigarro antes de entrar. O Chico, desde que parou, não gosta mais que se fume lá dentro. Fala que tem risco de incêndio, mas isso daí sempre teve, aquele monte de disco velho até o teto, essas casas antigas do centro tem a elétrica toda cagada e ele nunca se interessou em reformar, mesmo quando estava ganhando mais grana.

Não viram que cheguei, a TV já está ligada no campeonato de sinuca, mas ainda não começou. O Antônio está na Coca zero, descobriu um diabete na semana passada. Os outros dois, sentados nos caixotes, bebem cerveja.
São meus amigos de colégio. Os guris. A gente tinha uma banda de garagem com esse nome. Todos magros, roqueiros e cabeludos.
O Sérgio não tem mais cabelo nenhum, já o Chico está cada dia mais parecido com o John Lennon, se o John Lennon tivesse vivido o suficiente para passar dos 60 anos. Usa camiseta de banda, é o único que não engordou, nunca ganhou dinheiro, e ainda está casado com a mesma mulher.
Duas jovens de mãos dadas e blusas vermelhas vêm subindo a rua, enroladas numa bandeira colorida. Elas me pedem fogo, acendem um baseado:
- Quer um pega, tio?
Aceito. Perguntam da loja, Boca do disco. É boca de fumo, querem saber. Dou risada, um dia pode se dizer que foi. Agora é só uma loja velha, que vende vinil de capa ensebada.
- Meu vô tem um toca discos, ainda funciona. Será que a gente pode dar uma olhadinha nos discos?
A mais baixinha usa uma argola enorme no nariz, a franja no meio da testa, parece uma índia. É bonita. Não deve ter vinte anos, respondo que a loja está fechada. Que voltem outro dia, de dia.
Elas espiam pela fresta, o que vocês estão assistindo, tio?
- A final do mundial de snooker.
- Eu gosto de jogar bilhar, diz a magrela. Mas nunca assisti na televisão, nem sabia que passava. Minha mãe curte ver campeonato de golfe.
O Chico aparece na porta, e me chama para entrar. O jogo está começando.
Preciso de outro cigarro, já vou.
- Ah, esse vício...
Ele me alcança um latão. Daqui a pouco o Sérgio vem me fazer companhia, é só tomar mais uma e ele vira fumante do pior tipo, o se me dão.
As meninas vão embora, desaparecem na esquina sem dizer tchau. Geração estranha, essa.
Espio o jogo pela fresta.
Do outro lado da calçada, em frente ao bar, o Neco acende o fogo na churrasqueira de lata. O cheiro de carne gorda se mistura com o do meu cigarro, e as fumaças deixam a rua enevoada.
Faz um pouco de frio, aqui fora.


Texto oficina de escrita- correlato objetivo.

 


 

sábado, 10 de setembro de 2022

Ou a poesia




Às vezes eu guardo poemas

Por um verso ou dois eu me rendo
Uma palavra à toa uma rima boa
Sou dessas que gozam fácil

Preciso da pausa entre as estrofes o respiro o silêncio o intervalo
Daquilo que desliza lento sorrateiro calmo

Vai crescendo sem susto ou atropelo
Pegando jeito
Às vezes eu cometo poemas

Meu olhar desatento não sabe nadar em mar de tempestade
Tenho medo e coragem em proporções diversas

O desvio os presságios as marés as correntes o empuxo
As fases da lua e aqueles malditos coletes que só inflam depois

Às vezes eu perco poemas

Às vezes eu fico sem forças
E só teu abraço me reinicia.




domingo, 4 de setembro de 2022

Janelas



Ter uma janela por onde entra o dia.

O sol me beija a nuca, amenizando o ar frio do inverno que se despede ali adiante. Mais um plantão numa manhã de domingo.
O último ou o primeiro dia de uma semana sem intervalos, a falta que faz um pouco de silêncio e ócio, sinto saudade das palavras extraviadas nas horas produtivas que se acumulam feito a poeira do tempo, faz tempo que não escrevo, nem tento.
A cigarra não entende a formiga, e vice-versa.
Minha poesia está na pilha dos boletos a vencer, no mês de setembro que tem ainda os duzentos anos, uma revolução fracassada e o início da primavera. Em menos de trinta dias uma esperança que se renova, tenho fé na primeira volta, até o final do ano uma mudança que não era prevista, como não são previstas tantas e tão importantes mudanças.
E o ano que começou ontem, termina amanhã, no intervalo acho que fomos felizes.
Ao fim das contas, pelo inusitado da vida, só peço que não nos falte uma janela por onde o sol possa entrar, a casa das palavras de portas abertas, uma sacada com rede e um lugarzinho de paz que seja parecido com lar.
Lugar qualquer onde a saudade não tenha mais vez, apesar da imensa saudade que havemos de ter.

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Dezoito do oito


Hoje me faltam palavras porque são tantas e tão misturadas as emoções neste dia, e também nestes tempos de mudanças e tu sabes. 

Há 22 anos nasceu um amor que não imaginava caber no meu peito, um amor cheio de defeito como são, como somos, mas um amor que bate forte, incansável e eterno dentro do meu coração atrapalhado de mãe. Te peço desculpas e te agradeço por ter me escolhido, sempre fomos nós, e sempre seremos nós. Conta comigo para tudo. E seja muito feliz, meu JP. Tu merece. Viva a vida! Viva a tua vida! 

Te amo.

terça-feira, 12 de julho de 2022

Doze de julho


Dez anos.

Ah, tempo...
Dez anos desde que o mundo ficou mais bonito e mais colorido.
Que a tua beleza, tua doçura e tuas cores sirvam de moldura para estas tuas sábias palavras, para tua inteligência, tua sensibilidade e tua bravura.
Bela Isabella.
Vai, que o mundo é teu. Não deixa nunca que te limitem. Dança, canta, grita, luta com toda força pelo que te faz sentido, o que te faz sentir. 
O amor sempre vence, podes acreditar.
Estás ainda no começo, e já sabes tanto.
Dez anos, e uma vida plena pela frente. Coisa mais linda da sua tia, seja muito feliz.
Love you, to the moon and back.

TiDani





 

quinta-feira, 23 de junho de 2022

Ela

 


Está tudo nos pendrives, terceira gaveta, a que fica chaveada. Se eu quisesse, poderia ferrar com a vida dela. Mas não quero. A mulher é foda. Uma puta diretora, se é que você me entende. Feia que dói, a cara parece ter sido atropelada por uma jamanta, mas o corpo até que dá pro gasto. Raimunda, sabe? Um amigo falava, com um travesseiro no rosto é uma delícia. Não que ele tenha experimentado ela, nem eu, sou só o secretário. Nem quero. Gosto do meu trabalho. Ganho bem, ela me trata legal, tenho minhas liberdades. Não julgo porque se fosse juíz, era rico. Não julgo, mas observo e observando, vejo tudo. E vendo tudo, tenho cá minhas opiniões. Mente quem diz que não tem opinião. Só que guardo para mim, necessidade nenhuma de fazer fofoca ou divulgar nas internet.
Ninguém mais sabe, só eu, e ela não sabe que eu sei. Nem vai saber. Não sou bobo.
De vez em quando eu assisto os vídeos, para bater uma. Sexta à noite, quando ela volta para São Paulo. Ela é casada com uma mulher, tem uma filha pequena. Mas pega homem também. Ô se pega, pega bem mesmo. Bem cadela. Adora ficar de quatro, fica doidinha. Mas gosta mesmo é da outra fruta, sabe de qual estou falando?
Aquela que começa com a letra B. Ela é bi, mas mais sapata do que bi.
Num festival de Gramado ela foi com a Betânia. A Betânia foi diferente, puta atriz famosa agora. Anda fazendo filme na Argentina.
A Betânia não assinou nada, acho que se deu foi por gosto mesmo, tem gente que é assim, não faz caso não, ela se apaixonou um pouco pela Betânia, exaltou muito, foi um baita empurrão, a mulher é foda, estou te falando. Eu também me apaixonei pela Betânia, até copiei o video delas. Tenho salvo no meu computador, que mulher lindíssima, mulher nada, era uma menina ainda, dezessete e tudo aquilo, não me admira que a outra tenha se arriado toda, mas a Betânia era esperta, fez bem direitinho. E mais de uma vez. Mexeu gostoso os pauzinhos, se é que você me interpreta. Agora está casada com um espanhol, cara de toureiro, pegou pelos chifres, é ator de segunda linha, bonitinho mas ordinário. Ele não passou pela minha diretora, só uma vez apareceu na jogada um estrangeiro falando inglês, todo metido, acontece que na hora H todo mundo geme igual. Esse tinha a bunda bonita, mas não decolou. Era meio viado, oh my god, yes. Bunda branca, de gringo.
Sexta eu vejo os videos, sábado me confesso, domingo sou ministro na igreja. O padre gosta de mim porque trabalho com gente famosa, às vezes ajudo no sopão das quartas, na quarta tem a Cida que faz curso de teatro, quer ser atriz e vive me pedindo para conseguir entrevista com ela, quer saber como é, o que precisa fazer, mas a Cida é gorda. Ela não gosta de gorda, já ouvi ela falando, então enrolo, faço promessas pra Cida em troca de um favorzinho no banheiro da paróquia. Eu mesmo gosto de gorda, tem onde pegar, e a boca da Cida é uma gostosura, às vezes as pessoas se apegam numas coisas que não tem nada a ver, sabe? Quem tem preconceito perde o bom da vida, aprenda. Eu aprendi, faz anos. Tudo vale a pena experimentar, até mocotó.
A Cida tem namorado, ele luta jiu-jitsu, se chama Joel e é todo cidadão do bem, não sei se anda armado mas usa camisa da seleção e tem o bíceps maior que a minha coxa. Não sou do tipo machão, sou até meio covarde, mas a Cidinha vale um pouco de risco, já dizia o outro que a vida sem tempero não tem graça nenhuma. Quarta feira, pão dos pobres, caridade, um belo boquete. Tudo nos bastidores, que é onde as histórias boas acontecem. Pelas beiradas.
É como sempre digo, o que é do gosto regala a vida, vida que segue, essas coisas, eu tenho a Cida, e ela lá, a fodona, tem todos os outros, outras, outres. Mas no fundo todo mundo quer a mesma merda. E caga igual.
Ela não sabe que eu sei, é aquilo, como falam por aí: saber é poder.
Mais que isso, o segredo é a alma do negócio. Pode confiar, que eu só observo, e deduzo. Tenho minhas consequências. Sou quase um filósofo.



Texto trama idiossincrática, para a oficina de escrita.

sexta-feira, 3 de junho de 2022

Tarde de domingo


Dez gotas ao dia
alguns vidros vazios
então o mel as coincidências
uma janela para o poente
a promessa de novos
horizontes o olhar
que sereniza, bonito
   - o sorriso, ah o sorriso
não há ameaça ou pressa
só descoberta e deleite e de repente
o tempo
desliza lento por sobre as peles
a vida
adquire o ritmo certo
dedilhado
na cadência do teu violão

(na certeza de que a sorte, vez ou outra,
nos acontece)


quinta-feira, 2 de junho de 2022

Sue Ellen, anos depois



O banheiro. Não, a cozinha. Deve ter uma porta de saída para a rua, na cozinha. 

- Vou retocar o batom, já volto. Licença. 

Quem fala isso, na vida real? 

Sue Ellen pega a bolsa com estampa de oncinha, arruma a minissaia e é quase atropelada por um garçom:

- Pizza de javali com molho de menta, senhora? 


10 minutos antes 


Não pode ser. Bem que pareceu familiar. Mas não pode ser, o Zé Gordo? Ele teria dito alguma coisa. Impossível não me reconhecer, não mudei nada nos últimos 20 anos. Bom, mais peito, mais lábio, uma costela a menos, de resto continuo a Su...

- Sue Ellen do céu, eu sabia que era tu. Quanto tempo, guria. Senta aí, quer um chopp?

- Oi, Zé.



5 minutos antes 


E seis fatias de pizza depois.

- Nem nos meus sonhos mais loucos tu saía comigo, Sue Ellen. Essa é a beleza dos aplicativos. Democratização, coisa linda. 


2 minutos antes 


Tem três fatias de pizza no prato dele: pepperoni, portuguesa e filé com cebola caramelada.

E ele ainda tem a mania de fungar no final das frases. Como era mesmo o outro apelido? Mister Pig.

- Senta aqui do meu lado, princesa. 


35 minutos antes 


O uber chegou. Dou uma última olhada no espelho. Vestido curto, sim. Cabelão. Decote moderado, para seduzir sem parecer piranha. A Marcinha vive falando que já passei da idade, inveja dela. Fiz quarenta mês passado, ainda estou podendo. Depois, isso de pode não pode é uma besteira que as feias inventaram. Mulher gostosa pode tudo. Mais uma gota de perfume, e pronto.

A bolsa combina com o escarpin. Animal print, adoro. Vamos lá, conhecer o tipo. 


Um dia antes 


-Amiga, rodízio de pizzas? Nossa, é antiafrodisíaco total, hein Su?

-Sabe que achei até bom, Marcinha? Sinal que não quer só me comer. 

- Quer comer, isso é certo. É gordo?

- Engraçadinha... Não sei, não tem foto de corpo. Parece intelectual, uma foto conceito, desfocada. Tu sabe como é, os homens não capricham nestas fotos de aplicativo.

- Coragem, hein. 

- Desespero, amiga. Tu sabe. 


Uma semana antes 


Decide entrar no aplicativo. É a quinta vez, a primeira desde o divórcio. 

Carlos Eduardo, o canalha. Anestesista é isso, cidadão de bem até a hora de mentir no imposto de renda para pagar mixaria de pensão. Corno, sem remorso. Mereceu. 


Hum, gostei, não gostei, cara de pobre. Um like, deixa ver... Nome de rico, José . Foto de Paris, uma Harley, foto do Rosa. Serra gaúcha, vinho tinto, gosta das coisas boas da vida, curte viajar, sem filhos, não fuma. Só fotografia de paisagem e essa de rosto, fora de foco, com a barba por fazer. Deve ser feio, mas tem a minha idade e tem uma Harley. Já viajou para fora, critérios básicos.  Paciência,  vamos lá. 


Um segundo antes 


O beijo tem gosto de alho e óleo, e cebola. E é babado.

Lembra do meu aniversário de dez anos, Su? Sempre fui apaixonado por ti, olha que sorte a nossa, esse encontro justo agora. Viva o tinder! 


Trinta anos antes 


Com quem será, com quem será que o Zé Gordo vai casar?

Vai depender, vai depender se a Sue Ellen vai querer. 


Gargalhadas. 

A menina mais bonita da sala e o guri do cofrinho de fora?

Nem em sonho, José.

Exercício para a oficina de escrita, trama reversa.

segunda-feira, 30 de maio de 2022

Afinal




Durmo como há dias, meses, anos não dormia. Nem me sabia capaz de dormir assim, tão fundo, sem sonhos, por exigência mesmo, não por hábito e nem vontade.

O despertador natural me avisa que está na hora de acordar, sempre algo entre 5h30 e 6h da madrugada. A sabedoria do meu corpo resmunga que posso virar para o lado, que vivo num limbo, os últimos e os próximos dias estão zerados, só existem para isso mesmo: repouso e recuperação.
Durmo mais, levanto às 8h, totalizo quase 10 horas de sono total. Sem contar a sesta da tarde.
Descanso sem culpa, todos os compromissos suspensos, cancelados, adiados, o tempo é de convalescença.
Os dias escuros lá fora convidam a estar dentro, e não fosse por uma saudade nova, o isolamento e o silêncio seriam até bem vindos. Naquelas, né, do limão uma limonada.
Depois de dois anos e meio driblando esta doença, ela me chega num momento em que as vacinas funcionam, e salvam vidas, num momento em que o medo já não é dominante, chega num instante em que estou sim, trabalhando muito ( e o tempo todo), mas estou feliz e com esperança, com minha melancolia apaziguada, e assim espero, minha imunidade alta.
Se tivesse que escolher a hora, seria esta. Mas ainda acho que a melhor opção seria não ter. Não adoecer é sempre a melhor opção.
Meus sintomas estão leves agora, mas o cansaço é algo surreal.
Hoje resolvi passar aspirador na sala, quando terminei parecia que tinha corrido uma maratona. Coloquei o oxímetro, frequência cardíaca de 114 ( saturação 99).
Então, não é brincadeira não. Mesmo na forma leve, esse vírus mexe com todo o teu organismo. É mais que uma gripezinha, é sistêmico e imprevisível.
Muito chá, muito própolis, alguns filmes de amor, um amor, música boa e bons afetos.
O carinho e a preocupação dos amigos. Saber-se querida. Cautela, canja de galinha e muito repouso. Um certo tédio, mas olha, para quem viveu no olho do furacão da pandemia, não há do que reclamar. Sei da imensa sorte que tenho. E só agradeço. Por enquanto, tudo certo.
Como diria dona Eileen... so far, so good.




quinta-feira, 12 de maio de 2022

Vestígios



O caminhão está atrasado. Olha as caixas empilhadas, a sala vazia. No vidro da janela, a marca do cartaz, no assoalho a marca do tapete. O sol não perdoa, feito o tempo.

A primeira vez que viu a casa foi aos doze anos de idade, tinha ido com a mãe entregar a roupa lavada e passada. Estava de férias, e gostava de andar com ela pelo bairro dos ricos, ver os jardins bem cuidados, as crianças de roupas bonitas, bicicletas caras e cabelos penteados. Dona Marina atendeu a porta, ofereceu refresco e biscoitos, as convidou para entrar. A sala de móveis escuros a intimidou, mas gostou da cadeira de balanço e do tapete felpudo onde afundavam seus pés, e da limonada doce e azeda que ardia na boca.
Abre a caixa pequena, onde estão os álbuns. Vê a foto do casamento, a mulher de olhos claros, o homem sério a seu lado.
Jorge já era um homem, quando ainda era um menino. Ou talvez fosse o contrário. Os modos de um velho, ela dizia, quando ainda podia dizer. A fotografia, agora sem a moldura, parece menos bonita, a parede também guarda as marcas do que um dia foi. Devolve o álbum para a caixa, sobe as escadas. O quarto maior, a cama de dossel antiga, agora sem a colcha e os lençóis engomados, parece nua.
O cheiro da roupa de cama, lavada e passada nos fundos do casebre, o perfume delicado e as mãos duras e ásperas da mãe a acariciar seu rosto. A queixar-se das dores na coluna, e dos sonhos da menina de olhos claros. Não é para ti, guria. Mas foi, de algum jeito foi.
Abre as portas do armário de mogno. Naftalina.
O menino se escondia no armário, quando o pai chegava, bêbado. Um dia, adormeceu ali, ela o encontrou abraçado a um vestido e ao urso de pelúcia puído que se chamava Teddy. O armário cheirava a rosas, então.
Olha pela janela o jardim de grama crescida, as roseiras sem flores, o gasto banco de ferro. O caminhão está demorando, e seus passos fazem eco no piso de madeira. Entra no quarto do menino. O quarto já não tem qualquer marca, faz tempo que o menino se foi.
O espelho do banheiro reflete o rosto marcado pelo tempo. Os olhos claros estão embaçados pela catarata. A cicatriz no canto da boca ainda dói em dias de chuva.
Todo homem é bom quando não está violento. Jorge era bom quando se casaram. Dona Marina tinha recém falecido e mudaram-se para a velha casa, com os mesmos velhos móveis escuros, ele não queria saber de reformas. Foram felizes até nascer o menino. Até Jorge começar a beber.
Desce as escadas, vai até a cozinha onde manchas de gordura e de sangue marcaram o linóleo xadrez. Uma xícara de porcelana, lascada, descansa sobre a pia. O último café.
Escuta o caminhão estacionando. Abre a porta para os homens que vão levar para longe as caixas, os móveis cheios de cupim, as fotografias e os quadros. Amanhã a casa terá outros donos, as paredes serão pintadas, os pisos renovados e só há de restar aquilo que sempre fica: as marcas invisíveis que a memória não consegue apagar.


Exercício para a oficina de escrita

quinta-feira, 28 de abril de 2022

Azulzinho




Cinco horas e ainda é noite, embora já seja de manhã , tempo fechado e inverno, acordo na madrugada fria, engulo uma banana, passo um café, encho os potes de ração, tomo banho, faço a barba e coloco o uniforme. O botão não fecha na barriga, paciência. Chego na garagem às 05h45.

Às seis em ponto dou a partida, a novidade de trabalhar sozinho me deixa nervoso. Dispensaram os cobradores da minha linha, sinto falta da conversa fiada do Eurico, me atrapalho nos trocos. Nunca fui bom de matemática.
A primeira passageira é a Sônia, ela trabalha no hospital das clínicas, entra no ônibus cheirando a cigarro e tem uma risada rouca, está sempre de bem com a vida. Depois vem o João, às vezes tem uma mulher com ele, nunca a mesma, o João gosta de variar o cardápio e diz isso na cara dura, a Sônia briga que mulher não é prato feito para ele falar assim. Quando ele está sozinho, sentam juntos, ainda que o ônibus esteja vazio. Desconfio que já tiveram um enrosco, o João e a Sônia.
O terceiro passageiro eu não sei o nome, é um velho bem velho, sobe no ônibus sem responder meu bom dia, senta na última fileira, abre um caderninho e começa a escrever. Às vezes fala sozinho. Fico pensando por que diabos um aposentado sai de casa a essas horas. Ele desce sempre no fim da linha, no centro. Acho que gosta de passear, e é de graça.
Depois vêm os estudantes, Matheus e Mathias. São gêmeos e saltam duas paradas adiante. Poderiam muito bem ir caminhando, mas são adolescentes.
Entram a Mirtes, o Cláudio, a Juleide. Por aí vai. A Fernanda, a Mara. Sempre tem mais mulher do que homem. Conheço todos os da primeira volta, alguns da segunda. Da terceira em diante, não me interessam mais.
Esqueci o remédio da pressão, falo para a Sônia. Ela me dá uma pastilha azul.
Outro dia ela já me salvou duma dor de cabeça. O João brinca que é viagra, o moleque tem a mente suja. Digo que sou da igreja, morre o assunto.
Gosto dos dias em que a Márcia tem trabalho no centro. Duas vezes na semana, terça e quinta, com todo respeito, mas é um mulherão de tirar o fôlego, bunduda, cintura fina. Até o velho levanta a cabeça para ver ela passar. Hoje é segunda feira. Acho eu. O ônibus está lotado, um zumbido me atordoa os ouvidos. Fica tudo escuro, de repente. Alguém dá um grito, piso no freio, o som de uma batida. Um ciclista se atravessou no cruzamento, está caído na calçada. Abro a porta e desço, atordoado ainda. O João e a Sônia correm para ajudar, chega a polícia, a Samu, e me levam junto com o ciclista e o velho para o hospital. Crise hipertensiva, dizem. Princípio de infarto. Diabete descontrolada. O ciclista quebrou a perna, fratura exposta. O velho levou pontos na testa, mas está bem. José é o seu nome, e a enfermeira da emergência me conta que é poeta.
Hoje é quinta feira, dia da Márcia. São 5 horas de uma manhã de inverno, o dia ainda não raiou, levanto e passo o café, engulo a banana, tomo meus remédios, dou a ração para os cachorros e volto para a cama gelada. Penso no caderninho do velho, oras, poesia. Fazendo rima nessa idade, meio ridículo. Às 5h45 adormeço de novo.
Meu ônibus sai pontualmente, às 6 horas da manhã. A primeira passageira é a Sônia.

Oficina de escrita- trama circular 

quinta-feira, 17 de março de 2022

Pedaço de mim

 



É uma quarta feira de outono, igual a tantas outras. 

Previsão do tempo:céu sem nuvens, temperatura amena. Horóscopo do dia: saúde boa, romance sem novidades, dinheiro surpresa. Cor, amarelo. 

Termina o café, coloca o jornal na área de serviço, troca a água do gato, dá ração para a cachorra. 

Uma última olhada no espelho, óculos escuros, calça jeans, camisa de linho. Consulta o relógio de pulso, 8h30.

Decide ir andando, está fresquinho e tem tempo de sobra. O celular vibra na bolsa, todas as mensagens são urgentes, nenhuma é importante.

Caminha duas quadras, sente a pontada conhecida. A dor dos últimos 6 meses. Hoje vai assinar os papéis, oficializar o fim, marcar com uma esferográfica azul o começo do nada, do vazio que se estende à sua frente, interminável feito uma planície nas estradas do sul. 

Lembra da música do Chico, aquela onde ele fala que a saudade é o revés de um parto. 

Há seis meses e sete dias, ela recebeu a pior de todas as notícias. 

E com ela, e depois dela, o desmonte gradual de tudo que um dia foi. Os silêncios, os gritos, as acusações empilhadas feito boletos que ninguém quer ou tem como pagar. A ausência que não puderam compartir crescendo entre eles feito um muro.

Um pingo, depois outro. A previsão do tempo estava errada, afinal. A chuva aperta, ela se apressa. Olha para os pés molhados, as sapatilhas amarelas agora lhe parecem ridículas, muito frágeis, muito bobas. Chega na frente do cartório, se abriga sob a marquise, respira fundo.

O relógio marca 8h57. 

Está a três minutos de terminar o maior capítulo da sua vida, registrar o fracasso em preto e branco, dizer adeus e voltar para aquela casa vazia, e olhar para aquela porta fechada.

A porta do quarto. Do quarto que ela não arrumou.


Exercício paraa oficina de escrita- trama linear 

domingo, 6 de março de 2022

Irracionais



Súbito se pinta de chumbo o azul infinito, a lembrar que todo verão se acaba nas águas de março. Eu, que amo a chuva mas odeio a tempestade, reconheço a beleza da força dos ventos e dos raios , do céu que chora e transborda, se ao menos não houvesse o barulho, as trovoadas que lembram as bombas, as guerras, os ódios, eles nascem do medo, é sempre o medo que desperta aquilo que alguns pensam ser o oposto do amor.

Eu tenho medo, como os gauleses, que o céu desabe sobre nossas cabeças.
Quase todo medo é assim sem razão
Elea também têm medo, por isso lutam. Estão em guerra ao longe, e o longe é tão perto, tão dentro, tão aqui, nesse planeta onde só não há fronteiras para a dor.
Chove forte em Porto Alegre agora. Que alivie o calor.
Mas que não nos falte luz. 

terça-feira, 1 de março de 2022

Coragem vem de coração




As coragens que precisamos são de vários tamanhos. Nem sempre estão disponíveis em tamanho menor, para aquele medo pequeno, cotidiano, mais fácil se apresentarem grandiosas, em condições extremas, a coragem de escolher a vida ao invés da morte, quase sempre, quase sempre está ali, à espera de uma situação limite, que não deixe nem sombra de alguma dúvida, lutar ou correr-tanto faz. É tudo coragem igual, porque,  muitas vezes, fugir não é covardia e sim a única saída possível. Sobreviver.

Mais rara é a coragem outra, para aquela situação que não te põe em xeque, a que te dá opções, nem sempre dignas, pequenas migalhas de um banquete que, se não te sacia a fome, tampouco te mata dela, aquele lugar que chamam zona de conforto, e que não tem nada de errado, até tu reparar nos buracos da parede, no montinho escondido embaixo do tapete, os furos no sofá de molas, até tu tentar dormir no colchão rasgado, até tu descobrir que passou da hora de uma reforma íntima e geral.
Mudar as coisas de lugar, carregar para fora o lixo, descobrir o que não serve mais, perceber o que está faltando. Tudo isso pede ânimo, que é também um sinônimo para coragem.
Qualquer desapego requer coragens, encontrar sentido é sempre um desafio, largar um vício, cambiar um hábito.
Mexer em fotos, memórias, crenças e medos feito souvenires há muito esquecidos nas estantes. Descobrir o que foi quebrado, tentar consertar. Ou não. Tornar mais leve, abrir espaço. Encher as caixas dos livros lidos, idos, reciclar, reformar, pintar- colorir. Deixar ir. Fazer caber.
Há que se achar a coragem do tamanho certo.
Mudança nem sempre é sair de um lugar para outro. Mas quase sempre é.
E nesse texto tão cheio de metáforas, descobri que a palavra metáfora vem do grego, e significa justamente mudança, transposição. Veja só. 

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Ventanias



Caetano, em sua oração ao tempo, fala que o tempo é compositor de destinos. Se assim for, o inesperado é a música pungente que o tempo compõe, aquela que toca fundo no peito, aperta ou solta, alegre ou triste, nem sempre agradável de ouvir, mas que jamais passa batida.
Pensando nisso, por estes dias. Porque também, sem surpresas ou novas melodias, a vida não teria a menor graça.
Ou ritmo ou poesia


O inesperado

senhor de destinos

vento de tempestade
muda a direção o clima
espraia as folhas do tempo
derruba a árvore amiga
antiga
levanta a telha das certezas
desabriga desaloja
desacomoda.
Inexorável inesperado
este senhor sem modos

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Refugiados





Às vezes uma palavra, noutras um amontoado delas, frase, parágrafo, capítulo ou livro- te botam comovida feito o diabo, ou desconcertada, atônita, desgarrada, consciente, demasiado consciente que teu lugar no mundo nunca será confortável enquanto não for confortável para todos. Não há paz, se não houver paz para todos.

É isso ou fechar os olhos, adormecer sem sonhos, sem pesadelos, sem olhar para os lados, andar em linha reta, cabeça baixa,  não pegar nas mãos a arma mais poderosa que já inventaram, a única que te transporta, arremete, faz viajar no tempo e entre os espaços, continentes e mundos, viver tua vida em outras vidas, mil impossibildades e a experiência de uma dor alheia, tão alheia que não te seria permitido conhecer não fosse aquela palavra. Ou o amontoado delas.
Lendo um livro chamado Despertar os leões. Extremamente tocada.

sábado, 12 de fevereiro de 2022

Do outro lado da rua




Embaixo de uma árvore, a calçada escaldante ao sol das treze horas, uma família: mãe, pai, bebê. Sentados sob a sombra parca, eu na pressa de não atrasar para o plantão, pego no colo o recalcitrante e idoso shitzu e me preparo para atravessar a rua. Ela pede ajuda. Fala em espanhol. Não é daqui, é de algures. Imigrante, refugiada, latina. Digo que vou ver. O suor e a máscara me incomodam, entro em casa e espio pela janela os três sob a bergamoteira. Não é tempo de bergamotas, que lástima.

Hoje não fiz almoço, comi um sanduíche de preguiça. Também não fiz super, a  geladeira está vazia. Pego uma garrafa de água gelada, algumas bananas, uma barra de chocolate e uns 5 reais em moedas que consigo catar.
Agora tem também uma menina sentada na calçada, na frente deles. Uma jovem bonita, de seus vinte anos. Ela me diz, mostrando um maço de notas, estou ajudando eles a contar o dinheiro. Alcanço para ela as moedas, a mãe agradece o chocolate e as bananas. Descasca uma. A criança come com a avidez de quem tem fome.
Volto para casa, a garota fica. É tão raro alguém ficar. Vejo da sala que está brincando com o bebê, enquanto conversa com os pais. Está atenta, talvez ouvindo a história deles.
É tão raro alguém ouvir.
Saio para trabalhar e ainda estão lá, a moça desconhecida e os estrangeiros.
Na quase sombra de um fevereiro sem refúgio, como é raro alguém te olhar. 

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Oferenda




Cai a tarde e o sol se derrama em sombras

a penumbra invade a sala empoeirada e o pensamento abstrato das tardes de verão os dias alongados escaldam o asfalto ao meio dia o inferno tem a cor dos seus olhos inquietos o suor desfila na nuca entre as omoplatas os seios as coxas traçejando pegajoso desenho as lentidões de janeiro se acabam depois num dois de fevereiro tão azul da cor do manto nossa senhora iemanjá rogai por nós os filhos desgarrados no concreto órfãos navegantes náufragos sedentos repletos de saudade e desejo. 
De um mar qualquer. Qualquer mar.