sábado, 30 de dezembro de 2017

Outros voos



Mais um dia e se vai o ano. Passou rápido, como passam todos os anos, como passa a vida.
Chove na cidade maravilhosa, as nuvens encobrem o cartão postal, nenhum pescador se arrisca ao mar. Uma brisa fresca entra pela varanda no silêncio da penúltima manhã de 2017. É dezembro e faz quase frio, no Rio.
Deitada na rede enquanto o resto da casa dorme, me embalo no inevitável balanço de ano-novo. Datas são meras convenções, ainda assim não resisto: há algo de esperança nisso de acreditar- comer sete (?) uvas, pular sete ondas, usar roupa branca. Se vestir de amanhãs.
(Só não acredito é em resolução, cansei de prometer e não cumprir. Aliás, de promessas me fartei, não faço e nem espero que me façam, não mais.)
"A cada dia o que é do dia."
E assim eu penso no ano que se vai, que me pôs à prova e me deixou mais forte, um ano intenso de emoções diversas, grandes alegrias, aprendizados imensos, bons encontros, grandes decepções, muitos sustos e alguns medos, a descoberta de vários coragens e a realização de um sonho, meu amor errado mais certo do mundo- no mundo. Um ano superlativo.
Sem saudades e sem remorsos, risco a última folhinha de 2017 com gratidão e em paz, espiando pela sacada o dia nublado. A chuva parou agora e na mureta uma garça levanta voo, graciosa e elegante. Eu espero que a entrada em 2018 seja assim como esse voo: bonito, suave. Desejo que seja um ano mais leve, mas se não for, que não a gente tenha força.
E, chova ou faça sol, não importa: que não falte luz.
Que sobrem, sempre, céu e poesia.


Daniela Altmayer
    


quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Corujas


No Amor errado mais certo do mundo tem uma crônica chamada Ainda ontem, escrita em dezembro de 2014. Meu filho estava se formando no ensino fundamental e eu dizia que nada marca mais a passagem do tempo do que ver nossas crianças crescerem. Pois é.
Hoje, 3 anos depois, ele completa o ensino médio. Não é uma criança e já faz tempo. Chega ao fim de uma etapa importante, cumprida sem maiores dificuldades, anos e anos de colégio, amizades, muito basquete, algum estudo.
Se eu sinto orgulho?
Sim, sinto. Muito.
Não porque ele tenha feito sua obrigação, afinal fez o que era esperado dele com todas as facilidades e todos os privilégios que sempre teve, e ainda bem. Ainda assim, poderia ter dado errado. Muitas vezes dá, apesar. De tudo e de nós. Ou deles mesmos.
Então sim, eu me orgulho. Não tanto por seus feitos acadêmicos, que me deixam muito feliz ( e aliviada), mas porque quem o conhece sabe o quanto de bom caráter e bondade e maturidade se escondem por trás daquela cara bonita.
( É que ele é lindo mesmo, prepara para o clichezão: por dentro e por fora).
Eu brigo, reclamo, implico. Ele idem. Um adolescente- quase adulto, um homem e uma mãe à beira de um ataque de nervos, super normal. Super. Tudo certo.
Só que, quando o bicho pega, e pega pra valer- esse não foi um ano fácil- é onde ele demonstra toda sua força, essa inteligência emocional que é dele, que me deixa de boca aberta e por vezes envergonhada de mim mesma.
Nesses momentos fico pequena, e ele grande: mas, como ele próprio me disse, estamos crescendo juntos. Saímos da bolha juntos (na marra) e ainda que sigamos em direções opostas, estaremos sempre juntos no afeto que nos liga.
Ele me emociona tantas vezes. Me enche o peito de orgulho, sim.
Não só pela formatura hoje, e também por isso. Parabéns, JP.  Comemora, aproveita, vive tua conquista. Que venham os novos desafios, porque tu já sabe: de agora em diante é outra vida, muda tudo.
E eu também sei, tenho certeza: tu dá conta.

Resumindo:
Ele me enche de orgulho, de verdade, porque é um guri muito legal. Um baita cara, mesmo.

domingo, 17 de dezembro de 2017

A mulher e o gato


A mesma ressaca, no espelho o mesmo rosto com a barba por fazer, a mesma desordem de todo dia. O café instantâneo, morno. A geladeira e o estômago vazios, a pia cheia de louça, o computador esperando. Os buracos na estante, o armário desocupado ao meio, a garrafa de uísque no fim. A camiseta branca encardida, uma cueca virada, o caos da área de serviço: nada parecia importante nas pilhas de coisas adiadas para dia algum.
Faz uma semana que ele não sai de casa. Não lembra do último banho. Anteontem, talvez. Do artigo para o jornal de domingo, nem uma linha. Do livro, só um parágrafo: o último. A palavra fim. Consulta o relógio na parede, já são  quase dez horas- pelas cortinas cerradas um raio de sol se insinua na sala, fazendo dançar a poeira do chão.
Nada naquela manhã anuncia que vai ser diferente de qualquer outro dia.
Olha pela janela a cidade acordada, suspenso na névoa de seus pensamentos inúteis, fecha bem a cortina e acende um cigarro. Nesse instante, o interfone toca:
- Sou eu, abre.
Não pensa em perguntar de quem é a voz desconhecida de mulher. Obedece. Minutos depois ela entra. Uma mulher alta, de chapéu, toda vestida de preto. Traz um gato no colo, preto também.
- Lembra de mim?
Tem a voz rouca, lábios muito vermelhos. Não espera ele responder, e solta o animal que foge para baixo do sofá, assustado.
-Volto às cinco.
Sai fechando e porta com delicadeza, e deixa para trás uma bolsa de couro, o gato, e o rastro de um perfume forte, que toma conta da sala fechada há vários dias.
Ele espirra, tem alergia a gatos. Talvez seja o perfume. Olha em volta, procurando o bichano- acende uma luz na sala escura. O bicho sumiu, não está em lugar algum, não que ele possa ver.
Suspira e senta na frente do computador, olha o celular que pisca e vibra.
Tem que comprar comida, acende outro cigarro. Precisa comprar cigarro também. Esse é o último. E uísque. Decide-se. Vai no quarto, abre o armário para pegar a bermuda e o chinelo, o gato salta do alto de uma prateleira, e some novamente em direção à sala.  Uma calcinha cor-de-rosa se enrola nos seus pés, deve ter caído lá de cima. Examina com cuidado a peça pequena e cheia de rendas: não lembra dessa calcinha minúscula. Cheira com força, fungando, espirra e joga de volta para o fundo do armário. Merda. Desiste de sair e pede uma pizza, cerveja e cigarro pelo telefone, uma garrafa de água também. Examina a carteira: o dinheiro está acabando, precisa ir ao banco.
Volta para o computador, liga a TV sem som na sala, e fica mudando de canal. Ouve um miado. O gato deve estar com sede. Abre a torneira da cozinha, e o animal aparece, desconfiado. Tem um olho verde e outro castanho, bebe uns goles, depois roça suas pernas, agradecido, e desaparece. Ele lembra de fechar a única janela aberta, a do banheiro: mora no sétimo andar.
Não vê mais o gato a tarde inteira.
Toca o celular, número desconhecido- deve ser da editora. Atende. A mesma voz rouca avisa que vai se atrasar um pouco e desliga.
Faz calor no apartamento. Decide tomar um banho e fazer a barba, não tem mais roupa limpa, veste uma camisa social por cima da bermuda de sarja. E espera.
Ela chega sem avisar às 17h30, mais perfumada e com os lábios mais vermelhos do que antes, ainda de preto. O gato corre a se aninhar em seus braços, o chapéu se desloca um pouco e ele consegue ver seus olhos: um castanho, outro verde.
Ela pisca, pega a sacola de couro e se despede:
- Volto amanhã, no mesmo horário.
Ele senta em frente ao computador, acende um cigarro, depois outro. A sala tem o cheiro adocicado dela.
Passa a noite inteira escrevendo.

Daniela Altmayer
(exercício para a oficina de escrita, misturar conto de fadas/ fábula num texto concreto)

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Meus agradecimentos



Viajei para Rio Grande lendo Clarice, voltei lendo o livro do Lázaro Ramos ( Na minha pele) que peguei do pai- faço isso sempre- agora os livros todos estão devidamente carimbados e identificados como pertencente à biblioteca do Tônio, coisa que, imagino, vai complicar minha vida. Nossos livros, como a gente, sempre viajaram para lá e para cá sem passaporte ou residência fixa.
Ainda não terminei a leitura, mas já marquei algumas páginas (desculpa, paizinho), uma delas em que ele diz "seu lugar é aquele em que você sonha estar. "
Tudo isso para falar de uma outra coisa: do lugar onde sonhei estar, e estive. Do lançamento do meu livro, MEU Amor errado mais certo do mundo. Ainda custa usar esse pronome possessivo sem me espantar um pouco, mesmo depois de um ano inteiro trabalhando nele, editando, cortando, organizando, relendo, escolhendo a capa.
Talvez porque ele não seja realmente meu, as palavras depois de saírem por aí são como os filhos: não temos controle algum. Estão soltas no mundo, e que bom. Dá um medo danado de largar, mas é como tem que ser. É preciso confiar.
Foi um final de tarde lindo, e o sucesso que tantos amigos me desejaram já aconteceu, na minha definição. Sucesso foi receber o carinho de gente tão querida, ao som de uma ótima música, com direito a muita conversa boa e abraços apertados entre reencontros para lá de especiais.
Eu pedi um pôr do sol e no meio do evento veio um temporal. Como me disseram, foi uma chuva de bençãos- que foi bonita igual, porque tudo é bonito naquele clube com vista para a lagoa, e não teve barulho, ainda bem- tenho medo de trovão, quem me lê já sabe. Foi só água e vento, muita água e muito mais vento, que fazem parte da minha história e da história da minha terra de criança.
Foi o final perfeito de uma semana complicada, com alegrias, tristezas, e um baita susto, porque assim é a vida, e assim é o titulo de uma das crônicas do livro: Faz sol, mas qualquer hora pode chover, como bem me lembraram, e que termino dizendo que existe um sol para cada chuva acolhida.
Assim é a vida. Definitivamente, sol e chuva.
Nessa doce alternância de seguir sem garantias, tenho as batidas do coração renovadas por tanta energia boa e pelo carinho de todos, que de um jeito ou de outro, estiveram presentes.
Agradeço à Concha e à Andréia, por seu trabalho cuidadoso que resultou num livro que é a minha cara. Agradeço ao Pedro pela melhor orelha. Agradeço ao pai, por tornar possível meu sonho, junto com a Alison, uma amiga que ganhei de presente para sempre, e que foi incansável, cuidou de cada detalhe com muito amor, como eu nunca poderia sonhar.
Agradeço ao clube da minha infância, que guarda as minhas melhores memórias, pelo espaço e acolhida. Agradeço à Marianna, fotógrafa linda e competente. À Joselma, pelas dicas e paciência. Ao JP, meu amor mais certo, por estar presente nesse momento tão importante para mim, mesmo estando dividido, e ele sabe porquê.
Agradeço a cada um dos amigos que, apesar das adversidades, estiveram no Yacth naquela noite de nove de dezembro, noite desde já inesquecível- e histórica- e agradeço a todos os que mandaram mensagens queridas, por vibrarem junto comigo e por mim.
É muita gratidão, e não estou fazendo mau uso da palavra, não nesse momento. (Nem ironia, aviso.)
Pensem numa pessoa feliz. Muito feliz.
Obrigada, obrigada, obrigada!
Termino esse texto que já está para lá de piegas (acho que tenho licença para isso) com outra citação do Lázaro Ramos, do livro que roubei, ops, emprestei do pai:
"Esses somos nós, reflexos de um espelho quebrado que, como um mosaico, apresenta um pedacinho de nossas histórias. Se visto com carinho, cada pedaço pode ter sua beleza, valores e complexidades reconhecidos."

Vocês ficaram com pedaços do meu espelho, e espero que curtam o reflexo que vão encontrar.


Daniela Altmayer

Ah, o livro está à venda na editora, com a Alison, em breve na feira do livro da FURG e comigo. Lançamento em POA quando o ano começar. ( depois do carnaval )
A trilha sonora é Chão de giz, tá, Icke Bratz ?( adorei)
Obs: Foto de Flávia Altmayer no dia do evento: o amor no céu em forma de coração. Também emprestada

domingo, 26 de novembro de 2017

De visita




Oito horas da manhã de domingo. Ela estava na cozinha, imóvel. Imaginei que estivesse morta, não sei de que se morrem as lagartixas, mas sei também que elas não costumam ficar paradas em nossa adorável companhia. O cachorro, como sempre esfomeado e alheio, não notou a presença daquele pequeno ser branco e escamoso- me olhando desconfiada enquanto eu colocava o café para passar e abria a geladeira em busca de pão. As manhãs de domingo e seus silêncios, o céu cinzento e uma garoa fina, quem acorda tão cedo num domingo assim? O cachorro saciado volta para a cama na frente do fogão e a lagartixa parece esperar por algo que não consigo adivinhar o que é. O que esperam, o que podem esperar as lagartixas? Morta não está, pelo jeito. Mexe a cabeça sutilmente- parece acompanhar meus movimentos matinais: frutas, cereais, limão espremido na água gelada, que não sou mulher de gostar de coisa morna, menos ainda se for água. A cafeteira borbulha no fogão, o melhor café é o passado. Na hora, quente, sem açúcar. Forte na medida. Pego o jornal de ontem, leio o horóscopo de hoje: visita inesperada, espere surpresas, revelações surpreendentes, blá, blá. Olho para o piso encardido da cozinha, minha visita ainda está lá. Sorte a dela que não tenho medo de lagartixas, porque o medo é perigoso, mais do que o ódio- ele machuca e mata. Ataque é a melhor defesa, as baratas que o digam, amém. Não, não tenho medo, tenho até uma certa simpatia. As lagartixas me intrigam, misteriosas moradoras das paredes - que vidas estranhas levam essas criaturinhas de olhos separados e enormes, quantos segredos elas saberão, ainda mais que as moscas, mosquitos e cupins- elas são sorrateiras, dissimuladas- e rápidas. Gostaria que as lagartixas comessem os cupins que corroem essas portas e janelas, escancarando minha casa ao olhos do tempo, mas na chuva eles não vêm- me dizem e é garantido. Chove mais forte agora, um tamborilar de gotas na janela invade o silencio da manhã de domingo, já disse que amo as manhãs de domingo? e sua calma imóvel, tão imóvel como essa lagartixa branca de quem preciso desviar no chão branco-sujo da cozinha. Leio também o horóscopo do meu ascendente, por garantia: nada é permanente, me avisam as estrelas. Eu acredito. O cachorro desiste da preguiça e vem para baixo da mesa, abanando o rabo em busca de um pedaço de manga. Que indelicadeza a minha, preciso oferecer um pedaço também à visita: será que as lagartixas gostam de manga?
Não saberia, nem saberei: ela não está mais ali. Cansou de esperar, por certo tinha algo melhor a fazer do que observar meu café da manhã lento e calado. Desapareceu em algum vão ou fresta, se infiltrou talvez em outra cozinha, quiçá mais interessante e movimentada que a minha.
Ou, simplesmente- e bem mais provável essa última hipótese, sumiu porque não quer ser domesticada- não aguentaria. Como eu.

Daniela Altmayer

Passarinha



Era uma vez uma menina que não sabia falar.
Não é que ela não tivesse uma voz, ela tinha: só não sabia falar.
Quando ela abria a boca, saía um som estranho irritante, num volume muito alto, como se fosse um grito que ninguém entendia. As pessoas tapavam as orelhas porque aquilo doía.
Por não entenderem ficavam com medo do que ela dizia.
Algumas vezes, se ela tentasse bastante, sua voz saía baixinho num sussurro- feito um vento quente que assopra na orelha um assobio incessante.
Todo mundo achava triste mesmo sem entender-as pessoas tapavam os ouvidos porque era impossível ouvir aquele lamento sem chorar ou gemer.
A falta de palavra dita incomodava a toda gente, menina esquisita.
Uns bem que tentaram ensinar, A E I Ó U, outros mandavam benzer ou rezar. Um viajante trouxe poção de terra distante.
Por um ano ela comeu só mel e miolo de pão.
Tentaram de tudo. Nada, tudo em vão.
Então pensaram bem e concluíram que a cabeça da menina não funcionava, também: retardada, abobada, lesada.
Dessas coisas a chamavam, por trás e pela frente, descuidados que eram- e que são.
Faziam rima pequena com problema grande, troça com coisa que dói, mas a menina não se magoava. Pelo contrário: parecia nem se importar, respondia lá do jeito dela (ela sim, tudo compreendia). E sorria. Sorria sem parar.
O sorriso da menina era a parte mais difícil de entender. Qual seria o segredo? Havia de ser mesmo meio destrambelhada, a pobre coitada.
Com o tempo, ela foi deixando de tentar. Aos pouquinhos, e então de repente, emudeceu.
O povo não sabia o que era pior de se ter, se a menina quieta e resignada, sorridente, ou a voz que antes não entendiam mas que ao menos podiam escutar.
É que ninguém gosta de nada assim tão diferente, dá um não sei o quê de susto (e de raiva) na gente.
De que adianta ter voz, se não se sabe dizer?
Se não pronuncia sequer uma palavra, melhor seria não viver, melhor então seria morrer. Decidiram, assim, pôr fim na estranheza- naquela incerteza que dava tanta agonia e causava tamanha confusão. 
Deixaram a menina no mato, com uma cesta de comida e um já volto que era pior que mentira. A menina apenas sorria, serena e calada, sentada à sombra da árvore pequena. Parecia mesmo feliz, assim largada:
Adeus, adeus... 
Uns juram que escutaram, quiseram voltar: será que ela sabia, afinal?
Não a encontraram mais em nenhum lugar. Deixaram para lá.
(Como é -e tem que ser, e será.)
A maioria esqueceu da menina, depois de um tempo.
Poucos ainda a ouvem cantar.

Daniela Altmayer ( Conto de fadas para a oficina de escrita criativa)

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Sabe como é?

1971

Ela estava ao telefone, impaciente. Falava com a mãe naquele tom que os filhos falam com as mães, quase sempre. Entre irritação e tédio: Sim, mãe, não mãe. Que saco, mãe. Não sei, mãe. Tá mãe.
Sentada a meu lado na lotação, ela encerra a conversa e se vira para mim, como pedindo desculpas, revirando os olhos: Mães! Sabe como é...
Eu sei.
Ela é que não sabe que eu perdi a minha há uma semana. Que, desde então, tenho olhado para todas as mulheres que ainda falam com suas mães com um misto de inveja e preocupação. Que eu as vejo juntas na calçada, a mãe e a filha, essa tantas vezes com pressa, sem saber a falta que irá sentir quando não mais precisar retardar o seu passo para acompanhar o dela: quando estiver caminhando sozinha.
Ela não sabe que eu choro na ida e na volta do trabalho, choro agarrada ao travesseiro, que eu tenho uma blusa que ainda conserva o cheiro dela e a visto à noite, todo dia. E que todo dia a vida continua, e não espera minha dor passar, parece que essa dor nunca vai.
Ela não sabe que eu fico tentando entender a morte, essa coisa tão definitiva que leva com ela todas as segundas chances. Todas as oportunidades perdidas, os eu te amo não ditos, os sinto muito esquecidos. As brigas bobas e sem importância. Eu fico tentando entender todas as importâncias. Ela não sabe que a morte muda tudo de lugar.
Ela me conta que a mãe toma conta do seu menino e ela se mete na vida deles demais, não é que ela seja ingrata ou coisa parecida. E eu lembro da longa noite que passei acordada, esperando meu filho de sete anos despertar, e lembro dele vindo pelo corredor, os olhos cheios de sono, ainda alheio à notícia que o esperava na sala: sua melhor amiga havia partido, virado estrela na madrugada. Nenhum abraço foi mais doloroso que aquele.
Ela não vê minhas lágrimas por trás dos meus óculos escuros, e eu tenho vontade de dizer a ela, e a tantas outras que encontro pelas ruas, que elas não sabem a sorte que ainda tem. Elas não sabem, ainda. Quero gritar para não serem tão descuidadas, que é tudo tão provisório, mas ninguém sabe nada, muito menos eu: a gente sempre acha que mãe é eterna.

Ela segue falando, muda de assunto. O tempo mudou. Parece que vai chover, e a próxima parada é a minha.

 Daniela Altmayer
Crônica episódica sobre luto, que está no livro da Santa Sede, safra 2017
 ( Dez anos de saudade, hoje)

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Num piscar de olhos

         
             
Outro dia, no fundo de uma gaveta, achei uma foto de quando meu filho estava começando na escola nova - primeira série. Nesta semana recebi o aviso de uma reunião no colégio para tratar da formatura dele.
Abro os olhos e dez anos se passaram.
Há muito ele passou de mim, em altura. Ainda consigo sentir o calor de sua mãozinha apertada na minha no primeiro dia de aula, ao mesmo tempo em que o vejo no banheiro, fazendo a barba em frente ao espelho.
Quando ele era pequeno, eu olhava para ele e pedia: vai devagar, tempo.
Por favor.
Como pôde, então, ele desrespeitar meus avisos de velocidade e disparar desse jeito?
Penso no tempo gasto em reclamações, em discussões inúteis e no quanto isso fez acelerar os relógios em dias ou até meses.
Penso no tempo ganho em brincadeiras ao sol e abraços apertados, e no quanto isso retardou os ponteiros e fez demorar os raros segundos.
Lembro daquela frase de um filósofo de nome complicado que diz que "a vida só pode ser compreendida olhando-se para trás, mas só pode ser vivida olhando-se para frente". A velha história: se eu soubesse naquele tempo o que sei agora... Só que a gente nunca sabe na hora, só depois. Bem depois.
Bate uma nostalgia sem sentido, uma vontade de retroceder nos anos e mudar o ritmo dos relógios. De ser mais suave, comigo e com ele. De me guiar mais pelas batidas de coração, menos por prazos a cumprir. De falar isso para cada pai distraído que cruza meu caminho de mãos dadas com um menino vestido de Homem - aranha:
- Aproveita. Porque passa rápido, muito rápido.
Como não é possível, me contento em perceber que afinal a vida não é marcada por um cronômetro, embora às vezes pareça.
E que ainda que a gente ande quase sempre apressado, sempre haverá uma manhã de domingo. Aquele momento para se estar junto sem despertador e sem hora. De pé descalço e pijama: uma manhã preguiçosa, gentil, paciente. E lenta.

Como a infância de nossos filhos deveria ser.

Daniela Altmayer
( Crônica que está no livro da safra 2017 da Santa Sede. Tempo/velocidade)

domingo, 12 de novembro de 2017

Embalos de sexta à noite




Na hora calma da sexta à noite, o som de um saxofone me invade o quarto, soprando nos meus ouvidos os acordes de I`ve got you under my skin. Ponho de lado o livro que estava lendo.
Um homem, imagino que seja um homem, toca no prédio vizinho, eu cantarolo a música aqui dentro da minha cabeça num sorriso mudo de quem é desafinada por nascimento, poeta por falta de escolha.
Fecho os olhos e te sinto em cada poro da minha pele, e tudo é exatamente como fala a canção.
Tem lugares de portas abertas de onde não se pode fugir.
Mesmo que nunca se possa ganhar, avisa a voz, shhh... Espero que se cale, inconveniente.
Não é sobre ganhar ou perder, nem é sobre resistir. É sempre sobre outra coisa, maior.
Acaba a música e alguém pede bis, não sei se está rolando uma festa, ou o quê, mas o cara toca bem e não me importo com a quebra do silêncio na meia-noite fresca desse novembro estranho. Ele segue com Frank, My way é a escolha, eu seguro a vontade de cantar alto, do alto do meu lugar comum: a cama. Plateia VIP.
Quero poder ouvir essa música no dia em que o fim vier, e pensar: eu fiz do meu jeito.
Embora eu não tenha planejado cada etapa, sequer tenha tido muito cuidado; tantas vezes estabanada e desatenta, tenho poucos arrependimentos para muitos erros pela estrada, e embora eu espere que esse dia ainda demore a chegar, o que nunca se sabe, nesse momento eu quero é poder cantar forte e fora do tom: I've loved, I've laughed and cried
I've had my fill my share of losing
And now,… 
Adormeço embalada com o tom rouco e um pouco melancólico do instrumento que me entra pelas frestas do sonho. Respiro teu perfume no meu cabelo, a vida é esse intervalo. Como você.
Vento de primavera.
Durmo abraçada ao travesseiro macio de uma bem acompanhada solitude.
Paz é um pouco isso, um nada de tudo. Ou antes um tudo, de nada: um tipo de felicidade.
Musicada ou silente, assim intercalada.


Daniela Altmayer

domingo, 29 de outubro de 2017

Sol particular





Não há luz mais bonita do que o amor.
(Ou seja lá que nome isso tem.)
Só por hoje é o que basta saber.
De todas as outras coisas, eu não sei.

Daniela Altmayer

Muitos




Deitada de costas, a sensação é de que estou boiando numa água calma, meu corpo é líquido quente no fogo brando da sua boca. 
Ao toque sutil da sua língua, sou puro deleite.
Excitação pungente. Crescente, quase dor.
Começa com um arrepio suave que sobe pelo meu ventre, me alcança a garganta num gemido surdo. Depois um tremor quase imperceptível, então muitos- múltiplos espasmos me percorrem feito redemoinhos. Numa dança sensual e lenta, o ritmo marcado pela respiração. 
Seios ofegantes, lábios entreabertos, secos, me curvo e me ofereço inteira e úmida à sua delicadeza única.
Súbito, uma descarga forte, e outra, outra ainda- encadeadas, incessantes, insistentes. 
Ondas sem platôs, sucessivos ápices de um orgasmo interminável: a soma de vários.
A multiplicação da felicidade rara- que só é possível assim, na mais perfeita das entregas.
Que só é possível assim, com você.

Daniela Altmayer

domingo, 22 de outubro de 2017

Por que o amor?




São quase sete da noite, horário de verão- ainda é dia, mas está escuro. Um dia cinzento que não amanheceu.
Vejo seu João fechar a porta da guarita, está acabando seu turno. O uniforme azul-claro impecável em contraste com a pele escura, a cabecinha branca curvada sobre os ombros também curvados. Ele conversa um pouco com Manoel, o porteiro gordo da noite. Olha para cima e me vê na janela. Acena timidamente, está triste. Estamos todos. Pega sua sacola e se despede do colega.
Seu João trabalha no prédio há 18 anos. Ela a viu nascer e crescer. E foi ele quem a encontrou, cedo pela manhã, na piscina.
Espio o jardim recém-florido, a grama bem cuidada. Um pássaro se despede da tarde, e o resto é silêncio- nada lembra a confusão do início do dia. Todas as janelas estão fechadas no quinto andar, nenhum carro na garagem exceto o meu. O parquinho infantil está deserto de risos inocentes. Um balanço dança com o vento, e range, gemendo. Precisa botar óleo, me lembro.
Fecho a cortina e penso nas palavras do porteiro, os olhos arregalados e úmidos:
- No pulso direito tava escrito fé. No esquerdo, AMOR. Bem grande. Não dá pra entender, dona Cláudia. Uma menina bonita, tinha tudo. Minha amiga...
Ainda posso ver os dois conversando na guarita, pouco tempo atrás. Ela sentada no banquinho dele, uma xícara de café na mão e os biscoitos que dividiam quase todo dia.
Uma vez me disse que gostava das histórias que o velho contava, anotava todas num caderninho- tinha planos de escrever um livro. "Tudo é inspiração, dona Cláudia." Também de mim perguntava, interessada. Mas eu não tinha nada de bom para contar, só sei das coisas do condomínio, e das que vejo da minha janela- faz tempo que a vida parou de acontecer por aqui.
Imagino agora seu João sozinho na parada, depois sacolejando dentro do ônibus em direção à sua terrinha, como ele diz. Mora num pequeno sítio na periferia, com a esposa e o neto Carlinhos. De vez em quando ele nos traz umas bergamotas miúdas e azedas, diz que a patroa mandou. Traz ovos caipiras também, para vender. Acendo uma luz no apartamento, suspiro- hoje foi difícil ser síndica. Imagino o pobre homem chegando em casa agora e dando a notícia, os olhos turvos molhados e incrédulos. A mulher o abraça forte pelas costas, ele solta o choro represado do dia, inconformado:
- Pra quê? Se tinha tudo, tanto amor... Se tinha amor até tatuado, pra não esquecer. Não consigo acreditar.
Primeiro a fé, de leve, superficial, com medo ainda. Depois o amor- que ela cortou forte e fundo, e deixou sangrar até morrer, o AMOR.

Daniela Altmayer
( desafio: pra que o tal do amor?)



Naufragada



Não sei se você vai entender minha letra. Escrevo com dificuldade, minha mão direita treme muito, às vezes esqueço as palavras. Pedi à enfermeira um dicionário, mas de nada serve quando esse branco toma conta do meu cérebro, aos poucos eu estou perdendo a capacidade de dizer. Devia ter falado quando ainda havia fala, paciência. Espero que me reste tempo suficiente para eu terminar essa carta que esboço há meses, tem dias que não consigo escrever nada.
Queria dizer que voltei por vocês. Todas as vezes, eu voltei por vocês. Não espero que me perdoem por isso, acho que nunca poderiam entender o que eu fui e o que me tornei, vocês nunca poderiam saber o que se passava aqui dentro, nessa cabeça e nesse corpo febris que finalmente falham, que agora me privam de uma velhice digna, do acerto de contas, dos netos que não conheci nem conhecerei. Este é o exílio que mereci.
Os dias aqui são todos brancos, como as paredes desse quarto. Na mesa ao lado da cama tem uma foto de vocês duas, vestidos vermelhos iguais e longas tranças, de mãos dadas com seu pai. Fui eu quem tirou essa foto, logo depois que voltei. Seu pai tem os olhos cansados. Ele era um homem bom e cansado. A foto está desbotada, mas o vermelho dos vestidos não. Vocês eram lindas, tão diferentes uma da outra. A Lina sempre muito séria, com raiva-já sabia e nunca me perdoou. Ana, tão pequenina e ainda inocente do crime de que foi cúmplice involuntária.
Eu só amei um homem na vida, e não foi esse que me olha na fotografia, esse homem correto e cansado, que sempre me recebeu de volta. Não, ele não foi o amor da minha vida, o pai de vocês. Deveria ter sido, se as coisas fossem como eram para ser, nunca foram, ele tinha o melhor tipo de amor. Acho que hoje vocês já devem saber que existem amores bons e amores ruins. Eu escolhi o amor ruim. 
Seu pai viajava muito, a trabalho, isso não é desculpa- teria acontecido de qualquer jeito. Desde sempre tive paixões que me queimavam, um buraco que não conseguia tapar com a maternidade, com as tarefas de casa, me perdia nos livros e escrevia poemas, fazia longos passeios pela ruas de pedra, sofria de solidão. Mesmo quando meu marido estava em casa, até mais quando estava. Odiava a cidade pequena e cinza que me confinava, o cais do porto e sua promessa de terras distantes, a sujeira das calçadas. Aquela gente pequena.
Quando fui embora, você tinha três anos, Ana. Nunca falei para nenhuma das duas onde estive, fui para longe, atravessei o oceano. Fui para muito longe. Tentei buscar vocês muitas vezes, seu pai impediu. Durante um ano e um mês, fui a mulher mais feliz e a mais infeliz do mundo e no fim, sem saída, eu voltei. Por vocês.
Seu pai aceitou tudo, os outros amantes, homens em quem eu buscava alívio e dor, as bebedeiras, os abortos- filhos não planejados, não havia mais espaço: sempre foram só vocês. Ele era um homem bom, tinha esse amor cansado, acomodado, que eu não merecia e não desejava. Vocês sabem, fiquei com ele até o fim e não poderia ter sido diferente. Mas eu nunca estive ali.
Hoje que já não tenho voz, e que as palavras me fogem, escrevo antes que seja tarde, só que é sempre tarde. Anoitece, e eu queria que vocês soubessem: antes de ser mãe, fui mulher. Fui muito mais mulher do que mãe. Doente, intensa, atormentada pelos vícios de uma paixão e de um segredo que devorou meu corpo, depois meu espírito, finalmente explodiu minha cabeça. 
Voltei por vocês, mas não para vocês. Já era tarde demais sem que eu soubesse. 
Minha mão treme, tudo falha, estou de partida. Estou partida há muito tempo. 
Mas antes de ir, Ana, preciso te dar um nome e um endereço. É de longe, de um lugar distante.
De onde nunca retornei de verdade.

Daniela Altmayer
( Exercício de texto confessional - objetivo não alcançado- para a oficina de escrita criativa)

sábado, 14 de outubro de 2017

Sons


Chove em Porto Alegre, e para.
Ecos de trovões exigentes precedem o aguaceiro. Chove e para.
Quando para, o canto insistente dos pássaros  atravessa o nublado do céu. O ronco de um motor desregulado abafa a música passarinhal.
Carros são a anti-poesia, realidade concreta e crua.
Sinto falta dos sapos do Cassino, daquele lamento triste que vinha do jardim molhado.
O cheiro da grama brilhando na noite escura, a sinfonia dos grilos- uma breve melancolia.
Chove em Porto Alegre e quando para, o som seco do cimento é quase silêncio.
Exceto pelos passarinhos.
Só os pássaros resistem, a intervalos de chuva.

Daniela Altmayer

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Vinho doce



No álbum velho as fotos estão desbotadas. Mal reconheço a menina de dezoito anos que vivia sua aventura de estreia longe de casa.
De todas as viagens que fiz, guardo nítida a lembrança da primeira vez em que estive na terra da minha mãe, ainda no século passado. Desembarquei sozinha na Inglaterra, em abril de 1988, para estudar inglês durante três meses.
Fiquei em uma cidade chamada Bath, tem esse nome devido aos antigos banhos romanos. Morava na periferia, hospedada com um casal que me parecia velho então, mas que, muito provavelmente, tinha a idade que tenho hoje. Ele, Mick, era funcionário da prefeitura, Margaret era enfermeira. Ele achava minhas pernas engraçadas, me apelidou de Funny legs, vivia contando piadas. Ela era mais séria. Mantive contato com eles através de cartas por longo período após meu retorno. Dez anos depois, voltei para uma visita.
A casa era simples, jantávamos às 17 horas, e depois tomávamos chá, assistindo programas bobos na televisão, comendo os melhores biscoitos com cobertura de chocolate que já provei na vida. 
A escola onde eu estudava era perto, dava para ir a pé. Fiz amizade com duas brasileiras, dois italianos- um dos quais namorei, um suíço e um árabe. Para se chegar ao centro da cidade, era preciso atravessar um parque muito verde, onde também fazíamos piquenique e jogávamos frisbee. De vez em quando a gente fumava um haxixe, trazido pelo árabe, o Ali. Naquele quase verão, o sol ia alto até perto das dez da noite.
Uma ou duas vezes por semana, o programa era ir até um pub local, onde eu pedia sempre a mesma coisa: a glass of sweet white wine, please. Não sei como não me engasgava nas palavras, a sorte é que, sendo o dinheiro curto e contado, eu só tomava uma taça mesmo. 
De vez em quando íamos a Londres de trem. Aprendi os mapas do metrô, visitei catedrais e museus, morria de inveja das japonesas sempre cheias de sacolas de compras, em contraste com minha pseudo miséria.
Detestava a comida da escola e em geral só comia pão, biscoitos e Mars bars- minha grande descoberta daquele tempo. Engordei sete quilos, ao final da viagem minhas calças já não fechavam. Falando em roupas, sobrevivi três meses com meia dúzia de camisetas, dois jeans de cintura alta, três blusas de lã e um casaco.Outra coisa impensável, hoje em dia.
Comprei um walkman que tocava repetidamente duas fitas-cassete: uma do The Police, a outra dos Pet Shop Boys. Quando ia a Londres, entrava na Virgin`s e enlouquecia. Ficava horas ali ouvindo discos. Hospedávamos-nos em Bed and Breakfasts baratos, o banheiro em geral ficava no corredor. Chuveiro era luxo raro naquele tempo, as banheiras tinham crostas de sujeira.
Eu nunca fui tão feliz. E o melhor de tudo: eu era feliz e sabia. 
Sabia que aquilo era único e irrecuperável, que eu nunca mais teria aquela idade, aquela experiência, aquele lugar no mundo. Pensava nisso toda manhã, caminhando para a escola, e ao longo dos dias sempre tão longos. Não esquecia, por um instante sequer, a sorte que tinha, e vivia.
A menina bochechuda que me sorri hoje, na foto desbotada, é até parecida comigo. Ao mesmo tempo, me parece uma estranha. Quando lembro daquela época, penso em como ela era mais sábia. Eu era.
Porque ela tinha a inteireza e a consciência que eu deveria ter até hoje (e não tenho): a de que, não importa o lugar, nem o tempo, a vida é sempre presente.
E só no presente.

Daniela Altmayer
( texto "memorialístico" para a oficina de escrita)

Meus pais ingleses e os brasileiros, em visita.


segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Nas melhores famílias



Eu mandei a foto para o grupo da família.
No grupo da família está a minha mulher, minha cunhada, meus sogros e a tia Clarissa. A tia Clarissa tem noventa anos.
Eu estava sem óculos, tinha acabado de sair do banho e isso é tudo que tenho a dizer a meu favor. Isso e o fato do nome da minha amante ser Flávia. Não sei se eu mencionei que tenho uma tatuagem na virilha, um sol. Minha mulher tem uma lua no mesmo lugar, fizemos juntos no nosso primeiro verão em Garopaba.
Estava todo mundo de férias na praia, menos eu. Num primeiro momento não percebi meu engano, ainda sentei de toalha na cama e telefonei para a Flávia:
- E aí, gostou, gostosa?
Quando vi que ela não sabia do que eu estava falando, desliguei. Em seguida tocou o telefone de casa. Era minha mulher, aos berros.:
- Enlouqueceu?
Perguntei se ela não tinha curtido a surpresa, falei que aquilo tudo era saudade dela, muita saudade.
Não se comoveu. Me disse que a tia Clarissa teve um ataque quando abriu a foto. Estava sentada na varanda agora, em estado de choque. Nunca entendi essa velha conectada, manda trezentos vídeos fofinhos por dia, uma chata. Os pais dela estavam na missa, pedi para ela pegar o celular deles e apagar a foto- não adianta, ela diz, levaram junto.
- E depois, a Cláudia já viu e não para de rir.
Cláudia é a cunhada, que por sinal, já conhecia a minha tatuagem. Uma vez entrou no banheiro sem bater, a safada.
- E as crianças?
Bom, as crianças não estavam no grupo. Menos mal. Estavam brincando no vizinho. Pergunto se estão bem.
- José Ricardo, não me enrola. Você tem outra?
Meu celular vibra, a foto da Flávia aparece na tela. Ignoro.
- Claro que não, docinho. Imagina, você é a primeira e a única, meu anjo. Me confundi, só isso.
Ela resmunga um "tudo bem" desconfiado, os pais voltaram da igreja. Antes de desligar ainda ouço a voz estridente da mãe dela:
- Maria Imaculada do céu, o que é isso? Me explica!
Paciência, o domingo esta só começando. Volto para a cama, deito de toalha molhada mesmo, olho as roupas jogadas no chão: ah, as pequenas liberdades...
O celular pisca, duas mensagens:
Uma da Flávia. A outra da cunhada- a safada.

Daniela Altmayer
( qualquer semelhança é mera coincidência)






sábado, 30 de setembro de 2017

Aquele hotel


Primeiro vem a dor. Sempre ela, primeiro.
Uma estocada mais bruta e aquela dor quente, rompendo a barreira da pele. Rompendo todas as barreiras da covardia.
A dor seca e áspera do caralho abrindo caminho à força- uma contração involuntária e o corpo retesado, um grito de espanto. 
De dor. 
A dor quente. Pulsante, uma dor aguda, bem-vinda.
Os músculos se relaxam e se alargam para recebê-lo. A dor agora divide espaço com o prazer. 
Um arrepio de antecipação, o domínio do macho que cobre a fêmea, a entrega doce e desesperada. 
O pau latejante, que se agiganta por dentro dela. 
O peso dele montado em suas costas, suas pernas abertas, a boca mordendo o lençol, as mãos crispadas, o vaivém do caralho. 
Devagar... Suavemente...
Mais forte. Mais duro. Mais rápido.
Já não há dor. Nem barreiras. Só a queimação e o entra e sai, marcando o trote, a trepada, o compasso.
Ele dança sobre ela, ela se abre e se contorce sob ele. 
São dois em um. A respiração ofegante, a cadência crescente, ele cada vez maior dentro dela. 
O púbis dela apertado contra o colchão, a bunda oferecida, empinada, um olhar enviesado. Safado. 
A pulsação única, o ritmo acelerado, a iminência quase insuportável (quase dor) do gozo que já não pode nem quer ser contido, que chega junto, brusco, aos borbotões e finalmente explode e se acaba em espasmos e jorros numa ausência completa de pensamentos. Num turbilhão de sentimentos e sensações. 
Ele desaba sobre ela, dois corpos suados, suspirantes, inertes. Surpresos, saciados, suspensos no limbo do depois.
O prazer quente escorrido, espumante, viscoso: ardido. 
Antes, uma dor. Agora embriaguez.


Ela se veste devagar, em silêncio.
Ele dorme, o braço estendido sobre o rosto, cabelo desgrenhado, nu ainda. A luz fraca desenha o belo contorno dos seus músculos. Sobre a mesa, taças de vinho pela metade, um toco de cigarro com marca de batom e a aliança dela.
O quarto tem um cheiro forte, inebriante.
Ele suspira no sono, se mexe, fala algo inaudível- mas não acorda. Ela respira fundo.
Enfia a calcinha na bolsa e abre a porta do quarto com cuidado. Descalça, sandálias na mão, sai pelo corredor do hotel pisando o carpete puído com a delicadeza de uma fugitiva.

Daniela Altmayer

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Tu, por acaso




Já não sei se és oásis ou miragem, por tantos anos andei vagando, ímpar, perdida nesse deserto sem saber, uma estranha entre estranhos; agora te descubro sem procurar, par por acaso, mato a sede em tua saliva, bebo tua areia feito água, sacio a fome no teu corpo que me queima, me come, me consome; tu me abres inteira e em partes, depois me devolves intacta, insaciável, pétalas de mim; ao meio dessa interminável incrível viagem, te descubro, me descubro, ser sensível, fêmea, puta, mulher tardia, esqueço do deserto, derramada em teus braços fortes; por acaso oásis ou miragem, tanto faz,somos dois, entrelaçados numa única, úmida, árida planície nua.
Já não me importa se és miragem ou oásis.
És. Sou.Tua.
Só uma pergunta que não ousaria ainda me resta, tênue feito nuvem que ora voa longe, também já não importa se faz calor, se tem sol, se vai chover nesse dia.
A pergunta que eu não te faria- se tu pudesses me amar, amaria?

Daniela Altmayer
( texto de janeiro- 2017)

domingo, 17 de setembro de 2017

Ecos


Cai a tarde em teus braços cansados.
De repente, o silêncio.
A calma que precede a tempestade da noite; 
Ficas esperando um vento qualquer que desmanche teu cabelo.
Uma gota.
Ele não vem. Ela não vem.

Só o silêncio. Seco. Brusco. 
Buscas em volta um ruído que te embale o sono no final do domingo, 
Uma pequena cantiga que murmure em teu ouvido: está tudo bem. 
O silêncio não prenuncia o som. A palavra que não pronuncias.
Ninguém vem.
Ele é só silêncio.
Ela, essa confissão. 

O vazio. A mudez nua, bruta. 
Vagalumes ao redor da lua,
Buracos de estrelas mortas.
Há muito.

Que nome tens? infinitos.
Nome algum, não importa.
Em todos fui-serei tua.

Muda de uma surdez crua.
Sem susto, sem grito.
Perdida da dor, esquecida.
Cega de uma noite escuramente absurda.

Ele não vem, ninguém.
É tudo somente esse nada. 
Ouve. Mas ouve bem.
É só silêncio, sempre.
E não.

Daniela Altmayer

Bela adormecida

Pintura: Cumplicidade por Marília Nunes

Era uma tarde ensolarada, fazia um calor ameno de fim de primavera. Pela janela de cortinas semi-cerradas entrava o canto dos passarinhos e uma ou outra voz difusa, distante. 
Sons intrusos de um mundo distante.
Estavam os dois no sofá, nus e sonolentos após o sexo vespertino.
Ele desperta e se ergue sobre ela, tirando o peso, mas sem soltá-la totalmente.
Surpreso, ele sente seus mamilos também despertos. Escorrega o corpo e encaixa o quadril entre suas coxas, agora com a intenção de imobilizá-la. Ela acorda miando.
A língua dele, ainda seca, toca o bico do seio esquerdo. Ela geme, e ele sente seus músculos se retesarem. Passa um braço por baixo dela, colando os ventres para sempre. 
Segue passeando a língua, provocando o bico- os dentes raspando a pele, mordendo de leve. 
Ela, presa no abraço, só consegue respirar ofegante, e a cada chupada dele aumenta o ritmo e o gemido. Surpreso, ele antevê um gozo inédito. Sente os braços se debatendo e finalmente relaxando sob os seus. 
Ela sente escorrer entre as pernas o deleite inesperado, viscoso, melado. As coxas se colam uma à outra, na tentativa de reter o instante. Os olhos dela são lampejos de puro espanto. 
Ele segue com o seio quase inteiro dentro da boca até cessarem os espasmos. Uma fresta de sol entra pela janela, e se aninha entre seus pelos dourados. 
Uma lágrima escapa ao sorriso mudo que ela lhe devolve, junto com a pergunta suspirada:
-O que foi isso?
Pergunta que repetiria muitas vezes, para si mesma e para ele, ao longo dos meses seguintes. Meses de uma exploração sensorial mútua, febril. De liberdade fêmea recém-chegada, nascida naquela tarde de sol inclinado. Pergunta espantada a cada novo gozo revelado, inventado, aprendido. A cada centímetro de pele conquistado, lambido: invadido, como se nada fosse indevido ou sagrado, a partir dali nada nunca mais foi proibido. 
As janelas e as portas do prazer foram bem mais que abertas, escancaradas. Mordidas com todos os dentes. Destravadas com força, com delicadeza. 
Foram meses de coragens, entregas, voos -solo e casados. Viagens ao centro de tudo, guiadas por ele, para ele e com ele: sua melhor parceria. 
Fui despertada por um beijo.
Ela me conta isso da distância de um tempo já transgredido, me fala das mil possibilidades do amor. Seus olhos escuros brilham ao me ensinar que tudo é- ou pode ser- erótico nesse mundo. "Erótica é a alma". 
O sexo que se espalha pelo corpo começa na cabeça e não se restringe a parte alguma, nunca. Não precisa. 
Ela ri e desdenha dos filmes pornô, até gosta, não se trata disso: apenas não precisa.
É tudo tão mais.
Estirada no mesmo sofá, taça de vinho na mão, sua voz se embriaga na lembrança:
O assombro da descoberta ainda hoje se mescla à sensação de infinitude apreendida naquela tarde, pela boca do homem que ela se perdeu a amar- naquele instante ou bem antes. 
Depois. 
Como não amar quem nos livra das correntes?

Dani Altmayer



sexta-feira, 18 de agosto de 2017

O melhor de mim



E quando passarem a limpo,
E quando cortarem os laços,
E quando soltarem os cintos,
Façam a festa por mim...
(Ivan Lins)

Você chegou na tarde de uma outra sexta-feira, há dezessete anos.
Trouxe o caos e a cor.
Transformou a minha existência.
Deu nome ao meu livro:
" O amor errado mais certo do mundo."
Amor maior que eu.

(Amor que não se mede, que não se repete, que eu nunca vi igual- estou cantando agora, sorry, tapa as orelhas).

Meu implicante favorito, te desejo um dia lindo, uma vida plena de sonhos e realizações. Que não falte nada do que importa pra ti. E que dê e sobre tudo o que te faz feliz.
Te amo, e amo ser tua mãe.

Dani Altmayer

domingo, 13 de agosto de 2017

Sujeito não é objeto


Lendo um livro difícil, aprendi uma palavra nova hoje:
Ponderoso.
Estivesse eu mais distraída, leria poderoso e ficaria por isso mesmo. Caberia.
Assim é a vida, como esse livro difícil. Vive ensinando - só que depende, e muito, da nossa atenção.
Conto isso para ilustrar o pensamento que me ocorre ao percorrer nas redes sociais as homenagens numerosas (em igual número de críticas) aos pais pelo seu dia.
Pais, ou mães: humanos.
Somos falhos, todos, em graus diferentes. A gente é o que sabe, e o que pode ser.
"Somos quem podemos ser".
Mas, e esse mas é muito importante:
MAS
Não somos fixos.
Fomos feitos mutantes.
Podemos deixar de ser quem somos, a qualquer momento e ocasião.
Nos desvestimos do antigo, como de uma velha roupa apertada que não cabe mais.
Porque nos tornamos mais sábios. Ou mais relevantes e pesados.
Maiores.
Ou, simplesmente, porque passamos adiante.

Dani Altmayer

domingo, 6 de agosto de 2017

Na hora ( toda hora)







Fecho os olhos para ver você
Mordo os lábios com força
Com raiva? Com gana
De ti. Dele.

Para não escapar outro nome, 
Eu te engulo. Me devoro.
E (nos) sangro.

Dani Altmayer

Sem nome








Sigo o rumo do vento.
Ouço o silêncio do tempo.
Prefiro as velas içadas- incertas,
Eretas.
Ao infiel enferrujado cais.

Dani Altmayer ( imagem inclusive)

sábado, 5 de agosto de 2017

Mais uma de amor




Mais uma de consultório:

Ela tem setenta e foi consultar por um resfriado. Ao final da consulta, já de pé, me diz:
- Tenho que me cuidar, meu namorado tem 90 anos.
- Senta aí, dona X. Me conta!
(Adoro histórias de amor.)
Ela é viúva há 5 anos, de um casamento de trinta com um " homem lindo". Ele, viúvo há 10. Vizinhos na zona sul, não se conheciam. 
Em um domingo de sol, a caminho do supermercado, ela reparou num arbusto cheio de flores na frente de uma casa amarela.
Decidiu bater à porta para pedir uma muda. Foi ele quem atendeu. 

Ficaram conversando por quase uma hora, e ele lhe deu a muda em troca do número do seu telefone. Ligou pra ela no dia 8 de março, dia da mulher, parabenizando- cheio de charme. Foi convidado, ou se convidou para um café. Na despedida, um beijo roubado. Desde então, passam os dias juntos. Almoçam. Tomam vinho. Namoram. "O beijo dele é uma delícia, doutora. Ele é muito carinhoso. Um velho cheiroso, inteligente. Uma enciclopédia! Toda hora aprendo uma coisa nova com ele."
Ao cair da noite se despedem, só dormiram juntos duas vezes nesse tempo - quando ele esteve doente e quando o filho com quem mora viajou. Ela me fala que não esperava se apaixonar, ainda. De novo. Mas aconteceu:"A vida surpreende."
Pergunto se ela gosta de ler.
- Nós dois gostamos muito.
Indico para ela o livro Nossas noites, de Kent Haruf.
É a história deles, no turno inverso.
Me atraso toda, bem feliz.
Nunca é tarde. Não demais.


Dani Altmayer

sexta-feira, 21 de julho de 2017

Carta para um avô



"Foi ontem que chegou a confirmação.
Mamãe fez xixi no sapo e ele deu três pulinhos de contente.
Estás ali dentro no quentinho, batalhando para crescer, por enquanto menor que um grão de arroz.(...)
E cá entre nós, que ninguém nos ouça, meu peito parece não segurar tanta alegria. Abraço tua vó e choramos juntos, como fizemos nas quatro vezes em que o sapo também pulou para ela."

Assim começa o livro que tu deu para o JP quando ele tinha oito anos.
Assim começou a história de vocês.
(Nove meses antes de ele te olhar pela primeira vez.)

Folheio agora o livro com a emoção de sempre, e penso que já escrevi tanto para ti, mas não sei se alguma vez te agradeci pelo papel de melhor avô desse mundo.
Se não o fiz, faço agora.
No dia do teu aniversário, enquanto lembro das tuas mãos enormes ensaboando aquele bebê careca e sorridente, trocando fralda, passando protetor solar ( a pior das tarefas, que sempre foi tua).
Enquanto lembro dos passeios de bicicleta, vocês dois de boné pelas ruas do Cassino, a cumplicidade  e a parceria evidentes.
Enquanto lembro das aventuras na neve, dos safaris, das partidas de tênis e futebol.
Das brigas pelo carrinho amarelo, um Porsche se não me engano.
Das tantas viagens que fizeram juntos (dentro e fora.)

Ainda posso ver vocês na rede, na piscina, na varanda.
Ele sempre falando, tu explicando cheio de paciência, contando aquele monte de história inventada.
Acho que o JP é o único que ri das tuas piadas. ( De verdade)

Um homem e um menino.
Um avô e seu neto.
O melhor vô do mundo: desde sempre.

Gratidão, pai. Vô.
Pela tua existência na nossa.
Pela tua presença forte, pelo teu apoio, teu afeto incondicional.
Pelo jeito como tu nos pegou (e pega) no colo e consolou (e consola) tantas vezes, a mim e a ele.


 Teu neto anda querendo fazer uma tatuagem. De novo essa ideia, e agora a coisa é contigo:
- Mãe, para começar, eu queria tatuar a data de nascimento do meu vô no peito.
Depois ele me mostra uma paisagem em um losango, e diz que na seguinte (vai ter mais de uma), gostaria de colocar ali o desenho de um homem de chapéu, e um menino.

"Eu e o vô".

Para representar muito além das andanças de vocês por essa terra:
O amor de vocês nessa vida.

"Quando manuseares este livro, lembra com carinho deste avô que sempre foi um apaixonado por ti e que te acompanhou até aqui. Quero te acompanhar por muito mais..." Assim terminou o livro, nove anos atrás.

Ainda bem que a vida vem te concedendo este "muito mais."
E que venham muitos muito mais!
Que tu sigas com saúde e energia para continuar essa história que, se não está mais registrada num livro, está impressa.
Indelevelmente, e sem precisar de tatuagem alguma

Tá ali, desde o início:
No coração de um neto que é um apaixonado por ti.
E no meu.
Porque, confesso: eu também sou.

Feliz aniversário, paizinho. Te amo!
Te amamos.

Dani