domingo, 25 de agosto de 2019

Gostando de ser




E depois da longa noite, não era de admirar que, no súbito despertar do dia, o excesso de luz a deixasse temporariamente cega.
Levou um tempo para se ajustar à claridade intensa da manhã. 
Manhã que entreviu ao romper o lacre da janela- que não só vedava o sol, mas também impedia qualquer ar de passar. 
Surpreendeu-se com um vento gelado a arrepiar a espinha e a descobrir que o mundo não tinha terminado, pelo contrário.
Acabara de ser reinaugurado.
As lágrimas de alívio tinham o mesmo frescor do orvalho da madrugada, o sabor inconfundível do sal, do sol, da novíssima liberdade.
Na garganta o grito desfez o nó.
Levou um tempo ainda a se acostumar assim, com os dias descortinados em azul, o riso fácil, frouxo, o caminhar descalço e leve, com o gozo forte, múltiplo, intenso.
Demorou a pegar nas mãos o que chama agora de vida.
Até que cada clarão já não era mais apenas um dia, depois de outro dia. 
Passou então a viver de estreias.
De catar poesia e outras infinitas possibilidades.

Daniela Altmayer
Trilha sonora sugerida: As vitrines do Chico Buarque