sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Eu Sou

“Não doador de órgãos e tecidos”.
Era o que estava carimbado na identidade dele. Um homem saudável, de 43 anos.
Tive vontade de perguntar “por quê”? Mas não perguntei. Apenas devolvi a carteira, e segui a consulta.
Imagino que ele tenha lá seus motivos, sejam de que ordem for, religião ou fé. Tenho por hábito respeitar as escolhas alheias, ainda que não as entenda ou não concorde. Depois que ele saiu, fiquei pensando. Antipatizei com aquele carimbo e com aquele homem, de quem não sei quase nada.
Não sei se ele tem um amor. Um filho. Uma mãe, ou um pai. Só sei que espero que ele nunca precise de um rim, uma córnea, uma medula. Nem que ninguém que ele ame sofra por anos na fila de um transplante.
Porque, de todas as hipóteses e crenças que tenho, só uma certeza me resta. Que nada resta, do corpo, depois. Da alma, não sei.
A morte é o fim, dessa forma.
Então, não quero que chorem por mim, depois de morta. Não quero flores e homenagens póstumas. Quero-as todas em vida, as lágrimas, as flores e os amores. Não quero que esperem que eu morra para dizer que me amam, que me digam agora.
Quero doar o meu corpo, em vida. Minha alma, em vida. E quero receber, em vida.
No fim, que virá, não tem como escapar, também quero doar. O meu corpo sem vida sem alma.
Invólucro vazio, papel de embrulho. Nem precisam enterrar. Tanto faz.
Podem dar. Tudo, e cada pedaço que ainda prestar.
Uma morte, a serviço de outras vidas.
Mais bonito que isso, talvez só uma vida, a serviço de outras vidas.
Dani Altmayer

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Amanhã tudo volta ao normal

Na avenida, máscaras e espuma se misturam.
Numa alegria um pouco triste.
No quarto, o barulho do vento na janela
O sono, interrompido.
Um batuque, ao longe.
Insiste em lembrar.
Tum tac. Tum tac.
A noite, descompassada.
É carnaval.
Afinal, quem é você?
Um aperto no peito, insone.
Tum. Tac.
O coração, que não sabe. Sambar.

Dani Altmayer

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Um dia

google images- destroços tsunami 2004

Um dia alguém vai dar uma notícia que você não quer ouvir.
Ou virá a notícia que você tanto queria.
Um dia algo muito ruim vai te acontecer.
Ou ao contrário, um dia você vai viver o melhor dia da sua vida.
Não importa.
A partir desse dia, tudo vai mudar. Nada mais ficará no lugar.
Tem sempre alguma coisa acontecendo, boa e ruim, mas nem sempre a gente consegue perceber,  misturadas que essas coisas estão num cotidiano sem graça, no terreno pseudo seguro do nosso quintal.
Então, quando vem assim, em forma de tsunami, vem atropelando tudo, certezas, dúvidas, razões e conforto. Derruba casa, e abrigo.
Um raio de realidade, um ponto de não retorno, um choque, tipo "então é isso"?
Porque a vida não foi feita para andar nos trilhos, ela não é pontual, e muitas vezes não leva mesmo a nenhum lugar esperado. É uma louca descontrolada.
Acidentes e merda acontecem. Milagres também. Todos os dias, ou uma vez ou outra. Por sorte, ou azar.
E é, em geral, quando acontece algo tão grande, que a gente entende. Que dali para frente, tudo vai ter que ser bem diferente. É quando a gente aprende a ser gente. No susto. Da dor, ou do amor.
Dizem que são os dois únicos jeitos de crescer, no sentido de evolução. No amor e na dor.
E por que, tantas vezes, escolhemos a dor? O que não mata nos fortalece. Pode ser.
Criamos couraças, e muros, e defesas, baseados e alimentados pela dor. Nos habituamos a ela, fazemos amizade.
Ficamos mais fortes, é certo, mas como um músculo hipertrofiado e rígido, nos tornamos também muito mais duros. Nem sempre muito mais maduros.
Já o amor, ah, o amor faz crescer de outro jeito. Ele nos torna flexíveis, e maleáveis, e também mais fortes, de uma forma suave e leve. O amor nos transforma, eleva.
Só que tantas vezes esse amor é tão intenso e violento também, que nos arranca as raízes, e nos deixa vulneráveis. Com os nervos expostos, também dói. De outro jeito.
Algo extraordinário, de bom ou de ruim, de repente, acontece. Um dia, a todos.
Você não esperava, eu sei. Dá um baita medo. Sempre dá medo, esse território do desconhecido. Porque ele bagunça com a cabeça, o coração, o corpo e a mente, e já não se pode voltar atrás. Já não tem nada de antes, ali.
Não adianta se perguntar "por que comigo"? Porque, com todo mundo.
Esquece a pergunta, e a resposta. Um dia, você vai saber, ou não.
Já é depois. E nesse ponto, só cabem duas escolhas.
Aceitar, e tocar em frente, da maneira que der, e vier, e puder. Com medo ainda, tudo bem, mas com amor.
Ou paralisar e enrijecer, na dor. Por medo, da dor.
Ou pior ainda, por medo da dor do amor.

Dani Altmayer

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Duas canoas






Ela me olha com aqueles olhos enormes, que parecem os de um bicho assustado, um guaxinim. Tem olheiras, e o rímel borrado reforça a imagem que me vem à cabeça.
É sempre assim, depois de um ataque de raiva, o arrependimento e o choro compulsivo que se segue.
No começo funcionava, eu me comovia. Ficava até com tesão, não sou do tipo que não suporta mulher chorando, achava bonitinho.
Hoje eu não aguento nem olhar para ela, a vontade é de sumir. Estou há dezoito anos enredado nessa teia que ajudei a tecer, e não faço nem ideia se saberia sair, mesmo que quisesse.
- Paulo!
- Não é justo, Fabíola, você descarregar em mim.
- Eu sei, meu amor, me perdoa. Você não sabe o que foi o meu dia...
Eu não sei, e nem preciso saber como foi o seu dia. Penso, mas não digo.
Acho engraçado como as pessoas sempre se justificam, ou culpam, algo ou alguém, pelas merdas que elas mesmas cultivam. Porra, ninguém merece ser a lata de lixo do outro. Não interessa, eu também tenho minhas coisas, todo mundo tem, mas dá para separar. Por que será que a Fabi não pode resolver seus problemas sem ter que me meter no meio?
Acho que a gente se ilude muito, põe expectativa demais na relação, deve ser isso, como se fosse possível se salvar agarrando o pobre coitado que está ao seu lado. E que também está se afogando, e você nem sequer consegue perceber.
Penso nisso enquanto ela me abraça sem força, por trás. Não falo nada, fico quieto. Aprendi que silêncio é uma benção, nesses dias de discussões intermináveis. Ando cansado até para ter razão.
Estamos atrasados para a festa de formatura da sobrinha do cunhado da irmã dela. Não sei porque temos que ir. Meu desejo agora era tirar esse terno, pegar uma taça de vinho e voltar para o meu livro. Suspiro e a afasto, um pouco bruscamente.
- Vá retocar a maquiagem, Fabíola.
Ela veste um vestido preto com franjas, que valoriza seu corpo bem definido pela academia diária.
Os amigos vão dizer que está  maravilhosa, sempre dizem. Ela é uma mulher que chama atenção, eu sei. Mas eu não consigo mais achá-la bonita. Acho feia.
Quando ela pergunta "estou bonita", eu minto: "está linda. "A verdade é que mal olho para ela.
Acho que ela pergunta só por perguntar, por costume. Por costume, quase tudo.
- Vamos?
Os olhos azuis e grandes estão vermelhos, mas a maquiagem foi refeita com sucesso. Nem parece que tem olheiras. Ela é boa nisso de disfarçar. Sorri para mim, sem vontade, e eu desvio o rosto.
Ela senta na camionete ao meu lado, reclama do ar condicionado forte, e coloca uma música no mp3. Melhor do que o silêncio desconfortável que certamente se seguiria.
Faz tempo que a gente não termina uma briga na cama, como eu acho que tem que ser. Como era, no início. Faz tempo que a gente não resolve uma discussão com um beijo.
Na real, faz tempo que a gente não resolve, não começa, e não termina nada, com ou sem beijo.
Faz tempo que estacionamos em reticências sem fim.
Sinto algo estranho na minha mão, ao girar o volante. Acendo a luz.
- Olha, Fabi, uma teia de aranha.
A canção que está tocando é triste e suave, e me faz lembrar dos tempos distantes da adolescência.
- Paulo, você está chorando?

Dani Altmayer