quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Alguns mais




a seca mata a enchente mata a guerra

mata mais e quem não morre tem sede tem fome tem medo o medo mata o ódio mata se não mata fere sangra arde dói queima inunda a vida esse frágil fio esse frágil rio a desesperança mata se não mata fere
feridos estamos todos alguns muito mais as crianças as mulheres morrem antes ou coisa pior
a mentira mata fere arde dói queima inunda sangra o amor salva cura ameniza atenua dizem mas o amor é coisa rara assim de grande de inteiro de quesito humanidade de cunho de irmão de amor sem fronteira sem rosto sem cor sem pátria sem distinção
desse amor há carestia não há notícia
a religião mata o fundamento mata o preconceito a ganância a estúpida guerra matam se não matam todos ferem e feridos todos estamos alguns muito mais

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Cores


 

É tudo tão branco aqui. Eu acho bonito. Vocês, as enfermeiras, os doutores, são todos muito simpáticos. Nunca estive num hospital antes. Pari os cinco em casa mesmo. A Tonha que me ajudava. O marido ou tava fora pescando, ou na cachaça. A cachaça foi que matou ele, sabe? Morreu cuspindo sangue, nos meus braços. Fiz a cova na beira do rio, pode não parecer agora, mas esses braços tinham força. Foi pouco antes daquela enchente, não lembro o ano. Os meninos já tinham se ido, um para o colo de nosso senhor, o anjo Joaquim, os outros para a capital. Tudo macho, é assim, tivesse parido alguma menina não estava sozinha agora. Tem neto que não conheço. Desculpa se falo demais, tanto tempo que a Tonha se foi, era eu e os cahorros, as galinhas, o gato Tomé. Com o gato Tomé eu conversava bastante. Fiquei triste quando se foi, enterrei do lado do marido. Acho que gostava mais do gato que do Zé. Homem suga a gente, sabe? Ainda mais quando é cachaceiro. Essas rugas aqui, você pensa que é do sol, é da lida na roça. Que nada. Pode não parecer agora, mas eu era a mais bonita da vila. Saí de casa com 15 anos, atrás de homem pescador. Homem pescador não presta, a mãe dizia. Plantei milho e criei galinha a vida toda. Nunca bebi uma gota, tinha o corpo forte que só vendo. Meu vício era só a palha mesmo. Gostava de fumar na varanda, vendo o dia acabar, ouvindo rádio às vezes, às vezes ouvindo a tristeza do rio. Agora os doutores falam que essa doença é disso. Eu acho que é de outra coisa, sabe. Que eu tô magrinha assim é de saudades.
É tudo tão branquinho. Mas é bonito.


Texto para a oficina de escrita

Imagem: Entre folhas, óleo sobre tela, de Augusto Vieira

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Marias


Guarda o caderno com as senhas na gaveta das calcinhas. Dá uma olhada no espelho, passa novamente o corretivo sob os olhos, penteia os cabelos e ouve o barulho das chaves na porta.

- Chegamos, Maria.

Um beijo rápido no marido, um abraço no filho, a mesa já posta para três. Sopa de feijão, a preferida do menino.

- Mamãe, o que houve com o seu rosto?

Ela não responde, olha para o homem que desvia o olhar, serve o primeiro copo de cerveja e liga a televisão.

Faz 3 dias que Maria não sai de casa. Precisa fazer umas compras, põe os óculos escuros. Pede dinheiro para o marido, ontem viu um rato no quintal. Na ferragem tem veneno, ele diz. É melhor que ratoeira, mata logo, duro e seco.

Ela concorda. Duro e seco, perfeito. Pensa no caderno na gaveta, e sorri. Ele pede que ela traga mais cerveja. O futebol já começou e o menino dorme no sofá.



quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Ed. Majestade

 


Ontem o conselho tutelar. Hoje essa notificação. E o Bento com febre. O boletim do Murilo todo vermelho, o encaminhamento para a psicóloga, psicopedagoga, psiquiatra, o escambau.
E o aparelho móvel que o Benjamin perdeu no recreio, mais de mil de prejuízo.Tem semana que acontece tudo junto. E tem dias que só na força do ódio, mesmo. Preciso marcar a  dentista. E a fono. E as unhas.
Ainda dei de cara com a síndica no elevador. Fez que não era com ela, toda simpática, e os meninos? São três, né? Uma escadinha, né?
Falsa.
Não tenho um minuto de paz desde que mudei para cá. Bando de velho chato e mulher recalcada. Pensam que eu não vejo o jeito como me olham? Melhor seria se cuidassem desses maridos barrigudos. Já recebi mensagem de uns quantos.E não foi para reclamar do barulho dos meninos, não. Nem respondo, só bloqueio.
Tudo cidadão de bem.
Na academia do prédio colaram um cartaz agora, tem até uma citação da bíblia, pedindo para usar roupas adequadas. Top e shortinho é imoral no edifício. Criar filho sozinha também. Criança agitada não pode, cachorro grande não pode. Mas quase todo mundo tem labrador. Eu não tenho, já me basta esses três.
A próxima notificação vem com multa, avisa a administração. Não pode correr no corredor, nem jogar futebol na sala, não pode gritar com os próprios filhos, não pode usar roupa curta, ser gostosa, não pode tomar vinho sozinha, ouvir música boa, não pode perder a paciência, não pode ter vontade de meter a mão na cara da síndica, nem pode escrever o que se pensa no grupo do condomínio.
O conselheiro tutelar tirei de letra, porque na hora ele viu que era denúncia falsa, uns guris agitados, uma mãe estressada, choro e grito, quem nunca? Que atire a primeira pedra, já que gostam tanto da bíblia, também sei citar, como é aquela parte da mulher do próximo?
Antonio Carlos era o nome dele, um baixinho atarracado e vesgo. Fez umas anotações e foi embora, depois mandou mensagem engraçadinha no zap.
Homens.
Música sertaneja pode, pelo jeito. E alta, aí não é baruho. Queria saber quem foi o fdp do vizinho que me denunciou. Aposto na síndica. Ou em qualquer um desse prédio.

A febre do Bento subiu. 39, 5. Não chora, guri. Vamos para o hospital. Não, não vai ter injeção. Murilo, larga o celular, coloca a roupa. Benjamin, deixa a bola em casa. A arminha pode levar. Chama o elevador. Entra todo mundo AGORA!
No elevador, a síndica me olha de cima a baixo.
- Esse menino tá doente de novo? Já tentou homeopatia?

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Praia de inverno



 

Aquelas dunas
aquele vento
quanto de mim
é solidão e areia?
um pássaro rasante
o rugir das ondas
o quebrar das conchas
a fragilidade a força
na imensidão deserta
o que restou em mim
quanto daquele mar?
de ressaca
talvez isso explique
talvez não 

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Paradoxos

 


O rio caudaloso da cor do chocolate quente

Faz ponte
Logo atrás a cidade tem o céu arranhado de concreto crescente
Desenfreado
Em altas torres pretensiosas São Paulo não ensinou nada
A quase ninguém

Mas ali onde o rio as nuvens os pássaros
Logo adiante na estrada esburacada os lagos pastagens milharais
A vista que a vista não alcança
O sol nascendo atrás do morro
Pintando de azul os verdes infinitos
As araucárias imponentes a neblina
a velha casa de madeira desbotada
onde o fogão a lenha adivinho

Ali onde o tempo não corre nem faz questão 

domingo, 16 de julho de 2023

É isso

 


Nunca fez tanto sentido a frase aquela, você pode viver anos com alguém e de repente, descobrir que esse alguém é o mais perfeito desconhecido.

É que a vida é esse fluxo constante, que não deixa o eu de agora ser igual ao de antes, a não ser que eu me agarre firme nas minhas convicções e ideias, e ainda assim, as enxurradas. As intempéries, os ventos, as revoluções.

Levam as certezas para lá, feito a música do Chico, meu hino de vida, a roda viva.

Eu de hoje mal conheço a eu de ontem, ainda assim tenho a pretensão de achar que conheço o outro, quanta empáfia da minha parte, ou ingenuidade, quiçá, ainda assim.

Não reconheço.

A dor que a gente sente quando o amor se transforma em estranheza. Quando ele se vai, desgarrado. É uma dor ardida, porque a gente sempre acredita.

Acredita que o amor é mais forte que a passagem do tempo, é mais forte que a chuva e o vendaval, a gente acredita que na essência ainda somos os mesmos, aqueles que nasceram da mesma mãe e do mesmo pai, ainda que caminhos cruzados se descruzem, se desviem em vias lindeiras, ainda assim. Haveria de restar o que foi. A origem. O que somos, isso e aquilo, e o amor. Feito bússola, ou casa. Para onde voltar. O norte. Mas não. Não. 

No fundo, sabemos que a história não se apaga, apenas se cobre de silêncios.

E mágoas. As malditas águas, os véus, inúteis lágrimas. 

As despedidas em vida são sempre cruéis.

Algumas vezes, necessárias. Mas sempre cruéis.

Que Deus é esse, me diz. Que não se chama AMOR?






quarta-feira, 12 de julho de 2023

Isabella 11


O tempo joga sujo com a gente, é só piscar o olho e, cadê ?

Lá se foi o bebê, a criança, agora me surge essa  mocinha, e dizer mocinha é coisa de tia mesmo. Moça, então. Menina-moça, antigamente. Deixa assim, porque é isso.
A princesa bailarina, cheia de imaginação e sapeca se transformou numa quase adolescente, uma tween linda e inteligente, sensível e, assim espero, cheia de sonhos.
Porque se tem uma idade boa para sonhar alto e forte, é essa. Onze anos.
Onze anos de um amor sem fim. Onze anos dessa lindeza, e um mundo mais bonito porque ela existe.
Happy birthday, minha Bella. Nossa Izzie.
TiDani te ama, ao infinito e além.
❤️

quinta-feira, 22 de junho de 2023

O homem do lobo


 

Gosta que a chamem assim: baronesa. Dizem que descende de alguma nobreza europeia, provavelmente falida. Mas eu não acredito nisso, porque conheço a outra história. Ainda é bonita, por debaixo das rugas finas e dos sulcos que cobrem seu rosto de malares altos e nariz comprido. O nome é Ingrid, mas gosta que a chamem de baronesa. É viúva de um fazendeiro, plantavam arroz, tiveram dois filhos, ambos já falecidos. Vive com a antiga ama seca dos meninos, uma preta miúda e ligeira, numa casa grande que transformaram em pousada. Dizem que elas têm um caso,  mas não há provas. O acesso à ala onde moram é proibido, até para a criadagem da hospedaria. Só o velho gato cinzento circula livremente por toda a propriedade. Foi ela, a baronesa,  quem me contou essa história, numa de nossas passagens por lá.
Meu pai foi quem primeiro falou da estância. Havia passado uma noite, da qual chegou envolto em mistérios e mais silencioso que de hábito. Depois que ele faleceu, quisemos conhecer o local.
A pousada é afastada da cidade, fica em meio a um bosque, não é raro que falte luz. Mas não falta lenha para o fogão e a lareira na enorme sala de estar, e algumas tantas vezes nos reunimos ao redor do fogo para ouvir a velha senhora, com seu sotaque indefinido, a contar causos.
Era uma noite chuvosa, o marido e os filhos ainda estavam vivos, mas dormiam no andar de cima. Ela havia acordado com um trovão, logo em seguida ouviu o barulho de uma porta batendo, desceu para fazer um chá e encontrou na cozinha um homem muito loiro, cabelos longos encaracolados, todo vestido de preto, junto ao fogão à lenha. Aos pés dele havia um lobo.
O jovem sorriu ao me ver e, numa lingua estrangeira, talvez alemão, talvez austríaco, eu nunca soube dizer, era uma língua ao mesmo tempo estranha e familiar, pois eu o entendia perfeitamente, me chamou de baronesa e contou que vinha de muito longe com um recado do meu pai.
Acontece que a nossa baronesa nunca conheceu o pai, diziam ser nascida de um estupro, a mãe veio grávida para cá, trabalhou como empregada na casa dos pais do agora marido, assim se conheceram e casaram, contra a vontade dos sogros, a filha da empregada com o filho do fazendeiro.
 
O jovem, que nunca disse seu nome, me entregou uma carta e um saco onde havia uma carteira com bastante dinheiro, duas abotoaduras de ouro e uma foto desbotada de um homem de fraque e bigode. O barão, disse o jovem. Seu pai, baronesa. Ainda tentei fazer perguntas, mas ao contrário de mim, o jovem não  compreendia o que eu falava. A tempestade havia passado, e uma lua cheia inundava a cozinha. O lobo uivou, subitamente inquieto, e o jovem se despediu com uma mesura, saindo sem fazer alarde pela porta dos fundos.
Algum tempo depois, o marido e os filhos morreram. Ela vendeu parte da fazenda, e transformou a antiga casa de pedra nesta pousada onde meu pai pernoitou na juventude e para onde acabávamos sempre voltando. O dinheiro, me disse, não valeu de nada. Mas nas noites de luar, é possível ouvir os uivos do lobo, para muito além das planícies.

domingo, 18 de junho de 2023

Bolo de chocolate


 Sábado à tarde, cinzento e frio.

Limpando o bloco de notas do celular, dei com uma receita de bolo, fitness, of course. Rapidinho, de micro-ondas. Preciso comprar cacau e fermento para testar a receita, o resto tenho em casa.
Às vezes, prefiro comprar o bolo pronto. Quase sempre. No super aqui, tem um de aipim que é uma delícia. Bolo-raiz. Mas bolo raiz mesmo é aquele de chocolate da infância, a que chamávamos nega-maluca, não pode mais e está tudo bem. Acho mais do que certo. Não sou da turma do "que saudade do meu tempo", ainda que já tenha idade para tanto e seja exatamente dessa turma. E desse tempo. Outro dia, uma amiga de infância me pediu a receita, por sorte eu estava em Porto Alegre, vasculhei um caderno amarelo e encontrei a receita desbotada, ainda legível. O sabor das tantas tardes cassineiras de chuva, dos cafés de chaleira na Quitéria, da forma onde não restava migalha para contar a história, daquele bolo delícia que a Pia fazia, mas a receita era da Amenaide, todas já idas há tantos e tantos anos. É engraçado como restam nas lembranças os cheiros e os gostos, já escrevi que a memória é uma célula olfativa, é uma papila gustativa. O bolo fitness pode até ser gostoso, e ainda vou experimentar, mas o amor de verdade acaba sendo isso, um bolo de chocolate recém saído do forno. Aconchego quentinho, na medida exata, ou mesmo exagerada, de açúcar e afeto. É que sou desse tempo, do doce de verdade. Dos que engordam o corpo, principalmente a alma.

domingo, 11 de junho de 2023

Finalmente


Isso de morrer não estava nos meus planos.

Espero que o caixão esteja fechado, não acho necessidade de caixão aberto, ninguém fica bonito depois de morto, nunca vi alguém falando, estava tão bonita, só falam que estava em paz, que descansou, como se soubessem o que vem depois, ninguém fala da beleza do morto, da morta, mesmo com o capricho dos maquiadores, da funerária, não há beleza que resista ao cessar do fluxo sanguíneo, não há blush que dê conta. Também nunca ouvi dizer que, nossa, parecia triste-atormentada-infeliz-

preocupada, é sempre como se a morte fosse uma espécie de férias eternas, uma praia paradisíaca, uma rede na varanda, descansou, oras, as bobagens que as pessoas inventam para se consolar, viver é cansativo mas quase sempre é a melhor alternativa. Esperam da morte a libertação, uma epifania, e isso me parece superestimado, enquanto que a vida, pelo contrário, é cotidiano, piloto automático e favas contadas. Até não ser.

Tão jovem, 50 anos. Os velhos têm direito e, dependendo da idade, têm quase o dever de morrer. Nossa, viveu muito, dizem. Uma vida plena. Chegou longe. Como se soubessem. Cinquenta anos, cinquenta anos atrás, talvez não fosse o que é hoje, tão jovem. Hoje é sempre muito cedo para se morrer. Eu tenho cinquenta anos e não pretendo ir agora, não está em nenhum dos meus planos. 

Venho como amigo, nem isso, venho de curioso. Valéria. A menina mais bonita da oitava série, meu primeiro beijo, primeira punheta, primeiro coração partido. Anos sem saber dela. Até que teve uma festa, acho que deve fazer uns dez anos, um daqueles encontros marcados pelas redes sociais, todos na casa dos quarenta. 

Ela usava um vestido vermelho, o cabelão preso num rabo de cavalo, o sorriso de dentes agora parelhos e brancos, na época eu ainda estava casado e achei que poderia me apaixonar de novo pela Valéria, por aquele sorriso, aquela nuca, outro dia pensei em mandar mensagem, convidar para um vinho, pensei e não mandei, tinha tempo, sempre temos amanhãs, ontem veio a notícia no grupo do colégio, que a Valéria tinha morrido. Aos cinquenta anos você não espera receber esse tipo de notícia. 

Ficamos, eu e ela, com um vinho em aberto e tudo o que poderia ser, ainda que remotas fossem as chances, agora nunca saberei ao certo. A merda da morte é isso. Não saber.

O caixão está aberto, o corpo esguio, pequeno, coberto de flores miúdas e o rosto pálido maquiado parece o de uma boneca de cera, a cicatriz escondida pela echarpe rosada, a filha, chorando ao lado do corpo, é a cópia da mãe. Ela me diz, a voz rouca sem convicção: descansou.

Quero falar que sua mãe está bonita como sempre foi, e é próximo disso, uma boneca de cera de lábios pálidos, não seria mentira, para uma morta está bem, mas o que sai da minha boca é que sim, ela parece estar realmente em paz. Que merda.

 

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Flamingos


 Aninha era a faxineira lá de casa, quando eu tinha uns 14, 15 anos. Ela costumava ir três dias na semana, segunda, quarta e sexta. Às vezes precisava ir no sábado também. Quando tinha alguma festa ou jantar importante.

Nessa época minha mãe não morava mais com a gente, e a Mila estava quase cega. Meu pai saía toda noite. Acho que já era alcóolatra, mas eu não percebia. Essas coisas às vezes levam tempo. Meu irmão estava estudando para o vestibular, e praticamente morava na casa da namorada.
Eu gostava de conversar com a Ana, uma menina morena, magrinha, pouco mais velha que eu. Na verdade, eu falava na maior parte do tempo, e ela só ouvia. Costumava segui-la pela casa, como a Mila fazia comigo quando eu era pequena.
Aninha usava um batom vermelho que não desbotava nunca, mesmo que ela comesse, lavasse o rosto, não sei de que marca era, eu não tinha nenhum batom e nunca perguntei.
Uma tarde a convidei para tomar banho de piscina. Era verão, e ela tinha esfregado o piso do deck, estava toda suada, o batom intacto. Eu tomava sol na boia de flamingo, e ela disse que não podia entrar na piscina, meu pai não ia gostar. Mas ele estava viajando, e fazia muito calor naquela tarde. Emprestei um biquini velho, que não servia mais. Eu era gorda nessa época, ao menos segundo meu irmão.
O biquini ficou bonito nela, apesar de um pouco grande. Ela não sabia nadar, e ficou o tempo todo segurando na escadinha, batendo as pernas feito criança.
- O João ia gostar dessa tua boia.
Era a primeira vez que ela dizia alguma coisa, sem eu perguntar. Nunca tinha falado de João, ou qualquer outro nome. Pensei que fosse namorado. O cara da moto que ia buscar ela no fim da tarde.
- João é meu filho, disse. Ele tem 1 ano e 2 meses.
Olhei para a barriga dela, tão lisinha. Pedi para ela trazer ele, outro dia. Meu pai ia ficar fora até a outra semana. Eu poderia cuidar dele, brincar na piscina, enquanto ela limpava a casa.
Ela disse que não, e não insisti.
Teve um outro dia em que ela entrou na piscina de novo. Deixei ela ficar na boia comigo, depois a boia virou e tive que ajudar ela a chegar na borda. Não foi difícil, ela era leve, flutuava nos meus braços. Rimos muito nessa tarde. Ela tinha uma falha no dente. Eu usava aparelho. Queria dar um beijo nela, mas não dei.
No começo do outono ela parou de ir. A Mila morreu logo em seguida, e eu passava os dias trancada no quarto, escrevendo num diário. Comecei a me cortar por essa época.
Só muitos anos depois, meu pai me falou a verdade. 


Exercício para a oficina de escrita, Lucia Berlin

quinta-feira, 13 de abril de 2023

Não olhar para trás


 Inspiro com força, solto o ar com um suspiro. O cheiro do caminhão de porcos atravessa a cidade.

Ainda que fosse verão, era noite. Não se chega a lugar algum à noite. Não da primeira vez. Pior ainda se fosse inverno, hoje sabemos do que um inverno é capaz, e ainda que nos tivessem avisado, não avisaram.
O ônibus atravessa o estado errando todas as previsões, parando em todas as estações. Vai para o norte, volta de muito longe. E não tem direto. O horário é o da sorte, às vezes se espera algumas horas, em outras vezes se chega atrasado.
A estrada vai estreita, à medida em que se alarga a paisagem e o céu se torna mais alto e profundo, os buracos enormes arrebentam pneus e esperanças.
A mulher e a criança embarcaram com a gente, e seguem. Ela usa um lenço colorido na cabeça. O menino ainda mama no peito, deve ter uns 4 anos. Os dois têm os olhos grandes e a pele escura. Viajam calados. Imigrantes, fugidos de alguma guerra, alguma fome, outros perigos. Como nós, estrangeiros.
A viagem interminável da diáspora tem essa mudez, os olhos e a boca secos, não adianta chorar quando se tem medo. O choro, se aprende logo, guarda um fio de futuro, nasce das coragens. E as coragens deixamos lá atrás, na primeira rodoviária. No ponto de partida, nalgum sítio que chamávamos lar, nós, a mulher, o menino mamão, os que já saltaram, os que ainda vão entrar. Os trabalhadores de estação, provisórios, pobres coitados, destituídos de si. Vinho, abatedouro, frigorífico. Minas de carvão, soja, milho. Eles vêm porque precisam, nós também.
Os motivos de ir embora são sempre outros, as promessas de chegada, essas são iguais para todos.
A velha ponte de madeira, envolta nas névoas noturnas do rio, é a última e frágil divisa. Chegamos ao próximo destino.
A cidade dorme enquanto pego a mala e ando na rodoviária deserta. As rodinhas fazem barulho no silêncio da madrugada.
A mulher e o menino sentam no banco da praça. À espera de alguém ou de amanhã.O que vier primeiro.
O relógio da igreja está parado, marca meia hora, meio dia. O ônibus parte, apressado. Tem uma longa viagem pela frente. Todos nós.

quinta-feira, 30 de março de 2023

Funeral

 


Está mais chique,
definitivamente. Parece mais alta. O cabelo curto deixa a nuca à mostra, o vestido preto lhe cai bem. Nota-se de longe, caro. Tudo nela. Toco seu ombro, ela se vira, engole o sorriso. Não sabia que você estava na cidade, diz. Não podia deixar de vir. Sinto muito, Laura. Pois é, faz parte. Acende um cigarro, me oferece. Parei de fumar, um só não vai fazer diferença, Carlos. Vai bem com teu uísque. Aceito. A vista da sacada é bonita ao crepúsculo, as luzes da capital e atrás o rio pintado de vermelho, é verão mas há um vento leve, quase frio. Sua mãe está muito bem, digo. Ela tira os óculos e me encara, vejo o azul desbotado de seus olhos, mais opacos agora, ainda ferozes. Rugas finas se formam ao redor dos lábios enquanto ela traga o cigarro. Você não deveria estar aqui, e sabe disso. Ela também saberia, se lembrasse quem você é. Como pode? Olho para a idosa sentada numa poltrona, as costas rijas, postura impecável, de pernas cruzadas, a beleza preservada. Ninguém diz, sussurro. Eu, me diz ela. Eu digo, eu sei, eu carrego cada miĺimetro da memória que ela apagou, não se iluda. A sala do amplo apartamento está cheia de amigos e parentes que não reconheço. Muito tempo de exílio. Está na minha hora, digo. Viajo esta noite. Laura dá de ombros, não importa.

Você ficou bonita igual a ela. Ela suspira forte, abre a boca, desiste e se cala. Acende um cigarro no outro, o cinzeiro está abarrotado de pontas vermelhas. E o tio, pergunto. O que tem, resmunga. Ele sabia? Nunca soube. Você não estaria aqui, Carlito, se ele soubesse. Filho de uma puta. Sopra a fumaça no meu rosto, o vento agora é quente. Chuva de verão.

Texto para a oficina de escrita.


quinta-feira, 16 de março de 2023

Turbulências

 



A cabeça erguida, uma perna, depois a outra, depois a outra,no ritmo aprendido, incorporado, o barulho dos saltos abafado pelas vozes e chamadas nos alto-falantes, a saia justa na bunda agora grande, bunda demais para corredores cada vez mais estreitos. 
Envelhecer é uma merda. 
Ignoro a dor nos joelhos. Confiro na minha bolsa. Estão todos ali, os brancos e os azuis. Depois do embarque, depois do antidoping, depois eu resolvo. Já estou quase atrasada, mas preciso ir ao banheiro. Dor de barriga. 

Júlia está no toalete, retocando o batom. 
- Oi Nice, óculos novos?
O voo é longo, está lotado, um dos pilotos é bipolar não medicado, metido a pegador e a atual mulher do meu ex-marido é a comissária chefe.
A noite promete.
- Oi, Júlia.
Guardo os óculos no estojo, ainda não me acostumei com as lentes multifocais. Ela arruma o coque, ajeita a camisa na cintura fina, alisa a barriga que nunca pariu. Me avisa que vou ficar na primeira classe.
- Tem mais espaço para você.
Engordar tem lá suas vantagens, afinal. 
Não respondo. Lavo as mãos lentamente.  Quero que ela suma, mas ela não tem pressa. Observo nosso reflexo no espelho de corpo inteiro. É isso. Uma merda.
A súbita onda de calor me deixa o rosto vermelho, rodas de suor marcam minhas axilas, afrouxo o lenço no pescoço. 
Ela me olha, fresca e sorridente, me alcança um lenço umedecido.
- Vamos? Está na nossa hora.

De volta à oficina de escrita❤️