domingo, 30 de abril de 2017

Tem um circo na cidade




O outono avança no último dia de abril,
num daqueles dias frios sem vento.
O sol se derrama sobre a cidade,
Envolvendo tudo num cálido abraço.
Não há nuvens no céu azul de brigadeiro
Mas há um circo à beira do rio.

Sob a lona da vida,
O picadeiro.

Um palhaço chora
A bailarina sem jeito dança.
O mágico erra o truque,
Um lenço não vira coelho.
A criança sorri pipocas
Enquanto um velho desdentado,
Algodão doce.

No trapézio os amantes se enlaçam
As mãos dadas
Corpos retesados, semi-nus
Suspensos.
Não há rede embaixo
(Não há rede no amor)

O tambor bate forte

A música para, de súbito.
Do salto, de susto:
Deu certo:
Estão voando,
Respeitável público...
Voaram.

Dani Altmayer
( pedalando por aí)



Porque a visão do circo nesse ano de 2017 ativou memórias de chãos de serragem, de cheiros, de barulhos.
Em homenagem à resistência e à coragem. De cada artista itinerante.
De todos esses que um dia habitaram minha imaginação e fizeram minha alegria. ( Apesar do medo que eu tinha -e tenho- dos palhaços)

quarta-feira, 26 de abril de 2017

À capela

Da série a poesia que nos salva:

Ela está sentada no primeiro banco da lotação.Idade indefinida entre sessenta e setenta anos, cabelos loiros, usa um casaco vermelho.
Canta. 
Quando eu entro, ela está entoando Dolores Duran, "a rosa mais linda que houver". Tem a voz forte e melodiosa:" Para enfeitar a noite do meu bem".
Depois passa para Lupicínio, "eu não sei se o que trago no peito"...
Quando desço, ela canta Elis e a música que me acompanha pelo resto do dia é Fascinação .
Daquelas coisas que acontecem de repente. 

Numa tarde ensolarada e fria de abril.
Dani Altmayer

terça-feira, 25 de abril de 2017

O não amor mais bonito



Sem me amar, você me permitiu conhecer o amor como eu sempre acreditei que era para ser:
Um amor livre, de aceitação e acolhimento, um amor que admira e respeita, um amor que escuta e enxerga. 
Um amor que usa todos os sentidos, do corpo e do espírito.
Sem me amar, você me deu coragem.
Você me permitiu a entrega. E eu entreguei a você não o meu melhor, mas tudo que eu era. 
Em cada beijo, em cada gozo, em cada riso. Em cada descoberta, foram tantas.
Você me permitiu ser, tanto.
Toda hora sinto vontade de te falar. De te contar uma história, tenho até colecionado algumas. A vontade vem como uma ânsia, "ah, ele ia gostar de saber disso."
E eu me calo, engulo. Resignada.
Minha voz anda rouca de palavras engasgadas.
De vez em quando ainda choro. Como quando ouvi a música do Chico, e lembrei do teu sapato pisando a minha sandália no tapete da sala, numa tarde quente de verão.
Quem, se não você, poderia entender?
Outro dia tinha que escrever um texto e não conseguia. Só saiu bom quando escrevi para você. (E olha que coisa, você nem vai ler). 
Quando eu me sentia perdida e pequena, tantas vezes teu abraço grande me devolveu ao tamanho certo. Todas as vezes. (Era ali que eu me derretia, me moldava, me fundia.)
E quando eu tinha o tamanho certo, nosso encaixe era daquele jeito que você sabe. 
Perfeito.
Precisava te dizer isso hoje, só isso: obrigada. 
Porque você não me amou do jeito mais lindo e mais raro desse mundo.
E eu te amei do único jeito que eu sabia:
Com toda essa minha pouca poesia.
 Muito.

Dani Altmayer




domingo, 23 de abril de 2017

Dias de chuva



Mais uma de consultório:

Ela tem nove anos e está desiludida com a vida.
Nos dias de sol, chove.
Tem os braços magrinhos tomados de hematomas.
Por uma dor que se auto-infligiu.
Ela tem nove anos, e os olhos mais lindos que já vi.
Os mais melancólicos, também.
Ela e a mãe apareceram ao final do meu plantão ontem, quebrando a rotina das febres e das tosses incuráveis.
Vieram em busca de ajuda.
Ela tem nove anos, e um sorriso tímido.
Tem nome de flor.
Ela não vê que nos dias de sol as nuvens desenham o céu.
Porque, para ela, nos dias de sol... chove.
Todo dia é de chuva.
A mãe me conta a história de M, chorando:
-Doutora, uma menina tão boazinha, quieta, estudiosa. A gente ouve as coisas e acha que é só com os outros, que nunca vai acontecer com a gente, sabe?
Sei, porque a gente esquece.
Que nós somos os outros.
A depressão é coisa séria, em qualquer idade. Mas é tão mais triste quando se tem apenas nove anos.
(Para quem acha que não passa de uma brincadeira: infelizmente, não é. Essa história é de verdade.)

Dani Altmayer



domingo, 9 de abril de 2017

Chorei por nós


O domingo amanheceu cinza e com cara de chuva. Cedo chegou o aviso de que ele havia partido.
Saí para pedalar, arriscando o banho. A chuva me alcançou na beira do rio, molhando meu rosto, embaçando os óculos. Eu não chorei por ele, as lágrimas vinham do céu que tinha a mesma cor desolada daquele lago sem horizonte. 
Há um par de anos eu o encontrava na entrada da clínica, varrendo a calçada, lavando a sujeira dos mendigos da noite anterior: bom dia, doutora. Na saída: bom descanso, doutora. (Mal sabia ele que era só o meio da longa jornada de todo santo dia.)
Não chorei por ele, não o conhecia o suficiente para saber de seus amigos, suas dores, seus amores. Dele, só conheci a gentileza. Mas fiquei triste, pensando:
Há pouco mais de uma semana, encontrei a notícia de que estava doente, depois de que era grave, hoje me disseram que havia morrido. Foi muito rápido. Assim é a vida, não passa de um sopro.
Um dia você varre a calçada, no outro está morto. 
E a gente se desperdiça tanto, nesse tempo emprestado...

Dani Altmayer

sábado, 1 de abril de 2017

Das poesias perdidas

     
                           
                       

"perdemos repentinamente
 a profundidade dos campos
 os enigmas singulares
 a claridade que juramos conservar

mas levamos anos
a esquecer alguém
que apenas nos olhou. "

José Tolentino de Mendonça





Sentir é verbo solitário, meu bem.

Abraço um poema sinto frio.
Ele não tem o calor do teu corpo não tem o tamanho.
Sinto tanto frio que nem sei dizer poesia.


("estar-se tão dentro e tão aquém")

Dani Altmayer

Depois de ter você, poetas para quê?