quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Eu e Ela


Todo mundo tem outro por dentro.
Pode não saber que tem. Pode negar. Pode esconder. Mas todo mundo tem.
Eu mesma. Eu tenho outra por dentro, admito. Uma que não conheço lá muito bem.
É quase uma estranha para mim. Ela não aparece muito, coitada.
Não dou muita chance.
Anda meio soterrada, vive toda amarrada, amordaçada.
Às vezes ela escapa, ela é danada, esta outra. Selvagem.
Quando ela escapa, grita que está perdida. Já vou logo mandando calar a boca, ficar quietinha. Ameaço com a jaula, a mordaça, se não obedecer. Onde já se viu, para que gritar deste jeito?
Reclama sem motivo, essa tal. Ainda chora.
Chora por quê, que razão ela teria, não está passando necessidade, nem nada.
Tem tudo, esta guria, do bom e do melhor. Mas vou dizer, gosta de aparecer.
Diz que sofre por amor. Amor para quê?
Aí, faz um drama, uma novela mexicana. Devia ser atriz.
A outra quer fazer tatuagem. Que bobagem. Deixar o cabelo crescer. Morar na beira da praia.
Largar o emprego, para poder escrever.
"Algum trocado para dar garantia?" Utopia.
Não tem respeito, esta outra, não se importa. É toda torta.
Caga pra regra, pra etiqueta, pra sentimento alheio.
Aprendeu a dizer não. Só faz o que quer, desde então.
Está errado, não é deste jeito, que feio.
Teima em ser feliz. A idiota. Morre de rir.
No fundo é uma criança ainda. Deve ser. Uma menina que não vai crescer.
Puro coração, toda apaixonada. Um abobada.
Corajosa, se arrisca, vai fundo. Entrega tudo, não faz reserva.
Acredita que sempre vai ter.
Não tem medo de nada. Abusa.
E ainda me acusa, que coisa. Está perdido, esse mundo.
Diz que tenho medos demais. Eu tenho, sim.
E tenho razão, aliás.
Ela é tão diferente, quase uma estranha.
Mas mora aqui dentro, escondida no escuro.
Ela é a culpada. De eu ter mais um medo.
E fica claro, assim.
Tenho medo é de mim.

Dani Altmayer

domingo, 11 de agosto de 2013

Super Pai


 Outro dia, conversando com JP, sobre basquete, e seus grandes nomes, ele me perguntou: "quando os pais deixam de ser ídolos? " E chegou à conclusão de que isso acontece por volta dos cinco anos de idade. Não sei se existe uma idade exata, acho que varia bastante. Mas o certo é que um dia acontece. Aquele objeto de adoração, que você julgava infalível, desce para a categoria de simples mortal. O pai deixa de ser ídolo quando se reconhece nele o ser humano que ele é. Alguém que erra sim, tentando acertar. Todos os erros são tentativas de acerto. Isso é algo que podemos perdoar. Quando descobrimos que eles não tem todas as respostas. Quando percebemos suas dúvidas, suas lágrimas, suas escolhas imperfeitas. E, na minha opinião, aí é que começa o amor, de verdade. O amor nasce do convívio, e cresce na intimidade. Quando somos capazes de enxergar suas fraquezas, descobrimos a nossa própria força. O pai deixa de ser idealizado para se tornar real. O que antes era inatingível, vem para o alcance de nosso abraço. Mão na mão. Olho no olho. Deixa de ser o herói, mas jamais perde seu valor. Pelo contrário. Porque, finalmente, podemos perceber o esforço imenso deste que, mesmo sem ter super poderes, ainda assim move montanhas e pedras por nós. Constrói pilares e exemplos. E nos confere sua proteção eterna, e seu amor incondicional.
No final da conversa, JP me disse: na verdade, mãe, um pai sempre vai ser um pouco nosso ídolo, não é?
Sim. Só que um ídolo a gente cola na parede do quarto. Um pai, a gente cola na parede do coração. Para não desgrudar nunca mais.

Dani Altmayer


sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Dias que Choram



Tem dias que não amanhecem, só fingem.
Hoje foi um dia assim. Um dia-noite.
Daqueles que não dá vontade de botar o pé na rua.
Frio, úmido, descolorido.
Em dias assim, a gente não sabe bem porquê, mas a alma fica igual, grudenta.
Ela também se acinzenta.
A alma deve ser meio camaleoa.
Maria-vai-com as outras, bem à toa.
Faz mímica com o dia, é boa imitadora.
Fica assim, tal e qual. Chuvosa, manhosa, ranheta.
Alma que chove baixinho. Que escorre pelo vidro, fazendo um barulhinho triste.
Um som de saudade sua, e mansa. Imensa.
Bate uma nostalgia. Um não sei quê.
Em dias assim, a gente até sai. Porque tem que sair.
Mas a alma fica em casa. Submersa.
Metida debaixo das cobertas, quietinha.
Esperando passar.
Ou comendo bolinho de chuva, quentinho.
Para se consolar.

Dani Altmayer

domingo, 4 de agosto de 2013

MSDA

Finalmente me deixei convencer. Estou frequentando as tais reuniões, uma vez por semana. Acho que está me fazendo bem. Ainda me sinto meio deslocada, é complicado esta coisa de dividir, e tal. Nunca gostei muito de falar em público, fico com vergonha. Bom, tá certo que ainda não falei, só ouvi. Mesmo assim.
Estou frequentando as reuniões uma vez por semana.
E a culpa é sua, você sabe. Você não sabe, mas é. E você vai achar estranho, mas não é. Fiz até um texto, para você, um poema, para tentar explicar. Quero dizer, não é bem um poema, não sei fazer poemas. É, mais uma declaração. Lá nas reuniões eles falam que escrever faz bem. Expressar. Depois eu te mostro. Antes quero te dizer umas coisas. Pra desabafar. Você nunca deixou eu falar, agora vai ter que me ouvir.
Eu sempre soube que você me faria mal. Entrei nessa sabendo. Achei que valia o risco, quis experimentar.Todo mundo dizia que você não prestava. Egoísta, mimado, playboy. Mulherengo. Cidade pequena é fogo. Falam mesmo. Mas, sei lá, tinha curiosidade. Achei que seria divertido, inofensivo. Engano meu. Você, desde o início, me consumiu. Ia e vinha, quando bem entendia. Quando vinha, me enlouquecia, de tanto prazer. Depois sumia, e quase me matava de dor. Não durava muito, e você logo voltava. Atrás de um afago, um dinheiro, ou de sexo. Sempre carente. Cachorro sem dono.Às vezes acho que você voltava só pela cerveja gelada e, pela cama quente. Mas você vinha com estilo, isso tenho que admitir. Todo sedutor. Trazia flores, e a boca adoçada, com as palavras que eu sonhava ouvir. Você dizia tudo certo, fazia tudo errado. Por um tempo, meio que acreditei em você. Mulher é assim, um buquê e um "eu te amo" bem colocado, nossa, fazem milagres. Você sabe bem. Mentiras sinceras nos interessam. E a gente sempre acredita que vai dar um jeito. Que com a gente vai ser diferente. Que vai mudar o cara. Toda mulher se acha especial, no começo. Depois, fui percebendo um certo padrão. Era como um jogo, e quem dava as cartas era você. Eu era o gato, e o sapato. Minhas ilusões, como bolhas de sabão, foram estourando, uma a uma. Ainda assim, insistia, não resistia... Não me pergunta porquê.
Achava que poderia parar quando quisesse. Amanhã. Segunda feira. No instante em que bem entendesse. Adiava o tempo, a hora era sempre depois. Só para ter mais um momento com você, e depois outro. Suas migalhas aplacavam minha fome de passarinho.
Na verdade, eu nunca tentei terminar. Só pensava em. E só o pensar já era uma agonia. Não conseguia imaginar minha vida sem você. Sem esta taquicardia, sem este frio na barriga, sem este calor lá embaixo.
Teve uma vez em que ficamos três meses separados, você lembra? Por decisão sua. Me trocou por "você sabe quem".
No início foi horrível, sofri pra caramba. Chorei durante uma semana, os dias inteiros, de manhã até de noite. Não conseguia comer, emagreci uns 3 quilos. Faltei ao trabalho. Minhas amigas não me aguentavam mais. Só falava em você, tentava entender. Analisei cada palavra, que eu disse, que você disse. Cada torpedo, cada mensagem,  eu passei em revista, tentando descobrir o meu erro. Sempre acho que o erro é meu. Te liguei nas madrugadas. Morri mil vezes, de saudade e ciúme. Tinha delírios, pensando em você. Tremia, de frio e de falta. Fissura total.
Aí, o tempo foi se arrastando, então correndo, e, aos poucos, fui sentindo algo parecido com um alívio. Uma calma, uma paz. Tive, inclusive, um certo orgulho de mim. Achei que estava curada, que estava forte. Comecei a sair com o Paulo. Foi quando você apareceu na academia, com estes olhos caídos, de menino arrependido. Engraçado, quando a gente desiste, as coisas acontecem. Comigo é sempre assim. Persisto, insisto, desisto. Então vem. Você veio, o rabo no meio das pernas. Jurou me amar, falou em casar, respeitar, etc. Falou bonito, como sempre,e eu caí. Recaí, em você.
Acho que a gente é como fósforo e faísca. Pega fogo junto. Explode, entra em combustão. Morre de tesão, um pelo outro. Aí que tá. Entende? Eu morro de tesão por você. Morro. Quando estamos juntos, é perfeito. É mais do que isso. Mas acaba que é só isso.
Claro que você não cumpriu, nada. Você nunca cumpre. Nem trato, nem prazo, nem tenta. É sempre mais do mesmo, depois de um tempo. Ninguém me contou, desta vez. Eu mesma vi.
Quando eu liguei para a Ju, pela milésima vez, aos prantos, repetindo a minha história mimimi, ela falou que eu precisava de tratamento. Ameaçou não me ouvir mais, se eu não buscasse ajuda urgente. Disse que estava de saco cheio de você, e ainda mais, de mim. Você sabe, a Ju é como minha irmã. Tem a maior paciência do mundo comigo. E ela estava falando sério, desta vez.
Foi aí que entraram as reuniões. Eu não podia consultar com o psicólogo. O Sérgio é seu melhor amigo. Não ia me sentir à vontade. A psiquiatra, não sei se você sabe, apanha do traste do marido. Não dava, né?
A Ju disse que eu sofria de um mal conhecido: "Mulheres Que Amam Demais" ( MADA). Acho bonitinho este nome, romântico. Mas, na boa, "Mulheres que se Submetem Demais" (MSDA) soa mais apropriado. Obsessão não é amor, isso até eu sei. Amar demais não é problema. Se amar de menos, sim. Enfim.
De qualquer jeito, parece que existem grupos, e encontros destas mulheres. Claro que não aqui, só em São Paulo. Ela disse que vai me levar, qualquer dia. Só quero ver. Tem até livro, já li dois. Bem legal, me identifiquei.
Mas aqui, neste fim de mundo, onde só tem um psicólogo e uma psiquiatra, fquei sem opção.
A Ju sugeriu as tais reuniões, eu fui, que remédio. Foi o que deu pra arranjar. Vão me ver entrando, qualquer dia, e vão te falar. Cidade de gente fofoqueira. Antes que falem, resolvi te contar. Também para dizer que preciso manter distância de você. Sério.
Estou frequentando as reuniões, estão me fazendo bem. Ainda não falei do meu vício lá. Vou ter que inventar um, ou não vão aceitar. Pensei em ler o "poema", para explicar. Não tem como não entender, né? Mas a Ju falou que não é assim que funciona. Melhor é ficar quieta, e só ouvir. Aprender com as histórias dos outros. Tem cada história... Omitir não é mentir, espero.
Taí o tal "poema", que fiz para você. Você vai achar ridículo, eu sei. É o que eu sinto, problema é seu. Já me acostumei, você sempre me acha ridícula, ou exagerada. Sempre faz pouco caso. Pode rir, não me importo mais.

Você é minha anfetamina, que me tira o sono, e o apetite. 
Minha cocaína, que me deixa ligada em duzentos e vinte.
Meu LSD ( ainda existe?), que me faz delirar. 
Marijuana,  maconha, erva venenosa, sei lá. Que me anestesia, e me faz viajar. 
Ilícito, proibido, ilegal.
Você é meu vício, meu precipício, meu salto mortal. 
Você é meu entorpecente, meu prazer, meu bem e meu mal.
Meu abismo, e meu céu. Meu inferno e meu lar.
Você é minha obsessão, uma fissura, a mais completa loucura.
Todo dia te evito, faço promessa. Não cumpro, não posso.
Falta força, e vontade.
Não consigo evitar. Todo dia, um lapso.
Todo dia, uma dose.
Você na veia, na cabeça. No nariz, e na boca.
Te inspiro, aspiro, te bebo e te fumo. 
Fico tonta de você, cheia de você, repleta de tanto você.
Todo dia, uma dose.
Mais, mais, mais. Duas, três, quatro doses. 
Preciso cada vez mais. 
Você nunca é suficiente. Você nunca é demais. 
Você, até me matar. Ou até eu morrer. 
De overdose, de você.

Então é isso. Agora você sabe. O primeiro passo é admitir. Aceitar.
Estou tratando minha dependência, nas reuniões. Eu, que nunca botei um cigarro na boca. Que fico bêbada só com o cheiro do vinho.
Agora funciona assim, para mim. Só por hoje. Estou reaprendendo a viver. Um dia de cada vez.
Sou uma viciada. E a droga é você.

Dani Altmayer