sábado, 22 de dezembro de 2012

De novo no coração


 Folheando  O Livro dos Abraços, de Eduardo Galeano, logo na primeira página algo me chamou atenção. Está escrito assim: "Recordar: do latim re- cordis, voltar a passar pelo coração".
Nesta época do ano, não são só os bancos e as empresas que fazem seu balanço anual. Não sei explicar exatamente porque, mas a maioria de nós tende a fazer isso também, com a própria vida. Uma retrospectiva do ano, pessoal e intransferível. Talvez porque, como diz Mario Quintana: "bendito quem inventou o belo truque do calendário, pois o bom da segunda feira, do dia primeiro de cada mês e de cada ano novo, é que nos dão a impressão que a vida não continua, apenas recomeça".
Talvez esta seja a razão. Acreditarmos que o novo ano é uma página em branco, novinha em folha, cheia de oportunidades para recomeçar, reescrever, reinventar. Para isso, precisamos recordar. Fazer passar de novo, pelo coração, todas as coisas importantes que nos aconteceram, e que nos marcaram ,neste ano que chegou ao fim. Para que possamos escolher, com cuidado, o que precisamos deixar para trás, e o que queremos levar adiante. Para reconhecer o que foi acerto e o que foi erro, e com eles poder crescer.
 O ano que passou foi um ano muito especial para mim. Foi um ano intenso, emocionalmente falando. Muita coisa aconteceu, muita coisa boa, e muita coisa ruim, como em todos os anos, aliás, só que neste em maior proporção. Sofri bastante, chorei muito, amei demais, me decepcionei um tanto, morri de rir, rompi padrões. Escrevi pra caramba, senti muito. Reencontrei, me desencontrei. Me encantei, e desencantei. Ganhei muitos presentes, perdi muitos, ausentes. Coisas se romperam, pela minha vontade, e contra a minha vontade. Outras coisas, pelo contrário, teceram, com fios de ouro, belos laços na minha história .Foi um ano bipolar no bom sentido, cheio de emoções, as mais extremas.  O que me fez feliz, me arrebatou. O que me deixou infeliz, me arrasou. Conheci, reconheci e desconheci muita gente. Viagens, nascimentos, perdas,separações. Superações.Muito trabalho, alguns bons amigos, uma bicicleta nova. Minhas pedaladas. Uma sobrinha linda. Meu filho. Família. Um ano cheio de cor. Cheio de dor. Cheio de amor. Hoje, passando tudo pelo coração, de novo, percebi que foi um ano em que vivi, como há muito não vivia. E aprendi, como há muito não aprendia. E agradeço, por isso, a todos que fizeram parte do meu 2012, meus professores na escola desta vida. Agradeço, porque saio deste ano mais viva,  mais forte, e, quero muito acreditar, um tantinho mais sábia. Agradeço, porque, fechado o meu balanço, concluí que o saldo foi fortemente positivo.
 E que  venha 2013! Que venha com tudo que for para ser, e que seja sempre o melhor, para todos nós. Que estejamos conectados com o que importa de verdade neste mundo. Que saibamos reconhecer a beleza que sempre há. Que o respeito pela vida, em todas as formas, sempre venha  em primeiro lugar. E principalmente, que estejamos sempre perto de quem queremos e de quem nos quer bem. De quem nos faz bem.  Mesmo longe, que hajam mais pontes e estradas,  muitos outros caminhos e poucos muros.Que a gente não se perca da gente. Que tenhamos paz. Que não nos falte  saúde, dinheiro, e amor. Que haja sempre amor para recomeçar. E que nunca, nunca mesmo, falte um coração. Um coração para recordar.

Que seja feliz, este 2013 que está chegando. E que seja melhor, sempre melhor! Para todos nós.

Chora

Chora em silêncio, sem gritos, sem súplicas. Chora sozinha a dor que é só sua. Chora sem segurar, sem tentar engolir. Chora as lágrimas salgadas, amargas da decepção. Chora a saudade que não quer ter. Que não pode ter.Chora a raiva que precisa conhecer.Que precisa ter, para sobreviver. Chora o sonho perdido, a ilusão, maya. Chora a vontade que não é permitida. Chora a escolha de si mesma. Chora a perda, a decisão tomada, doída. Decisão precisa.Chora com o orgulho entalado na garganta. Chora o desprezo, a indiferença Chora tantos enganos.Chora sozinha, baixinho, quietinha. Chora como uma criança que perdeu o jogo. E reza, como uma criança que não quer mais a  dor: que passe logo, por favor, que passe rápido, que passe, simplesmente. Chora, que passa.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Um mundo de saudade


Tem dias em que a gente fica cheia de saudade. Hoje é um desses dias. Mas senti uma saudade diferente. Senti saudades dos meus livros. Senti saudades das histórias que povoaram minha infância e minha adolescência. Nem lembro mais os nomes da maioria dos livros, mas, olhando a chuva que cai pela janela, senti saudades deles. Comecei a ler muito cedo, e foi paixão à primeira vista. Amor incondicional. Vivia com o nariz enfiado em páginas de aventuras e romances. Já tive o dedo verde, joguei o jogo do contente, me arrepiei com os morros que uivavam. Plantei um pé de laranja lima, e chorei. Chorei também com Romeu e Julieta, sonhei com príncipes encantados, dormi com fábulas de todos os tipos. Já me chamei Brida e tinha um pônei lindo, foi quando me apaixonei por cavalos. Tive um cachorrinho chamado Samba. Investiguei mistérios, catei conchas, naufraguei em uma praia qualquer. Descobri na areia os capitães. Já tive uma leveza insustentável, e muitos e muitos anos de solidão. Construí igrejas na Inglaterra, lutei guerras de todos os tipos, até as frias. Superei obstáculos, fui orfã e depois adotada.Vivi com meu avô em uma montanha, e me chamava Heidi. Cuidei de pássaros feridos, mais de uma vez. Morei em uma casa cheia de espíritos e cresci acreditando ser uma pequena princesa. Brinquei com fantoches de Deus, viajei com um príncipe pequeno, e ele me ensinou que somos responsáveis por aquilo que cativamos.
Viajei com ele e com muitos outros, por planetas, mares e terras muito distantes. Conheci vários países, inúmeras cidades. Dei a volta ao mundo umas mil vezes, pelo menos. Acreditei todas as vezes em amores verdadeiros, mais de mil, ah sim, bem mais de mil vezes. Aliás, continuo acreditando. Sequelas. Li livros sem capas, amarelados, e roídos pelas traças. Li e reli quase todos. Alguns "treli."Poucos deixei de lado, quase nenhum não terminei. Eles eram meus melhores amigos. Meu jardim secreto. Ali se escondia uma menina tímida, que se via desajeitada e feiosa. Que não sabia muito como participar. Era naqueles livros que ela achava um consolo, uma magia e a alegria imensa de pertencer.
Talvez seja a época do ano, uma época de reavaliações. Talvez eu sinta falta é daquela garotinha de óculos e com a  cabeça cheia de imaginação. Dela, que se perdeu de seus maiores amigos quando precisou crescer de verdade. Dela, que tinha o coração maior do mundo, onde cabiam todos os sonhos, de todos os mundos. Não sei. Mas hoje senti saudades dos meus livros antigos, e há muito perdidos nas prateleiras do tempo. Senti saudades das histórias da minha vida. Da minha vida, repleta de histórias.

Dani Altmayer

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Meu sol, tua chuva

Hoje foi um dia diferente dos outros. Estava chovendo lá fora. Dentro fazia sol. Há tempos isso não acontecia. Acordar com o sol por dentro, e a chuva lá fora. Vinha sendo ao contrário  Estranhei um pouco. Engraçado como a gente se apega. Nossas dores de estimação, como a gente cuida bem delas. Cultiva, até.
Mesmo assim, um belo dia você acorda e, surpresa: tem sol! Assim mesmo, do nada. Por nada.Talvez não por nada, talvez por tudo. Porque a vida cuida de nós, mesmo que a gente não perceba. Ela tem uma sabedoria própria, e você pode chamar de Deus, de Universo, ou, simplesmente, de lei natural. A lei é simples: depois da chuva, vem o sol. E vem de surpresa,  até em uma manhã chuvosa como a de hoje.
Acordei assim, com um sol por dentro. Pensei, não é que é verdade? "Não há mal que sempre dure..." Bom, "nem bem que nunca termine." Mas aí já é outra conversa, a transitoriedade de tudo.
Há que se trabalhar o desapego, etc e tal.
Mas não agora, não hoje, nem vou pensar nisso. Hoje eu vou vestir uma roupa bonita, e o meu melhor sorriso. Vou me enfeitar de arco íris.Vou sair na rua sem me incomodar com a chuva que cai, insistente. Posso até me molhar, hoje não vou me importar. Vou curtir este momento, este instante. Este meu sol, dançando feliz na tua chuva.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Aviso aos usuários


" Em você eu amo até as coisas que odeio."Tirei esta frase de um seriado ao qual estava asssitindo outro dia. Era um casal gay, ele estava pedindo o outro em casamento, e como boa romântica, guardei a frase. Foi um pedido bem bonito, entre outras coisas ele falou que, com o outro, ele conseguia ser ele mesmo. E isso é ainda mais bonito, na minha opinião. Não precisar fingir ser alguém que não é, e mesmo assim ser aceito. Enxergar o que não gosta ou concorda, e ainda assim ser capaz de amar. 
(Porque ninguém neste mundo é perfeito, e muito menos feito para um encaixe perfeito.)
Geralmente esquecemos disso. A gente se apaixona, fica meio cego, acha tudo lindo. Depois começa a querer mudar a pessoa. Moldar. Lembrei  então da música do Caetano,"Quereres ":Eu te quero (e não queres) como sou, não te quero (e não queres) como és."  É bem assim. Porque, como diz  outro poeta : o nosso amor a gente inventa.( Cazuza). A gente pensa que ama. Finge que acredita. Pra se distrair. Mas pouco sabemos do amor. Confundimos tesão com amor. Confundimos carência com amor. E nem ao menos nos damos ao trabalho. De saber se podemos amar até mesmo quando detestamos. De verificar se o amor encontra-se no andar. Porque, agora citando a Martha Medeiros, o melhor amor é o correspondido. Esquecemos do básico. Sem isso, não dá nem para começar a conversar. Se não, quando acaba, a gente fica pensando que ele nunca existiu.

sábado, 8 de dezembro de 2012

Só estrelas o tempo não leva

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O tempo é engraçado, e nos prega peças. Ele não cura tudo, nem traz todas as respostas. Mas muitas vezes, ele some com as perguntas. Quanto de nosso tempo gastamos com frustrações, pensando em desejos e sonhos que nunca foram realizados, e que hoje, na verdade, não tem mais a menor importância? Dos quais já nem mesmo lembramos? Porque as coisas mudam, o tempo todo. E nossos desejos e sonhos também.
Eu lembro que,há uns muitos anos, meu sonho era morar em uma casa ou prédio onde houvesse uma piscina. Não porque eu  fosse gostar de nadar na piscina, mas eu queria um lugar para tomar sol. Ficar bronzeada. Achava lindo ficar bronzeada. Não aconteceu, não tive a minha casa com piscina, nem sei porquê, tem uma poça d`água em cada prédio nesta cidade. Mas não calhou, foram outras escolhas.E hoje, isto não faz a menor falta, porque eu simplesmente detesto ficar torrando ao sol. Gosto sim, do sol, para caminhar na praia, andar de bicicleta, aproveitar o dia, enfim, qualquer coisa que signifique movimento. Não tenho mais paciência para ficar virando, feito galinha na TV de cachorro, e assar todos os lados por igual. Nem paciência, nem idade, sendo bem honesta. Quando as rugas falam mais alto, as prioridades mudam.
Há um tempo eu tinha o desejo de viajar o mundo todo. De viajar o tempo todo, e conhecer todos os lugares. Também não aconteceu, pouco provável que aconteça. Não sonho mais com isso. Ainda amo viajar, e viajo. Mas me permito repetir os destinos, se meu coração assim o pede, duas, três, cinco vezes, sem culpas. Porque a melhor viagem é aquela que você faz com seu bolso e sua alma leves, em igual proporção. E aprendi que viajar não te leva para longe de você mesmo, e isso não é um clichê, mesmo sendo. Entendi que, se eu estiver bem, uma travessia de balsa até São José do Norte pode ser um belo passeio. Agora, se eu estiver mal, nem Paris resolve, mesmo o dito popular falando que é sempre melhor sofrer em Paris. Não acho, prefiro chorar no meu travesseiro, é mais barato, e me conhece, também. Em Paris quero mais é ser feliz.
Antes, eu achava que tinha que ler todas as notícias, assistir a todos os jornais, estar sempre antenada, por dentro de tudo que acontecia. Hoje prefiro a ignorância, e a escolho, sempre que posso. Ganho em paz, a paz dos ignorantes, que seja, mas ainda assim, paz.
Eu adoro ir ao cinema. Antigamente ficava angustiada por não poder assistir a todos os filmes que queria. Passei muito tempo só vendo filmes infantis, e olha, aprendi a amá-los, e aprendi muito com eles. Hoje até sinto falta. Agora, que já tenho minha liberdade condicional, eu olho o jornal, e escolho cuidadosamente um ou outro filme, geralmente fora do circuito de blockbusters. Tenho um acerto de 90%, o que não é nada mal, nas minhas escolhas (de filmes, que fique bem claro). E continuo não podendo ver todos. Não se pode ter tudo, assim é a vida, algumas coisas sempre se perdem no caminho. E o mesmo vale para livros, outra paixão. Entrava em uma livraria, e era aquela festa do consumo. E da ansiedade, pois, mesmo sendo compulsiva assumida, existe limite no cartão de crédito. Saía com a sensação de ter deixado algo para trás, com a sensação de que estava perdendo alguma coisa. E estava, não estamos sempre? Para cada escolha uma renúncia.
Um dia também sonhei com uma vida tradicional, com uma família convencional. Faz tempo isso, acho que foi em outra existência. Ao menos parece.Também não aconteceu, Foi tudo muito diferente do que pensei que seria. Mas é tão autêntico e tão verdadeiro o que tenho, que não poderia querer outra coisa para a minha vida, agora.
O tempo, este senhor inclemente, ele nos prega peças. Não, ele não tem as respostas. Ele realmente muda as perguntas. Ou some com elas. Mas os sonhos não morrem, são como a natureza. Apenas se transformam. A gente, enquanto não morre, se transforma. Tudo muda, o tempo todo. Hoje as minhas estrelas, o meu céu, os meus desejos, não são os mesmos de ontem. Hoje a minha felicidade é uma manhã de domingo, pedalando com o meu filho na orla do Guaíba. É sentir o vento no cabelo, o sol no rosto, este sol que adoro e que não me bronzeia mais, porque não desejo mais.
É a alegria antecipada do encontro que terei em breve, de segurar nos braços uma bebê muito amada, e reencontrar suas mães também muito amadas. É a minha família, espalhada e estranha, se reunindo no final do ano. É a expectativa de férias, de uns dias junto ao mar, de uma vida mais simples.
A minha felicidade, hoje, não está mais em esperar o impossível acontecer. Está em fazer da minha vida algo realizável, a cada dia. Sem deixar de sonhar, nem por um dia.

Dani Altmayer

sábado, 1 de dezembro de 2012

Manhã de dezembro

Eu moro em uma cidade cheia de árvores. Gosto disso. Nem gosto tanto da cidade assim, mas amo  árvores. E, como amo árvores, acabo amando a cidade também, de certa forma. Hoje bem cedinho, antes da chuva chegar, fui pedalar, sozinha, no parque. Um parque meio mal cuidado, mas que tem as árvores mais lindas. Caminhos estreitos, cheios de luz e sombras, ladeados por imensas árvores , que fazem os desenhos mais loucos, em sua jornada rumo ao céu. Não conheço seus nomes, não lembro nada de botânica, e nem quero. Não preciso conhecer, dar nome, classificar, para amar. Preciso apenas, passar devagar, e ver.E vou, parando de vez em quando, para admirar os tapetes de pétalas que cobrem o chão, e as  flores que cobrem as cúpulas, a forma de seus galhos, seus verdes de todos os tons.
Lembro do inverno, quando muitas destas árvores estavam secas, sem folha alguma, e me encanta este ciclo de renovação. Quero aprender com ele, o que, no fundo já sei, mas ainda esqueço, mais vezes do que gostaria. Que há um tempo de morrer, e um tempo de renascer. E depois florescer. E então derramar estas flores no chão. E depois, tudo de novo. Porque nada é eterno. Porque nada está pronto, e é tudo um ciclo. Aprender a ter as raízes bem firmes, para que um vento mais forte qualquer não me derrube, mas os galhos flexíveis, para que possa dançar com ele, quando ele vier. Que a chuva seja tão bem vinda quanto o sol, que o frio do inverno me leve todas as folhas, mas que a primavera me traga de volta, novas e mais belas flores. Que seja sempre assim, enquanto eu estiver nesta terra. Enquanto não me arrancarem de vez as raízes. Que venham os ciclos. As renovações.Que não haja limites, porque o céu, só ele, é o limite.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Quem tem mais a dizer?

 O tempo passa e a gente muda. Um belo dia você  olha no espelho e está tudo lá: os cabelos brancos,  as rugas, uns quilinhos a mais e um olhar diferente. Ainda é você, e ao mesmo tempo não é. É um você mais vivido, talvez mais sábio, quem sabe mais maduro. Com certeza mais experiente. Pode ser que você tenha mudado muito, pode ser que não.
O tempo vai deixando suas pistas, escrevendo suas histórias, marcando nossas linhas, as de expressão e as da vida. Não passa em branco. Vai colorindo e descolorindo, trazendo e levando, em um fluxo contínuo, inevitável. A gente muda. Mesmo sem querer, mesmo sem perceber.
Outro dia, conversando com um amigo, ele me perguntou: se você, sabendo o que sabe hoje, se encontrasse a criança que você foi um dia, o que diria  para ela? O que faria diferente? 
Se eu tivesse a oportunidade de encontrar aquela menina, eu não diria nada a ela. Não que eu não me arrependa de muita coisa. Não que eu não gostasse de poder fazer diferente. Não que erros não tenham sido cometidos. Foram, e ainda são. Mas cada um deles é parte integrante da mulher que me tornei. Meus erros, e também meus acertos. São minha bagagem. Carrego eles comigo, senão com orgulho, ao menos com certa dignidade. E muita aceitação.
Não, eu não falaria nada para aquela menina, não lhe daria nenhum conselho. Eu apenas me ajoelharia diante dela, e, quando estívessemos da mesma altura, eu olharia bem dentro dos seus olhos, ainda tão claros. Tão cheios de uma sabedoria inocente.
Então, pronta para escutar com toda a atenção, eu diria apenas: fala você! Sou toda ouvidos.
Não deixa eu te esquecer.

Dani Altmayer

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Sem vergonha

 Escrever é como fazer um striptease. Só que da alma. Às vezes você vai meio sem jeito, tímida. Tira uma ou duas peças e mostra só um pouquinho. Deixa entrever, apenas. Outras vezes, mais corajosa, você tira tudo e fica nua. Exposta, literalmente.
 Algumas vezes a roupa nem é sua, você toma emprestada. Quem escreve está sempre tomando emprestado, não repare. Uma história aqui, outra ali, o trecho de uma música , o cachorro manco do vizinho. Não importa, tudo vira assunto dentro de uma cabeça que escreve. É um perigo, já vou avisando. Mudam-se os nomes, as datas e os lugares, mas, quando menos se espera, lá está seu vexame, ou seus casos, descritos e narrados com (quase) todas as letras. São os riscos de  se relacionar com este tipo de gente. Frases de filmes, textos que você lê e pensa: queria ter escrito isso! Tudo é assunto. Ou vira assunto.

 Mas,  de verdade mesmo, o que a gente mais revela, quando escreve, é a gente mesmo. Não importa se está se escrevendo um conto, um romance ou ficção científica. Crônicas, ou poemas. Sempre vai um pedação da gente junto, seja na idéia em si, sejam nos sentimentos ou em uma opinião pessoal. Às vezes a gente vai inteira mesmo, aos borbotões. Ou aos pedaços, se despedaçadas estamos. Mas vai junto em cada texto, em cada palavra,sim. E o legal é que de vez em quando estes pedaços da gente encontram outros pedaços, que se identificam, riem ou se emocionam com aquilo que a gente escreveu.
  Escrever é como fazer um striptease. É uma entrega. Você se mostra e se esconde, em diferentes proporções. Mas é sempre uma entrega. Com resultados variáveis. Porque, a não ser que você seja uma profissional na área, nem sempre vai dar certo. E pode até sair tudo muito errado, e você ficar ali, nua e vulnerável, na sua falta de jeito. Mas pode que não, né? Pode até funcionar. Requer coragem este tipo de sedução. Mas, quando dá certo, e os tais pedacinhos da gente se encontram com os dos outros, ah, não tem celulite ou pudores que nos convençam do contrário: vale muito a pena. Vale desnudar a alma, e se mostrar. Sem vergonha.

Dani Altmayer

sábado, 24 de novembro de 2012

A pior solidão

"Solidão a dois de dia
Faz calor, depois faz frio
Você diz "já foi" e eu concordo contigo
Você sai de perto, eu penso em suicídio
Mas no fundo eu nem ligo
Você sempre volta com as mesmas notícias
Eu queria ter uma bomba
Um flit paralisante qualquer
Pra poder me livrar
Do prático efeito
Das tuas frases feitas
Das tuas noites perfeitas
Solidão a dois de dia
Faz calor, depois faz frio
Você diz "já foi" e eu concordo contigo
Você sai de perto eu penso em homicídio
Mas no fundo eu nem ligo
Você sempre volta com as mesmas notícias
Eu queria ter uma bomba
Um flit paralisante qualquer
Pra poder te negar
Bem no último instante
Meu mundo que você não vê
Meu sonho que você não crê"
    Cazuza

Ontem ouvi esta música, no rádio, e grudou na minha cabeça. Fiquei pensando nessa "solidão a dois". Acho que não tem nada mais triste do que solidão acompanhada. Nada pior do que olhar para quem está do seu lado e não reconhecer, não saber que língua fala, a que planeta pertence, em que mundo crê. É muito duro perceber que você se enganou tanto. Que tudo está fora do lugar, e que se você continuar ali, logo já não vai mais saber quem você é, também.Você se agarra em qualquer coisa que te mostre que não, você não é um idiota. Mas tudo a que você se agarra é frágil, e rompe com seu peso. E você cai de bunda no chão, e  é obrigado a reconhecer que sim, você tem sido um idiota. Sim, você está numa solidão absurda, na pior das solidões, que é a de tentar se conectar com uma alma que não encaixa. Ou porque não pode, ou porque não quer. Dá no mesmo.
Talvez até, nenhuma alma encaixe, nem seja este o propósito das almas. Mas há de haver melhor conexão. Algo que se complete um pouco mais. Que tenha mais tesão. Um olhar na mesma direção. Há de haver quem ao menos te queira, né? Que possa te enxergar. Me parece mais fácil suportar a solidão de uma montanha no Himalaia do que a solidão de conviver com quem tem um mundo que você não vê. Que não vê você.
Chega um ponto em que o muro está tão alto, que é preciso tanto grito para se fazer ouvir, tanto esforço para tentar alcançar, que não resta muita escolha. Não cabe mais, escolher.
Já cansado de escalar, já doendo de tanto se dar, chega a hora de dizer chega. E partir não é opção. É necessidade. É isso, ou meio que morrer. Porque já fez calor, e agora faz frio. Faz muito frio.

Dani Altmayer

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Um mar



             Cansada do dia a dia,
             Fim de ano, correria.
             Eu, hoje, só queria
             Uma praia,
             Mesmo com vento.
             Pé na areia.
             Um mar,
             Mesmo gelado.
             Um beijo salgado,
             Mesmo sem sentir.
             Um lugar, um momento
             Para fugir,
             Silenciar.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Como cães e gatos


    Há duas noites, minha gatinha caiu da janela, e fugiu. Não foi a primeira vez, já fez isso antes.Na noite passada, ela voltou. Acordei de madrugada, com o miado forte, vesti uma roupa, enchi o pote de comida e desci. Sentei no chão, na frente da porta do meu prédio e chamei baixinho. Ela estava dentro de uma floreira sem flores, e ficou me espiando. Aparecia e desaparecia, brincando de esconde esconde. Eu, imóvel, esperava. Demorou uns bons dez minutos para ela vir se aproximando, cautelosa, e concluir que poderia voltar a confiar em mim. Chegou por trás, e se esfregou na minha perna, como os gatos costumam fazer quando querem carinho. Com todo o cuidado do mundo, eu a peguei no colo, falando baixinho para não assustá-la e a trouxe de volta para casa. No apartamento, meu cachorrinho a saudou, entre latidos e lambidas, e, em poucos instantes, o caos familiar voltou a funcionar. Detalhe para o horário: 4 horas da manhã. 
       Hoje, lembrando do "resgate", pensei que algumas pessoas são assim, como os gatos. É necessário muita cautela e paciência para que, finalmente, deixem chegar perto, estejam feridos ou não. Gente desconfiada. Que obedece a critérios próprios para classificar quem é e quem não é digno de seu amor. E, mesmo depois disso decidido, ainda é preciso muito cuidado. Qualquer gesto mais brusco, ou palavra dita fora de hora, podem botar tudo a perder. Nenhuma conquista é eterna aqui. 

        Já outras pessoas são mais parecidas com os cachorros, em relação a afeto e fidelidade. Tendem a confiar  logo de cara, demoram para se decepcionar ( se é que isso acontece), e distribuem seu amor de forma generosa e um pouco atrapalhada. Abanam o rabo para o primeiro que lhes fizer um cafuné, pulam na perna de qualquer um, e o seguem com adoração por todos os cantos da casa. São, de certa forma, ingênuos na sua alegria e doação desmedidas. Insistentes e, muitas vezes, chatos na sua carência. Toda atenção pode ser pouco, aqui.  

       Tenho os dois em casa: uma gata e um cachorro. Convivem em harmonia, apesar de todas as diferenças. Ou até por causa delas., mostrando que ser diferente não é empecilho para nenhum relacionamento. Desde que haja respeito mútuo, um pode aprender muito com o outro. O cachorro pode aprender com o gato, muito além de subir nas mesas, a ser mais independente. A respeitar o espaço alheio. A não sair assim, dando seu amor para qualquer um, sem uma mínima análise prévia. A ser um pouco misterioso e se valorizar. Já o gato também pode aprender com o cachorro, muito além de brincar de bolinha, a ser mais generoso no seu afeto. A ser mais alegre, e menos desconfiado. A não se levar tão a sério. Analisar sim, mas também correr riscos, porque de riscos é feita a vida. De riscos são feitas as relações, e também de confiança. Não há garantias, nunca, e aí que está a graça. Que aprendam o significado e o valor da fidelidade. Que possam acreditar que, por mais dura e adversa que seja uma situação, sempre vai ter alguém disposto a um resgate. Numa madrugada  qualquer, de um dia qualquer. Por um motivo bem simples: por amor.

Dani Altmayer

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O dia dela

  Dia 20 de novembro, no Brasil, é o dia da consciência negra. Dia 20 de novembro, para mim, é o dia do aniversário de uma das minhas mães (tive duas), que, por coincidência, era negra. Era, porque não está mais neste planeta, há 12 anos. Parece tanto tempo, mas também parece que foi ontem. Ainda tenho saudades. Saudades de sua gargalhada gostosa, debochada. Da mão áspera, com cheiro de cebola. (ela cozinhava maravilhosamente). De sua conversa fácil,  de seu colo macio, de ser muito mimada. De ouvir uma fofoca, e escutar o CD de fim de ano do rei. De pedir algo, e ouvir um" agora depois". De não ter nenhum pedido negado. De ser amada  incondicionalmente. De levar bronca sim, mas bem de leve, porque ela não sabia ficar braba por muito tempo. Sabia, isso sim, defender com unhas e dentes, cada um de seus quatro filhos. Ai de quem nos fizesse algum mal. Uma vez, em um show no clube da praia (ela adorava um show), chegou a empurrar, dançando, a menina que estava com o cara que eu gostava. E depois se matou de tanto  rir. Saudades dela, de sua alegria, de sua presença firme, da sua nêga maluca.(fazia um bolo como ninguém).
   Vinte de novembro, dia do aniversário dela. Dia da consciência negra. Anda rolando no facebook um vídeo com o ator americano Morgan Freeman, que fala justamente deste assunto. Ao ser perguntado sobre o que ele pensava sobre a data correspondente nos EUA, ele responde: ridículo. Ridículo. A história do negro é a história da América. Pare de me chamar de negro, e eu paro de te chamar de branco. Simples assim. Brilhante.
   Não sei se é porque a minha história é a história dela. Se porque cresci, e convivi, por 31 anos com uma das pessoas mais lindas e puras que já conheci. Uma mulher maravilhosa, que, por acaso, tinha a cor da pele diferente da minha. Puro acaso. Acho que por tudo isso, ou por nada disso, sei lá, mas concordo com o Morgan Freeman. Isto tem que acabar. Teve sentido, talvez, um dia, todas estas datas em homenagem às classes menos favorecidas: negros, mulheres, índios, gays e etc. Historicamente fez sentido. Para alguns talvez ainda faça. Na minha opinião, isso tudo é ainda uma forma de discriminação. De julgar diferente o que é realmente diferente, mas só o é na superfície. O medo do que não é espelho. Narcisismo, ou egocentrismo. Dê o nome que quiser. Por temer o desconhecido, eu me defendo, atacando. Ataco, sem pena. Para provar que sou melhor que você, começo uma guerra. Preconceitos, de todos os tipos, são a causa da maioria dos conflitos que enfrentamos no mundo, atualmente. Idéias pré concebidas, ultrapassadas, e estanques. Em um mundo em constante transformação, em um planeta globalizado.  Como pode ainda ser?  Talvez (?) uma boa hora para se rever conceitos.
     Em tempo, o nome dela era Dolores, a Pia. O meu, Daniela. E você, como se chama?

Não basta parecer

Cuidado! Miragem não mata a sede,
só alimenta esperanças.
Sonhos, oásis da alma.
Colorem a noite, confundem o dia.
É bela a imagem, mas é ilusão.
Nem sempre o possível se torna real.
Tudo pode? Pode ser.
Mas nem tudo é. Ou será.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

A hora boa


Toda hora é hora . De começar uma nova história, de acabar uma velha história. Toda hora é hora. De repetir uma boa história. Não precisa ser segunda feira, não precisa ser pela manhã, nem precisa ser primeiro de janeiro. Não precisa haver eclipse, leitura de mapa astral, conjunção planetária. Não precisa a chuva passar, o dia raiar, o verão começar. Não precisa o filho casar, o cabelo crescer, dois quilos perder. Não precisa esperar as férias, o fim de semana, o dia ideal. Toda hora é hora. A todo instante, a cada minuto, a todo segundo. Se o lá não existe, muito menos o tal depois.
Ah, depois eu vejo, depois eu faço, depois eu começo. Depois eu termino. Agora não. Agora está frio demais, o sol está forte, o vento está contra. Agora estou triste, cansado, estou muito feliz. Li no meu horóscopo que hoje não, amanhã talvez. Perguntei para um amigo que disse que outro amigo falou que uma amiga sabia. E me contou. Que hoje não. Isso não. Agora não. Porque não é a hora. Só que não.
Toda hora é hora, a vida não espera, não te dá opção. Ela é. Não será, nunca será.
É.
É hoje, um dia como qualquer outro. Agora é a hora. O instante perfeito. Para começar, para repetir, para terminar. Uma, duas, tantas, todas. Agora sempre é a hora. Não depois. Depois é um lá que não existe.

Dani Altmayer

domingo, 11 de novembro de 2012

Histeria



         
 Neste fim de semana assisti a um filme inglês chamado Histeria. "A palavra tem origem no termo médico grego hysterikos, que se referia a uma suposta condição médica peculiar a mulheres, causada por perturbações no úterohystera em grego. O termo histeria foi utilizado por Hipócrates, que pensava que a causa da histeria fosse um movimento irregular de sangue do útero para o cérebroNas palavras de Freud: "O nome “histeria” tem origem nos primórdios da medicina e resulta do preconceito, superado somente nos dias atuais, que vincula as neuroses às doenças do aparelho sexual feminino." (Wikipedia).
        O filme é uma comédia, aborda o tratamento utilizado por dois médicos na cura desta suposta doença feminina, ambientado na Londres de 1880, século XIX. É engraçado, poderia ser mais, mas é, acima de tudo, interessante. Retrata bem as condições de vida das mulheres há apenas 150 anos. Mostra que percorremos um longo caminho, de lá para cá.
         Estou longe de ser feminista, e acho que as mulheres podem ser umas chatas, muitas vezes. Mas o filme me fez pensar no quanto conseguimos conquistar. Nós, mulheres nascidas no século XX, e estas meninas de hoje, que já nasceram no século XXI, não temos muita noção desta trajetória. Naquela época, a mulher não podia votar, não podia estudar, cursar universidades. Era basicamente preparada para o casamento e filhos. Tinha a vida limitada a obedecer ao marido, cuidar da casa, bordar e, talvez, tocar um instrumento musical. Não participava de decisões políticas ou sociais. Não tinha poder algum.
         Estas mulheres estavam insatisfeitas, como bem mostra o filme. Lá pelas tantas o médico diz que a maioria das mulheres de Londres sofria de histeria. Doença esta que era bem abrangente, em termos de sintomas, variando desde uma leve melancolia até crises psicóticas. Ele estava enganado. Elas não tinham era escolha, perspectivas. Não tinham vida própria. Sua vida sexual era destinada à reprodução, acreditavam não ter direito ao prazer.
         Muita coisa mudou, ainda bem. Ainda existe um ou outro resquício desta época em nossa sociedade, e na cabeça de alguns homens e mulheres, isso é certo.  As mulheres ainda são consideradas loucas. Algumas ainda acham que precisam de um homem para sentirem-se protegidas e seguras. Alguns homens também pensam assim. Mas cada vez menos.  Ainda somos, sempre seremos, resultado de uma combinação maluca de hormônios. Que nos enlouquecem tanto quanto aos homens. Mas que não nos impedem de sermos, muito além de mães e esposas, médicas, engenheiras, advogadas, diretoras, presidentes, artistas, ou seja lá o que for, o que nos der na telha. Não nos impedem de poder sonhar, amar e relacionar-se livremente. De sentir prazer. De dizer sim, e dizer não. De sermos respeitadas. De estarmos no comando de nossa própria vida.
        Se louco é alguém que você nano consegue explicar, acho que sim, sempre seremos um pouco loucas. Bom, nem Freud conseguiu entender o universo feminino, depois de 30 anos de estudo aplicado. "Afinal, o que querem as mulheres? " Esta continua uma pergunta difícil de ser respondida, senhor Freud.  Queremos tudo, sempre, e mais.
           
          Em tempo, o diagnóstico de histeria só terminou oficialmente  em 1952.

"Em 1857 a lei do divórcio foi aprovada e, como é bem conhecido, definiu legalmente diferentes 
parâmetros morais para homens e mulheres. De acordo com essa lei, um homem poderia obter a dissolução de seu casamento se ele pudesse provar um ato de infidelidade de sua esposa; porém uma mulher não poderia desfazer seu casamento a não ser que pudesse provar que seu marido fosse culpado não apenas de infidelidade, mas também de crueldade". 
(Millicent Garrett Fawcett, em seu livro "O voto das mulheres", publicado em 1911)

"Era um período estranho, insatisfatório, cheio de aspirações ingratas. Eu a muito sonhava em ser útil para o mundo, mas como éramos garotas com pouco dinheiro e nascidas em uma posição social específica, não se pensava como necessário que fizemos alguma coisa diferente de nos entretermos até que o momento e a oportunidade de casamento surgisse. melhor qualquer casamento do que nenhum, uma velha e tola tia costumava dizer.
A mulher das classes superiores tinham que entender cedo que a única porta aberta para uma vida que fosse, ao mesmo tempo, fácil e respeitável era aquela do casamento. Logo, ela dependia de sua boa aparência, nos conformes do gosto masculino daqueles dias, de seu charme e das artes de sua penteadeira".
(Charlotte Despard, memórias não publicadas, registro de 1850)

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Tudo em ti


 Eu não mudei.
 Mudou o teu jeito de me olhar.
 Sente...
 Consegue perceber ?
 Tanto amor, tanta mágoa,
 Toda raiva, toda ternura,
 São teus, tão somente.
 Tudo está ali.
 Nos olhos do observador.
 No sujeito, sempre.
 Nunca no objeto.
 O objeto é inocente.
 Eu sou teu olhar,
 Sou transparente.
 Sou tudo.
 Não sou nada.
 Depende.
 De ti.

Dani Altmayer



 

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Delicado equilíbrio

  Todos os dias, bem cedinho, no meu trajeto para o trabalho, eu os vejo. Mãe e filho em uma bicicleta. Ela gordinha, na direção. Ele, magrinho, na carona. A mochila da escola  vai no cesto da bicicleta. Vão pela calçada, o que é prudente. Porto Alegre é uma cidade hostil aos ciclistas. A avenida Osvaldo Aranha, que até já teve um projeto de ciclovia, é, neste horário bem cedo, uma via expressa de motoristas. Motorizados e com pressa. Muita pressa.
  Todos os dias eu os vejo. Ela gordinha, ele magrinho, uns 8 anos de idade. Presumo que sejam mãe e filho. Conto esta cena, porque me intriga um fato. Só ele está de capacete. Ela não. Ele sempre. Ela nunca. Por quê?Se eles caírem, não vão se machucar, os dois? A cabeça dele é mais importante do que a dela? Presumo que sim, do ponto de vista da mãe, ao menos. Digo isso sem nenhuma crítica, apenas constatando, sou mãe e também ajo assim, muitas vezes.
  Todos os dias eu os vejo, e penso a mesma coisa: por quê? E me vem à memória as instruções de segurança dos aviões: em casos de despressurização, máscaras cairão automaticamente sobre a sua cabeça. Se estiver viajando com criança, coloque primeiro a sua, depois a dela. Mais ou menos assim. Ou seja, você tem que estar a salvo para poder salvar outra pessoa. É isso.
  É isso, e é simples. Mas não sei se por uma questão cultural, ou intrínseca mesmo, pelo tal instinto, nós mulheres tendemos a nos esquecer disso. E não falo só em relação aos filhos, apesar de principalmente. Na maioria de nossos relacionamentos agimos desta forma. Protegendo e cuidando do outro, e nos deixando de lado. Priorizando e valorizando o outro, em detrimento, muitas vezes, de nossos sonhos e desejos. Em detrimento de nossa própria segurança, física e até mesmo emocional. De que serventia podemos ser, se estivermos todas estropiadas, e machucadas? Esquecemos que, para cuidar, proteger, e alimentar o outro, seja ele quem for, precisamos estar antes cuidadas, protegidas e alimentadas. Saudáveis. Em todos os sentidos. Só podemos dar aquilo que temos. Mas e se dermos mais do que temos? Bom, apesar da matemática não ser o meu forte,  até eu sei esta resposta: o saldo vai ser negativo.
  Olho para aqueles dois na calçada, de bicicleta, todos os dias. Todos os dias desejo que construam uma ciclovia. Várias. Que transformem esta cidade em uma cidade pedalável.  E todos os dias peço, em silêncio, para aquela mãe: coloca um capacete, também, vai. Te cuida aí. Pode ser que você não saiba, mas a sua cabeça é importante. Tão importante quanto a dele. Autoproteção não é egoísmo. É equilíbrio. Indispensável para andar na bicicleta. E para andar na vida,  fundamental.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Mulheres e bruxas


Hoje é  comemorado o dia das bruxas, tradição importada dos Estados Unidos, mas que não tem origem naquele país. A origem desta festa é celta, e o termo halloween vem do inglês hallow evening, ou noite sagrada. O povo celta acreditava que no dia 31 de outubro, véspera de Todos os Santos, noite que marcava o fim do verão, os espíritos saíam do cemitério para tomar posse dos corpos dos vivos. Por ser uma festa pagã, lá pela idade média, a igreja católica a denominou dia das bruxas.
Bruxas, para esta entidade, eram todos os que se opunham às crenças cristãs ou judaicas, e eram, em sua imensa maioria, mulheres. Estas bruxas representavam perigo para a sociedade patriarcal criada pela igreja, e foram queimadas em fogueiras por aproximadamente quatro séculos. Bastava que se fizesse uma denúncia, não precisava haver provas, nenhum indício de bruxaria. Bastava a denúncia. E bastava ser mulher.
Com o passar do tempo, as bruxas foram descritas como criaturas feias e más, mas lá no início eram apenas mulheres que conheciam ervas medicinais, que faziam partos, que cultuavam deusas e deuses estranhos aos dogmas vigentes.
Eu não sei se algumas tinham ou não poderes mágicos, mas com certeza, o que assustava e assusta até hoje é o mistério feminino. A mulher é capaz de abrigar dentro de si por nove meses, depois trazer à vida um outro ser. E depois de dar à luz, a mulher alimenta e protege esse ser, incondicionalmente. As mulheres tem forças ocultas sim, principalmente no que diz respeito à capacidade de gerar, amar, e cuidar. Podem não ser bruxas, mas fazem mágica todo dia. São dotadas de poderes inexplicáveis, de humores variáveis e hormônios traiçoeiros. Mulheres seduzem. Criam lares. Adivinham pensamentos e desejos.
Voam até a lua, se preciso for. Defendem os seus com garras, dentes, e poções. Usam a intuição.
São criativas, loucas, e lindas.
Toda mulher é um pouco bruxa, sim.
E como qualquer mistério, toda mulher é um enigma. Impossível de ser explicada.
Como todo mistério, ela pode ser fascinante. Passível de ser aceita, ainda que não bem compreendida. Mais do que isso, toda mulher é digna de ser respeitada. De ser admirada, em toda sua complexidade. Sem necessidade de fogueiras. Sem violência. Sem medo.

Dani Altmayer

Mãe

Chega em casa
Chora baixinho.
Chora escondida,
Meio encolhida,
Um choro mansinho.
Uma mágoa sofrida,
Uma causa perdida,
Uma vida passando,
O peso dos dias.
Sente saudade
De um certo colinho,
Daquele carinho,
Daquele cantinho
Seguro que tinha.
Não existe idade
Para esta saudade
Para a falta que faz

Não existe limite,
De idade,
Razão,
Nem toda maturidade
Do mundo
É capaz.
De acabar
Com a saudade.
Não tem explicação.
Nem  tempo,
Nem nada.
Não passa,
Atenua.
Não cura, isso não.
Chora, sozinha,
A dor que é sua.
A saudade.
Do colo,
Aquele.
Que nunca mais.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Obrigada, de coração

Acho que pedir perdão e perdoar são duas das atitudes mais nobres e difíceis que há. Mas acho que, ainda mais difícil do que o perdão, é saber exercer a gratidão. Tempos atrás, precisava escrever um texto cujo tema era gratidão, e simplesmente não saiu. Nada. Nem uma linha sequer. Arquivei o assunto em um canto qualquer do meu cérebro, perdi o prazo, mas não esqueci. Nem poderia esquecer. Parecia tão simples, e não foi. Por quê? Afinal, você diz, ou deveria dizer, se foi bem educado, uma dezena de "obrigados" por dia. No trabalho, no táxi, no supermercado. Muitas vezes ao dia, você diz estas palavrinhas mágicas: muito obrigado. Só que diz de forma automática, superficial, educada.
Em um mundo de necessidades ilimitadas e desejos irremediavelmente insatisfeitos, qual o espaço para a gratidão? Reclama-se muito. Agradece-se pouco. Apesar de todos os "obrigados" que dizemos, quantas vezes paramos para olhar de verdade e agradecer? Se é um serviço que está sendo prestado, pensamos que não é mais do que a obrigação do prestador. Se é um favor que nos está sendo feito,  muitas vezes pensamos da mesma forma. Não passa de obrigação, não custa nada, etc. Para agradecer, de verdade, há que se ter humildade. Reconhecimento. Não basta ter educação. Toda educação do mundo não te dá a capacidade de valorizar. Não mesmo. A gente sabe pedir, mas não sabe devolver.
E você pode até achar que sua vida é uma merda, e que não tem motivos para agradecer. Que a sua estrela não brilha tanto assim. Mas isso é porque você não vê. E nem quer. Não vê que sim, todo dia a vida te dá motivos para ser grato, nem que seja pelo sol ter nascido, e você ter saúde, e ter ao menos uma pessoa no mundo que te ama. Isso não te basta? Então lembra daquele amigo que também lembrou de você, e te deu uma carona naquele dia de chuva, quando seu carro estava estragado. Lembra daquela massa deliciosa que você comeu no almoço. Lembra do telefonema inesperado. Lembra daquele sorriso, daquele abraço, daquele ombro sempre disponível. Lembra da água quentinha do seu chuveiro. Lembra daquele cheiro, hum, aquele perfume... Do passeio de bicicleta, do barulho do mar, das ondas quebrando na areia da praia. Do livro bom, do sexo bom, do sonho bom. É pouco?
Então lembra de todos que estão na sua vida. Seus amores e desamores. Você pode ser grato a todos eles. Aos amores, pelos motivos óbvios. Por estarem sempre aqui por você, com você. Por te darem conforto. Aos desamores, por te mostrarem o outro lado, por te fazerem chorar, e crescer. Por te tirarem da zona de conforto. Todos, sem exceção, fazem parte de quem você se torna, a cada instante.
Tempos atrás, perdi o prazo, mas não a oportunidade. De avaliar os porquês do meu bloqueio criativo. As razões da minha ingratidão. Precisei,  olha que coisa, procurar motivos pelos quais ser grata. E agradeço por isso. Então hoje, quero poder lembrar, todo dia, das tantas coisas que tenho para agradecer. E das muitas pessoas às quais sou grata. Quero lembrar que, por mais disponível que uma pessoa esteja, ela não está à minha disposição. Não tem que satisfazer minhas vontades. Mesmo que o faça. E, se o fizer, quero saber ser grata, de alma e coração. Certamente ela faz muito, muito mais do que sua obrigação. Até porque, vamos combinar, ninguém é obrigado. Não existe obrigação. Só  isso, e por esse tanto, meu muito obrigada.

Dani Altmayer

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Eu sei

Não preciso te mostrar que sei.
Cansei.
Saber que sei me basta.
Sem mais, me afasto
 Finalmente exausta.
Brisa suave
Na beira do mar.
Levemente salgada,
Completamente nua,
Exposta, num sopro.
Muda, cega e surda.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Por que uma prateleira?

  "Você está onde se põe." Tinha ouvido ou lido esta frase, não lembrava exatamente onde, ou de quem. Mas lembrou dela naquele momento, por mais esquisito que pudesse parecer. Por mais triste, envergonhada e humilhada que estivesse, ela sabia. Só estava ali porque tinha se posto ali. A responsabilidade era cem por cento dela. Estranhamente, este pensamento a libertou. Foi como se , subitamente, tivesse se transportado a outro nível, bem longe do chão. Como se tivesse ido parar na prateleira mais alta daquele armário caindo aos pedaços, e de lá pudesse observar toda a cena. Estava, ao mesmo tempo, lá em cima e lá embaixo, encolhida naquela cama desarrumada, e nua. Lá embaixo algumas lágrimas escorriam pela face. Lá em cima, um sorriso se insinuava em seu rosto. Lá embaixo estava vulnerável e exposta. Lá em cima, cruzara as pernas na posição de lótus e estava calma como há muito não se sentia.
   Ela lá de cima, olhando ela lá de baixo, e nem estava louca. Nunca estivera tão lúcida. Quase fria. Distante, conseguia ver claramente. Sabia que não podia culpar ninguém. Que estava ali porque quis, muito, estar ali. Naquele dia e naquela hora. Estava onde escolhera estar. Conhecia os riscos. Sabia que toda a mágoa e toda a dor que poderiam resultar dela estar ali, não tinham outro endereço a não ser ela mesma. Parou de querer achar culpados. Encarapitada em sua prateleira, de pernas cruzadas, não sentia nada. Nem a humilhação, a vergonha ou a tristeza. Nem ansiedade, nem cansaço, nem desejos. Nada. Talvez um pouco de compaixão, isso sim, por ela, por tudo. Compaixão, que é muito diferente de pena. Muito. Embora as pessoas confundam, algumas vezes. Mas é diferente. E sentia-se livre, finalmente, daquela angústia, daquela espera, daquelas expectativas que sua ilusão tinha criado. Se colocou ali sabendo, até esperando, que fosse sofrer. Mais um pouco, de novo. Só o que não sabia era que conseguiria se dissociar de tudo aquilo. Assim, como num passe de mágica, um pó de pirlimpimpim, ela subiu, e uma luz se acendeu.
   Isso era novidade para ela, mas pensando bem até que fazia sentido. E era merecido. Gastara tanto tempo e pusera tanto coração naquilo tudo, fora feliz e infeliz, confiante e desconfiada, tivera tanto amor e tanto medo. Criara castelos e pisara neles, como fossem de areia. Vivera tantas coisas tão opostas, ali, naquele lugar onde se colocara, de novo e de novo. Paradoxos. Insistindo, acreditando e desacreditando, tudo ao mesmo tempo e em momentos diferentes também. Ali, naquele lugar. Que fora um campo aberto e florido, e tinha se transformado em uma trincheira, de súbito, onde mal podia levantar a cabeça. Ali onde um dia correra livremente, e agora tinha que tomar cuidado com cada respiração. Ela criara as flores, criara as grades. Ninguém a havia prendido, obrigado ou iludido. Tudo nascera nela, e nela ia morrer, como tinha que ser.  Estivera ali por tempo suficiente para fazer o ciclo completo. Perdera-se mil vezes, e reencontrara-se, outras mil. Estivera inteira ali. Visitara cada cantinho escuro. Saboreara cada sorriso iluminado. Acabou. Ia levantar daquela cama, enxugar as lágrimas, se vestir e abrir a porta. Ela sabia que só se acha aquilo que se procura. E só se encontra aquilo que se mostra, que se deixa encontrar. Procurou muito. Iludiu–se por achar que encontrara .Correu tanto que cansou de brincar de pega-pega. Quando cansou, dormiu e voou. Quando voou, despertou. Poderia voar bem mais alto, ela sabia. Ir para bem longe. Mas sabia também que precisava estar ali por mais um tempo. Observar do alto daquela prateleira capenga. Sentada em posição de lótus, sorrindo para si mesma. Queria olhar bem para onde  tinha se colocado. Para enfim, mesmo sem entender nada, ainda assim, compreender tudo.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Este ser, o médico

Ser médico, muito mais do que ter uma profissão, significa adotar um modo de vida. Você não consegue ser médico por 6 ou 8 horas por dia, depois pendurar o jaleco, apagar a luz e desligar. Não, você é médico 24 horas por dia, até mesmo enquanto dorme. Quando você se torna médico, o médico torna-se você. Os dois se tornam um, inseparáveis, indivisíveis. É assim que acontece.Você pensa, raciocina e age como médico o tempo todo, mesmo que não se dê conta disso. Dá conselhos a amigos, tenta sempre achar um jeito, pensa o pior sempre que alguém que você ama adoece. Analisa em segundos todas as hipóteses diagnósticas e escolhe logo a bruxaria. Sofre, em dobro, por saber demais. Quem de nós já não desejou, ao ver um ser amado gravemente doente, ter a ignorância protetora de quem nunca estudou medicina, e poder, assim, manter a esperança? E quem já não pensou em meningite à primeira febre de 39 do filho pequeno? Assim funciona a cabeça de um médico. Porque não dá para separar ou esquecer. Nem você esquece, nem te deixam esquecer, nunca.
Está entranhada, a medicina, em todos nós que fizemos esta escolha. Para o bem e para o mal, na saúde e na doença, na tristeza e na alegria.
Hoje, 18 de outubro, é dia do médico. Datas são boas para lembrar. Para repensar. Reavaliar.
Penso que toda pessoa que escolhe ser médica, tem em primeiro lugar, um profundo interesse no ser humano. Respeito pela vida acima de tudo. E uma vocação. Para cuidar do outro, para prestar serviço, para ajudar.
Então, meu desejo, neste dia, é lembrar disso. Que este respeito e esta vocação nunca saiam de cena, e continuem sempre neste primeiro lugar. Que consigamos estabelecer vínculos, acolher e ajudar quem se aproxima de nós, em momento de fragilidade. Que não deixemos a soberba tomar conta nunca, que tenhamos a humildade de nos sabermos humanos, e falíveis. Que saibamos pedir ajuda, e trabalhar em equipe. Que valorizemos todos os profissionais que trabalham conosco, e que são tão importantes e necessários para a boa prática da medicina. Todos. Que tenhamos olhos para ver, ouvidos para ouvir, e principalmente, delicadeza para perceber as sutilezas. Que não nos consideremos superiores a ninguém, mas que ainda assim, saibamos resgatar nosso valor todos os dias. Que deixemos de ser explorados e que não sejamos exploradores. Que a ética esteja sempre conosco. A dignidade. E o juramento de Hipócrates .
Que honremos este ser que habita em nós, e no qual habitamos. Este casamento, que é para o resto da vida.
Feliz dia do médico!

Dani Altmayer

domingo, 14 de outubro de 2012

Eu quem?


"O poder de ser você mesmo sem se importar com o que os outros vão pensar". Uau! Maravilhoso.
Ou não? Sim, acho que sim, desde que você saiba quem você é. Eta coisa complicada, " saber-se."
Pega qualquer livro de auto ajuda, esoterismo ou religião, e vai estar escrito lá: "conhece-te a ti mesmo". E vai estar escrito que não adianta procurar fora o que está dentro, e blá blá blá. Ótimo.
Mas quem tem tempo de olhar para dentro, quem tem vontade, paciência e persistência para limpar toda a área, e cavar bem fundo? Poucos, né, porque dá um trabalhão. E está tudo tão misturado, tão confuso. Toda essa sociedade, esses valores ou falta deles, todos esses padrões, há muito determinados. Tão arraigados que já nem percebemos que não são nossos, de verdade. Dificulta fazer a faxina necessária para conseguir separar toda esta tralha, o lixo que se acumula de forma assustadora, que é despejado diariamente em caçambas gigantescas, em grandes volumes. Cansa mesmo.
Por isso talvez a gente escolha, muitas vezes, só botar para o lado uma ou outra coisa mais nojenta e intolerável, e o resto, bom, o resto, a gente vai levando, absorvendo. Absolvendo. E incorporando, sem consciência. Sem realmente querer ou precisar. Só porque está ali, e é o que se espera de nós. Pronto. Todo aquele lixo. Mais fácil, né? Este processo de auto conhecimento é um porre mesmo. Mexe com tantas verdades, e defesas, e crenças, melhor deixar assim. Dá medo, e é cansativo. Abala estruturas. Então finjo que sou eu mesma, e que não me importo um nada com a opinião dos outros, e tenho inclusive orgulho disso. Mas, falando sério: quem sou eu? Eu sou a merda da opinião dos outros,o tempo todo.
Ah, também tem outra coisa: quem você é quando ninguém está vendo?  Quando você está sozinho, e desliga a TV, o rádio, a música e todo os olhares externos, o que te resta? Quem fica? Dia desses, no centro, de dentro da lotação, assisti a uma cena que me fez pensar nisso: Uma mulher vinha caminhando, pela praça, tomando algo em um copo de plástico. De repente ela parou, olhou para todos os lados, e quando se certificou de que não vinha ninguém, simplesmente largou o copo em um degrau e seguiu andando. Logo adiante tinha uma lixeira. Ela não me viu, eu estava longe dos seus olhos. Na sua percepção, ninguém viu. Por isso ela fez. Talvez, e isso é uma suposição minha, se viesse alguém em sua direção, ela tivesse andado mais um pouco com o copo e largado no lixo. Quem sabe? Acho que isso explica o porquê de tanta regra e tanta lei e tanta necessidade de policiamento e religião. Porque a gente não sabe quem é, sem que outro precise nos dizer. Quem eu sou, quem me governa de verdade, em que acredito? Transgrido, me revolto, e nem sei porquê. Porque quando olho para dentro,está tudo tão misturado,tão embaralhado e sujo, que dá uma preguiça danada de mexer. Colocar em ordem, organizar. Ver o que presta e o que não. Porque depois que começa, não dá para parar. É que nem arrumação de armário. Ou joga tudo de volta, de qualquer jeito, e aumenta a desordem, ou vai até o fim, acreditando que vale a pena. Para só então poder encher o peito e falar do poder de ser quem se é, sem dar a mínima para a opinião alheia.
Porque sei que então vou estar vestindo a roupa que escolhi, seguindo o caminho que preferi, cercada dos amigos e amores que reconheci. Munida das verdades que encontrei no fundo do meu armário. Aquele mesmo, todo bagunçado.
Dani Altmayer

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Assim na terra como no céu

  Ela é assim. De longe até parece normal. Nada muito esquisito ou diferente, nada que chame atenção. Vive uma vida comum e faz coisas comuns, todos os dias. Come, trabalha, dorme, se diverte, briga, ama, detesta, coisas que todo mundo faz. E ela faz também, bem certinho. Nem dá para perceber.

  Nem dá para perceber que ela acorda todo dia com a cabeça cheia de sonhos. Que todo dia, quando abre os olhos, ela reza um pouco, agradece um muito e tem a nítida sensação de que algo vai acontecer. Algo diferente. algo bom. Levanta da cama sempre animada, ainda que morrendo de sono. Toma um banho demorado, e sai, perfumada de esperança, todas as manhãs. Quase todas, porque algumas vezes, tem tanta coisa chata acontecendo, ou ela está tão triste que esquece de acreditar. De vez em quando seu coração fica partido. Nestes dias ela dói, e acorda chorando. Acontece, mas é exceção. A regra é o dia nascer e ela nascer também, junto com o dia, todos os dias. Junto com o infinito de coisas que ela espera, e acha, e sonha que podem acontecer. Coisas boas.

   Ela lê todos os horóscopos, e tarôs e céus da semana, e lê sobre ciclos lunares e energias e marés. Acredita em tudo. Cinco minutos depois já esqueceu.Tudo. E lá foi ela ganhar dinheiro, pagar conta, fazer feira, abdominais e depilação. Passa os dias assim, entre pensamentos que voam, coração cheio de sol, cabeça nas nuvens e pés no chão. Cumprindo tarefas e vivendo do cotidiano. Não lê o jornal, não vê TV, não gosta de política nem de novela. Não gosta de nada que atrapalhe sonhos. Gosta do que faz bem para a alma. De longe, nem se percebe. Que ela mora em dois mundos.

  E faz tudo quase igual, todo dia. Mas sonha diferente, todos os dias. Assim ela vai levando a vida, um pouco lá, um pouco cá. No mundo da lua e no mundo real (?). Às vezes seus dois mundos se encontram. E algo diferente acontece. Algo especial. Algo bom. Quase sempre não. Geralmente ela vai dormir, cansada de fazer, de tantos afazeres, ao fim de um dia comum. Ela fica frustrada, uma ou outra noite. Mas passa, logo, e ela sempre pensa, amanhã é outro dia. Otimista, ela não desiste. E renova, de madrugada, seus sonhos e sua mágica. Sua fé. Para começar tudo de novo, e de novo, no dia seguinte e no outro também.

  Assim ela aguenta o tranco, e vai levando.Vive, um pouco lá, um pouco cá, se equilibrando. Esperando colher estrelas e frutas doces. Entre o céu e a terra, desejando que se encontrem de vez em quando. Seus dois mundos, tão diferentes.
E de longe nem se percebe. Ela parece tão comum, banal. Mas de perto, ah, de perto você logo vê.
Tem algo estranho. Repara, ela é um pouco doida. Acredita em sonhos, em anjos. Acredita em Deus, ou no Universo, como costuma dizer. Acredita até nas pessoas. Em almas e corações e energias. Confia, tem fé. Acha que a vida é boa, em geral. E é.
Um pouco ingênua, ela é.
Não, de longe não dá para dizer.
De perto ela pode parecer louca, de pedra. De perto, quem não é?
Parece boba. Mas isso ela não é.

Dani Altmayer

sábado, 6 de outubro de 2012

O amor não é um elástico

  Vi esta imagem em uma das tantas páginas que proliferam no facebook nos últimos tempos, e me chamou a atenção pela frase que acompanha a figura: O amor é como duas pessoas segurando um elástico. O primeiro que soltar machuca o outro.
  Desconheço a autoria, mas discordo. Não acho que o amor possa ser comparado a um jogo de força, em primeiro lugar. Ou a qualquer tipo de jogo, falando nisso, seja ele de força, inteligência ou esperteza. Jogo é jogo. É competição. Não acho que o amor  seja uma disputa, um cabo de guerra, não pode ser. Tipo, vamos ver quem é mais forte, quem tem maior resistência,  quem aguenta mais tempo, como naquelas provas estúpidas, do estúpido Big Brother. O primeiro que desistir perde.Algo a ser esticado até o limite da tensão. Será?
  Eu acho que não. Para jogar e competir temos os esportes, os playstations, as lutas, algumas batalhas. Guerras reais e imaginárias. Temos a vida no dia a dia, com todos os riscos. O amor não é jogo. O amor é o descanso de tudo isso (ou deveria ser). É onde podemos recarregar nossas baterias, é a paz da nossa guerra. Não é um cabo de força.
 Se o amor for  uma corda, que seja o cabo de um barco, e que se possa segurar junto. Fazer força junto. Para soltar a âncora. Para içar as velas e navegar. Força conjunta, e não contrária. Que seja a corda que precisa ser cortada para levantar o balão e deixar voar, enquanto for possível, e desejado. Nunca amarras que prendem e enforcam, mas nós frouxos, que possam ser desatados quando preciso, e com facilidade. Que os nós sejam  firmes, mas delicados. Porque o amor pode acabar sim, muitas vezes antes para um do que para o outro. E, como já dói muito o fim de um amor,  não custa nada desfazer com gentileza aquilo que um  dia foi feito com tanto cuidado. Para não machucar demais, nem as mãos de quem o segura ainda, nem as de quem o solta primeiro.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Uma paz qualquer...

 Já não dói tanto. Nem dá mais para chamar de dor. É mais uma coisa de fundo, meio indefinida, uma saudade ardida. Levemente desconfortável. Mas não é mais dor. É uma tristeza suave que vem da aceitação, uma espécie de  reconhecimento. Rendição, e paz. A paz de quem perdeu a guerra, meio machucada, dolorida, mas ainda assim paz. Paz da bandeira branca hasteada, de não precisar lutar mais nenhuma batalha inglória, de não tentar entender porquês.Paz porque finalmente cessaram as bombas e os canhões. Paz do vazio de não esperar mais nada, de se saber vencida. Derrotada. A paz de um país devastado, que começa aos poucos sua reconstrução. Pedra por pedra. Um dia de cada vez. A paz de um lugar em escombros onde de repente se acha,  no meio dos entulhos, a vida florescendo em botões de rosa, e se vê, novamente, um  belo motivo para sorrir. Esta sou eu, em recuperação.
 Meu primeiro pensamento ainda é teu. O último também. Confesso que mais alguns tantos, no meio do dia e nas horas mais loucas. Mas já posso chamar de pensamentos soltos, esparsos, e ao acaso. Nada daquele padrão obssessivo de um tempo atrás, tipo 24 horas por dia. Nada disso.
Dizem que quando nos apaixonamos voltamos a ter 17 anos. Mas o bom de não ter mais 17 anos, na vida real, é que a recuperação do amor não correspondido ( ou o que seja que faça uma história legal acabar), é bem mais rápida e bem menos dramática. Ficar sem comer ou dormir, por exemplo, até pode rolar. Mas ninguém tem tempo para morrer de amor, né, com todas estas contas para pagar, e trabalho a fazer, e filho para cuidar. Então tem uma hora em que a gente diz chega,  sacode a poeira e   levanta a cabeça. Acorda menina, levanta já , que o mundo lá fora te chama. Desapega deste sofrimento, agora! Olha a vida para viver!
 A tal "maturidade"me põe em perspectiva.E aí eu ponho você para o lado. E vou tocando o barco, como se diz por aí. Os dias vão passando, sem você. E eu percebo que sim, dá para seguir. Que não, o mundo não acabou. Ninguém jogou uma bomba assim com tamanho poder de destruição. E percebo que os pedaços que sobraram são mais que pedaços, nem são pedaços. sou eu, inteira, de novo. Mais triste, um pouco desconfiada, com um muito de saudade ainda. Sabendo que a saudade faz parte. Porque foi bom, e foi bonito. E foi amor. Mesmo que talvez não seja mais. Ontem, ouvi em um filme o seguinte diálogo, e lembrei da gente:
-Às vezes dói muito lembrar.
-Eu acho que doeria mais esquecer.
 Então eu fico com a lembrança do que não posso e nem quero esquecer. Guardada em uma caixa bonita, a caixa das lembranças que valem a pena guardar. Fica em cima do armário, e passo longe dela, por precaução, mas às vezes ela cai na minha cabeça. Sou meio desastrada. Nessas horas dói de novo. Coloco a caixa de volta.Você está ali, adicionado recentemente, e isso é quase uma honra. Olha que ela não é para qualquer um, não. Pouca coisa fica de verdade. Acho que você nem sabe como foi importante. Eu sei, e isso basta. Mas, guardado na caixinha, você não me atinge tanto, e eu posso seguir em frente. Eu e meu projeto de reconstrução.  A parte vencida por seu adeus. Finalmente rendida. Em paz, com uma paz qualquer.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Conversa com a Duda

 Há cerca de um mês, Porto Alegre estava tomada de ipês roxos em flor. Era uma verdadeira festa para os sentidos. Onde você menos esperava, em uma esquina qualquer, no meio de uma avenida barulhenta, nas praças, no parque da Redenção ( foto). Por todo o lado, uma explosão de cor. Lindo, simplesmente. Não havia quem não percebesse. Impossível não se deslumbrar.
 Conversando com uma amiga justamente sobre a beleza destas árvores e da cidade nesta época,  ouvi o seguinte comentário, da filha dela, de 8 anos:"lindo mesmo, pena que depois a gente esquece, né? E nem vê mais". Eu respondi: a gente não esquece. Acostuma. E quando a gente se acostuma, a gente deixa de ver. Aliás, isso vale para praticamente tudo em nossas vidas, desde objetos até pessoas e relacionamentos. Com o tempo, se não estamos atentos, a gente para de enxergar. Não percebe mais o que está à nossa volta, por costume e hábito. Passa pela rua sem perceber a flor amarela, o cachorro manco, o buraco no chão. Cai na calçada e ainda se pergunta como. Entra em casa sem ver o sofá rasgado, o gato malhado, o amor esfomeado. Prepara um prato qualquer e depois não entende porque o amor foi embora. Pela janela, junto com o gato. Deita no sofá e é atingido pela mola, que escapa do buraco, que não percebeu.
 A força do hábito nos rouba a visão. Rouba a capacidade de nos encantarmos com uma rosa, uma árvore, um sorriso. Rouba o encanto,e o prazer. De olhar para tudo com olhos de início. Leva nosso olhar curioso e apaixonado. Que pena! Quem dera pudéssemos, todo dia, passar pela vida absorvendo cada detalhe e cada cor e cada cheiro. Vendo e absorvendo todas as flores. Sem nos acostumarmos, nunca. Não, Duda, a gente não esquece. Mas acostuma,  e deixa de ver. Ou talvez sim, a gente esqueça. Esqueça de aproveitar enquanto temos. A gente não lembra que tudo passa. E sabe? Os ipês roxos não estão  floridos agora. Não mais. Passaram.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Tormento

                       
                                         Tormento
                     
                   
                       Foi ele o  culpado.
   
                        O  vento.

                        Desarrumou meu cabelo

                        Bagunçou meu coração

                        Cantou para eu não dormir.

domingo, 23 de setembro de 2012

Liberdade

"A verdade é sempre libertadora, quer você goste, ou não". A frase,  mais ou menos assim,  foi retirada do excelente filme  A chave de Sarah a que assisti hoje à tarde. Um belo filme francês, que conta mais uma vez a triste história de julho de 1942, quando a polícia francesa retirou milhares de famílias judias de seus lares, levando-os para o velódromo de Paris, e , enfim, o resto todos sabemos, ou deveríamos saber. O filme, que se passa em duas épocas, atual e pregressa, mostra a história desta menininha, Sarah, e vale a pena assistir.
Mas não era sobre o filme que eu queria falar. Era sobre a frase. Sobre a verdade. Sobre como tememos e evitamos a verdade, tantas e tantas vezes. Em como preferimos manter o véu tênue de uma ilusão a encarar a realidade. Em como inventamos histórias, e desculpas, e mentiras sinceras para não termos que olhar na cara dela. Desta verdade que não queremos admitir. Porque ela pode doer, claro, e quem gosta de sentir dor? Bom, alguns gostam, mas isso já é outro assunto. A maioria de nós não gosta. Fugimos da dor com analgésicos e antidepressivos e meias verdades, todo tempo. Encarar a realidade requer uma boa dose de coragem. Para ver o que você não quer ver, ouvir o que você não quer ouvir, admitir o que você, no fundo, já está cansado de saber, mas até finge que não. Se faz de bobo por uma ou duas migalhas, esquecendo que não é nenhum passarinho para viver com tão pouco. Aguenta aquele sapato apertado porque é bonito, e custou caro, e você meio que já se acostumou com o desconforto. Esquece do alívio que você vai sentir, ao tirar. Mesmo que fique uma bolha. E que você chore um pouco. Que sinta dor, por alguns dias. Que sinta falta por algum tempo. Nada disso é desculpa. Porque vai passar, e nós sabemos disso. Estupidez é não querer a verdade e se contentar com doses homeopáticas de sofrimentos pequenos. É calçar o sapato apertado e esperar que ele ceda com o tempo. Mesmo sendo dois números menor que o seu pé.
Por pior que seja a verdade, ela é a verdade.Sempre. Libertadora na sua crueza. Na sua nudez. A verdade, nua e crua. Teve um tempo em que fugi dela. Me escondia em livros e sonhos e filmes, inventava minhas ilusões. Com a mania de ter esperança. Com meus olhos que sempre querem ver o melhor em tudo. Minhas lentes cor de rosa. Que coloriam até o que nem cor tinha. Eu tinha medo. Hoje não. Por mais que eu não aceite, concorde ou goste, eu quero, sempre, e mais do que tudo, a verdade. E a imensa liberdade que vem com ela. Mesmo que doa, e muito, saber é sempre melhor do que não saber.  Funciona  como um tapa na cara no meio de uma crise histérica: te acorda.Tem horas que só assim. E saber liberta, quer você goste, ou não. É transformador.