segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Eu gosto de olhos assim


Eu quero olhos que não se acostumem.
(Quero em tempo algum me acostumar.)
Eu quero olhos que se encantem.
(Quero me encantar).
Eu quero olhos que vejam longe, mas enxerguem perto.
Eu quero olhos que percebam nuances, que amem sutilezas, que abominem obviedades.
Quero olhos que percebam sombras, que sejam luz, que misturem cores.
Quero olhos que absorvam detalhes.
Olhos que pintam e bordam. Que brilham.
Quero olhos que saibam ler e além, que interpretem o mundo tão diferente do espelho com que os olhos costumam se ver.
Quero olhos que não condenam, não julgam, não absolvem ninguém.
Quero olhos que trocam olhares, segredos e pactos.
Quero olho dentro do olho, quero olhos de fora para dentro.
Quero olho bonito, olho feio, torto e reto, azul e preto.
Quero olhos diferentes, diretos.
Eu quero olhos que saibam se elevar, que conheçam arte, que conheçam dor.
Quero olhos que saibam que toda gente, toda coisa é mutante, que agora é assim, amanhã não será.
Eu quero olhos sem garantias, olhos viajantes, curiosos, olhos de poeta, de louco, enfim.
Eu quero olhos que saibam se abaixar, que se fechem, se abram, que pisquem, que falem, que consigam chorar.
Olhos falantes que saibam sofrer e que saibam curar.
Eu quero olhos que sorriem, que desejam e cumprem.
Eu quero olhos que acariciam, que acalmam, que fazem cafuné.
Eu quero olhos que não mintam, porque os olhos mentem, sim.
Eu quero olhos que suportam ser olhados no fundo.
Eu quero olhos que não se acostumem a nada, jamais. Muito menos a mim.


Dani Altmayer

Not your business


Pensando em coisas,lembrei do ocorrido;
Porto Alegre, 50 graus.
Num ato de extrema coragem, chego em casa,troco de roupa e, sem pensar muito, vou para a academia.Volto cinquenta minutos depois, toda satisfeita com o dever cumprido e tal,e o porteiro do prédio comenta:
- Já? Que rapidinho...
Sorrio, meio misteriosa. Mas não respondo.
Afinal, liberdade na vida é não dar satisfação para o porteiro.
Pena que muita gente não saiba disso.

Dani Altmayer

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Sexo forte


Outra noite sonhei que estava numa passeata feminista, aos berros, segurando um cartaz que não lembro o que dizia, no meio de um monte de mulheres de seios de fora. Acordei rindo muito. Eu, que até pouco tempo atrás não me diria feminista, provavelmente para não assustar nenhum provável candidato a homem para chamar de meu. Eu,que no ano passado só não fui na marcha das vadias porque estava trabalhando no plantão. Eu, que da teoria sei muito pouco, venho aprendendo na prática o que significa esse movimento que tanta gente ainda insiste em desclassificar, rebaixar, estigmatizar.
Ontem li o polêmico texto da Fernanda Torres, atriz que admiro muito por seu trabalho (como atriz) e continuarei a admirar pelo mesmo motivo. Com o título de Mulher, em um site destinado a dar voz à mulher, ela teve a coragem de dizer "o machismo não me incomoda". Se essa frase tivesse sido dita em uma conversa entre amigas, em um bar, talvez não tivesse o caráter leviano que infelizmente teve. Todas poderiam dar risada, e ela poderia explicar que gosta de um homem másculo ( também gosto), acho que foi isso que ela quis dizer, talvez ela tenha problema de linguagem, o português não é fácil mesmo. Mas não, ela escreveu isso, "o machismo não me incomoda" e publicou. Gente que não é sua amiga leu. Então, se tornou uma frase perigosa, assim como a afirmação de que a babá (uma bela mulata) não se importava com os "uivos, gemidos e assobios" dos homens na rua, numa declaração de anuência com um assédio descarado e descabido, não consentido. Eu quero que uma só mulher me diga que gosta de ser encarada de cima a baixo no meio da rua por um estranho de olhos lascivos, passando a língua na boca e dizendo obscenidades. Mesmo que eu não conheça uma única mulher que não goste dessas mesmas obscenidades, dos mesmos olhos lascivos e da mesma língua gulosa na intimidade das quatro paredes, com um homem que ela chama de seu, e por quem sente desejo. Quem não consegue ver a diferença?!
Assédio X flerteX respeitoX moralismo, racismo, preconceito...
Daria para pegar ponto por ponto daquele texto, que você pode encontrar no ‪#‎AgoraÉQueSãoElas‬, mas de repente me deu uma preguiça muito grande. Só queria dizer que minhas melhores amigas são mulheres. Que é com elas que eu tenho as trocas mais ricas, os afetos mais sinceros, e as risadas mais felizes. Eu não transo com elas, mas isso é detalhe. Poderia não ser. Queria dizer que eu gosto de homens, principalmente para o sexo. Alguns para muitas outras coisas também. Mas poderia não gostar. Eu queria dizer que pinto as unhas, o cabelo, gosto de me sentir bonita, sou vaidosa e a minha ideia de beleza é bem feminina (apesar de nunca ter usado cor de rosa quando criança, minha mãe detestava). Mas poderia não ser. Eu voto para presidente, prefeito, governador. Mas nem sempre. Queria contar que eu mato baratas, mas detesto. Que eu posso, eu quero, às vezes não quero, eu digo sim, digo não e talvez. E eu sei. Que eu só tenho essa liberdade de escolher ( e o que é a liberdade, se não escolher?) graças a elas, às feministas, às sufragistas (vejam esse filme, por favor), às Simones, Marias, Anas. A todas essas mulheres corajosas que vieram antes de mim, abrindo caminhos. A todas essas que estão, cada vez mais, numa luta contínua de desconstrução do sistema patriarcal e machista ainda vigente. Para essas meninas que vem agora, e depois.
Eu, como a Fernanda, odeio vitimização. E também estou numa idade em que venho me" tornando invisível aos peões de obra. "
Só que, ao contrário dela, isso não me atrapalha nem um pouco. Eu não quero ser um " homem fêmea. " Quero ser, apenas. Mulher. Sem medo de assustar um "homem para chamar de seu ( mesmo que esse homem...)", sem precisar (que é diferente de querer) de um homem para chamar de meu.
Quero voltar a participar da marcha das vadias, em sonhos e não. Pois se sonhos são projetos, só a ação é construção. Construção que não pode parar. ( Falta muito, ainda). E às vezes é preciso mesmo, gritar.

Dani Altmayer


domingo, 21 de fevereiro de 2016

Dúvida nenhuma ( escolha o seu)



Encontraram-se por acaso, e na confusão embaraçada do quanto tempo e como vai, que tem feito, não mudou nada, nossa, mudou muito, ela abre um sorriso:
- Preciso te dizer, você foi a melhor coisa que não me aconteceu.
- Isso tem dois sentidos, não tem?
Ela toca seu ombro de leve num gesto claro de adeus, e antes de abrir as asas e sair voando, sopra a resposta no ar:
-  Poderia ter, mas não. Não tem.

Dani Altmayer

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Quase tudo


Na tarde cálida de janela fechada, o sol se insinua por entre frestas, brincando com as paredes nuas, arrancando da penumbra os sorrisos mais secretos.
A luz dourada faz outono em pleno verão, e eu perco a conta, os sentidos, a razão.
Dois, quatro, vinte, mil. Não importa.
Nenhum número é real. Todos se somam, se multiplicam, se dividem, se confundem.
Em mãos, pés, bocas, sabores. Cheiros, mordidas. Em água, epiderme, gelo.
Transbordam e molham.
Numa vertigem constante que me arrepia a pele, eu danço com o perigo no espelho.
Danço contigo.
Teu nome é perigo.
Eu me jogo, de cabeça e inteira, no precipício macio e duro do teu corpo em pelo.
Não tenho cordas, amarras, limites. Não tenho coragem nem medo.
Nada me prende além do teu peso em mim, tua respiração na minha.
 (Tua respiração é minha.)
Nenhum lugar existe fora do teu querer e do meu.
Em busca de ar, te agarro pelos cabelos para te levar junto ao fundo.
E flutuo numa nuvem de dor e de fogo, perdida, e solta, e livre. Leve, como nunca fui levada.
Escondo uma lágrima inédita e abafada, quase descabida.
Grito forte, antes de despencar. Antes de cair, e silenciar finalmente, no teu abraço grande, profundo e quente.
Quase morta- quase viva- quase tua.

Dani Altmayer

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

O dia que durou cinquenta horas


Fez muito calor naquela tarde nublada, em Porto Alegre. Um calor insuportável, abafado, pesado, feito um corpo úmido, grande e indesejado. Um bafo, como dizem. Minha amiga avisara "vai chover muito". Demorou, mas a chuva chegou, atrasada e furiosa, carregada por um vento forte sem direção. Corri a fechar as vidraças. Um estouro, e a luz se foi. Lembrei da janela problemática de um dos quartos, e sim, ela estava solta e prestes a voar noite afora. Fiquei ali, agarrada com ela, no escuro e toda molhada, por intermináveis minutos até conseguir ( mais ou menos) fechá-la. Eu estava sozinha, e de algum jeito achei a força necessária para encaixar a janela, a força que só brota do medo, da solidão e da necessidade. A tempestade demorou quase uma hora, barulhenta, aterradora, com muitos raios, trovões, e mais aquele vento descomunal. Quando parou, seguiu-se um silêncio inquietante e a escuridão. Eu não dormi naquela noite, temendo perder a hora do plantão do dia seguinte, o celular sem bateria e o calor sem trégua, nem um pouco apaziguado pela força da chuvarada. Eu não tinha ainda ideia do que vinha pela frente.
No outro dia bem cedo, o cenário era de guerra. As ruas interditadas por galhos e postes, árvores caídas, carros destruídos, sinaleiras desligadas. O temporal que está sendo chamado de A grande tempestade, atingira, como não é de costume, os bairros "nobres"e o centro da capital de uma forma assustadora. Faltou água e luz para muita gente, e por muito tempo. Eu mesma fiquei mais de cinquenta horas sem energia, sem geladeira, sem telefone e sem conexão nenhuma. No início, eu pensava no calor, em como dormir ventilador e sem ar. Pensava em como sobreviver sem o celular, sem comentar, curtir, interagir. Depois, comecei a me preocupar com o estoque do freezer. Passado um tempo, nada disso era mais importante, ou tão importante.
Muita gente se refugiou em shoppings, outros foram para a casa de amigos e até mesmo para hotéis, privilégio desses flagelados privilegiados que fomos. Eu preferi ficar em casa mesmo, quieta, à espera. Fui dormir quando o sol se pôs e acordei quando ele reapareceu. Li quase um livro inteiro, desci para conversar um pouco com os vizinhos, alguns eu sequer conhecia. O assunto era só um, a luz, ou a falta dela. Caminhei pelo bairro, dimensionando os estragos e pensei na sorte que tivemos, pelo que foi, que ninguém tenha morrido ou se machucado mais gravemente. Ouvi as reclamações ( muitas descabidas) dos ouvintes no rádio de pilha - que ainda tenho. Percebi que, mesmo havendo falhas, e há, principalmente no quesito prevenção e minimização de danos, estava-se fazendo tudo o que poderia ser feito para restaurar. A ordem, a luz, a civilização, dado o tamanho do caos já instalado. Vi caminhões carregados de entulhos, bombeiros, homens em cima de postes, muita gente trabalhando. Não achei direito me queixar.
O tempo se arrastou nesse ultimo domingo de janeiro. Sem pressa, sem tarefas, sem distrações. Literalmente sem nenhuma ligação. Pensei em escrever em um caderno, mas não entendo mais minha letra. Desisti. Me deixei contemplar, cochilar, estar só. Ser só, como sou e estou. Vi pessoas sentadas em cadeiras na calçada, tomando chimarrão como antes. Imaginei casais jantando à luz de velas, conversando sem ruídos, fazendo amor no escuro. Unidos. E desligados, e desligada do mundo, foi assim até a segunda feira chegar.
Ela chegou junto com a luz, ainda bem. Coloquei fora tudo o que estava estragado na geladeira. Passei de manhã pela Redenção devastada. Li no jornal que mais de três mil árvores foram atingidas pela tempestade. E me entristeci então, de verdade. Porque isso sim, é muito triste. Todo esse verde pelo chão, tanta vida destruída, nossos parques e praças arrasados. Isso sim é prejuízo. O resto ( para mim)  foi só um incômodo. Um grande, mas passageiro incômodo.
Que não deixou de ser também, uma baita de uma experiência.

Dani Altmayer