domingo, 25 de março de 2012

O Monstrinho do Medo

Escrevi esta pequena história no início de 2007, para o meu filho JP, que tinha então 6 anos de idade e estava saindo da escolinha onde passou seus primeiros anos.Achei nas minhas arrumações e transcrevo aqui para que não se perca.

         Meio, o monstrinho do medo

Carlinhos era um menino de seis anos que morava com os avós em uma cidade do interior. Sua casa era grande, com um imenso jardim onde brotavam flores, árvores frutíferas e havia até mesmo uma pequena horta.
No jardim viviam muitos pássaros, que escolheram aquele lugar tão bonito para fazer seus ninhos e colocar seus ovos. Logo cedo, pela manhã, era uma cantoria só, que fazia Carlinhos abrir os olhos e despertar, de madrugada ainda.Além dos passarinhos, havia também sapinhos, formigas, lagartas, borboletas.E, é claro, Zulu e Zubu, os dois cachorros de Carlinhos.
Zulu era um labrador da cor do chocolate, muito grande e simpático. Zulu era um vira latas magrelo, que um dia seguiu o menino na rua, com olhar de quem pede comida e carinho. Carlinhos, que é apaixonado por animais,logo o adotou, e hoje o Zubu e o Zulu são seus grandes companheiros,  de corridas no jardim, banhos de mangueira e jogos de bola.
Carlinhos era um menino de sorte, pois levava uma vida feliz e tranquila, era muito alegre, esperto e querido por todos.Mas ele tinha um segredo. Um segredo que não contava para ninguém.Além dos cães, pássaros e todos os outros bichinhos de que já falamos, havia um outro habitante no jardim da sua casa. Ele não sabia que bicho era aquele, nem sabia se era um bicho. Não sabia o seu nome, e não tinha coragem de olhar de frente para aquela criatura esquisita, de olhos esbugalhados, que, sempre que aparecia, deixava seu coração disparado e seus cabelos arrepiados. Carlinhos nem pensava, logo saía correndo. Zulu e Zubu o seguiam calmamente,sem desconfiar do que estava sentindo o menino.
Engraçado é que aquela coisa só aparecia em certos momentos. Por exemplo, no primeiro dia de aula. Quando caiu da bicicleta. No dia em que foi ao dentista tirar o dente que não queria cair. Quando seu avô brigava com ele. Sempre que tentava fazer alguma coisa muito difícil. Aí vinha aquele ser meio gente, meio bicho, muito feio, deixando um frio na barriga do menino.
Carlinhos tentava não pensar muito naquilo, mas nos últimos dias aquele arrepio estava se toranando cada vez mais constante, e o monstrinho aparecia a todo instante. É que o menino andava um pouco nervoso, pois ia mudar de cidade, de escola, de tudo. Ia para a cidade grande, para uma escola maior, afinal já estava com quase sete anos. sua mãe e a irmã mais velha o estavam esperando.
Mas ele relutava em deixar aquele mundo conhecido, aquela casa grande, seus avós, seus amigos. mesmo sabendo que teria outras maravilhas na cidade, e que voltaria sempre, nos finais de semana e nas férias.
Então, com todos estes pensamentos confusos na cabeça, ele sentia que ficava como que congelado, parado no meio do caminho, como se tivesse sido atingido por um raio ou um spray paralisante.
Um dia, já cansado daquela sensação ruim, tomou uma decisão. Resolveu encarar o tal "monstro" e perguntou para ele:
-Qual é a sua cara, o que você quer comigo? Afinal, quem é você?
O monstrinho começou a rir e disse:
-Eu sou Meio, o monstrinho do medo.
-Medo?
-Sim, medo, este sentimento que aparece dentro de você e o deixa sufocado e paralisado. Sou eu!
Carlinhos respondeu:
-Mas eu sou muito corajoso, nunca choro, nem quando me machuco. não tenho medo de nada!
Meio falou:
-Tem sim, e eu sou a prova disso. Mas não sou tão feio quanto pareço na sua imaginação. É que você foge de mim, nega a minha existência, não me olha direito. Aí eu pareço muito mais assustador. É você quem me faz deste jeito! Você já ouviu aquela frase que diz que você deve enfrentar seus medos de frente, para que eles desapareçam? Bom, desaparecer não desapareço, mas perco um pouco dos meus poderes, por exemplo, o gás paralisante fica inativado, eu fico um pouquinho menos feio, sempre que você me encarar. Pois medo, todo mundo tem, até os adultos. Mas toda vez que você olha para ele, ou para mim, no caso, mesmo que seja com lágrimas nos olhos,eu vou ficando um pouquinho mais fraco e você um pouquinho mais forte. Até que um dia o monstro do medo não te assusta, nem te paralisa  mais, pelo contrário.
Carlinhos sorriu e disse:
-Tens razão, Meio, seu monstrinho feio! Já estou me sentindo melhor e mais forte para as mudanças que vão acontecer!
Dito isso, saiu correndo, contente, para jogar bolinha com seus inseparáveis companheiros de quatro patas.
                                                  FIM

PS: desnecessário dizer que JP tirou de letra a mudança, logo fez novos amigos, e está super bem entrosado. Provavelmente o medo nem dele era, e sim de sua mãe, que no fundo é mesmo uma medrosa!

sábado, 24 de março de 2012

Tempo de faxina

Cansada da bagunça, resolvi arrumar meus papéis. Comprei pastas de arquivos, etiquetas, enfim, tudo para me tornar uma pessoa organizada. Deixei a TV no show da Maria Rita, acendi um incenso e mãos à obra. Queria arquivar contas, jogar fora tudo que já não tinha serventia, separar os documentos importantes. Tenho pastas e mais pastas com papéis jogados a esmo, que sobreviveram a pelo menos três mudanças de endereço. Mais do que na hora de por ordem no caos. Bom, a arrumação não chegou nem à metade e já perdi a conta de quantas vezes parei para chorar, me emocionar, sorrir e lembrar. No meio das contas (todas pagas, ainda bem), encontro com certidões: de nascimento, de casamento,separação, de óbito. Pausa para enxugar lágrimas. Fotos soltas, de momentos já esquecidos, de um passado já tão extenso. Cartas, umas poucas cartas de amigos que  não tenho como rever, fazendo com que me lembrasse um pouco da jovem que um dia fui. Mensagens, cartões, escritos do meu pai, que me levaram ao seu livro, que me atrapalhou o trabalho, que me fez chorar de novo. E ler para meu filho pedaços do  que este avô escreveu para um neto que já era amado muito antes de nascer. Mais lágrimas, desta vez acompanhada. Exames médicos, carteirinhas de vacina, mais alguns documentos esquecidos. Histórico escolar, que boa aluna fui. e de volta às contas, dezenas delas, nossa, quanto consumo! E, no meio de tudo isso, encontro um tesouro que julgava perdido, um roteiro de viagem feito pela minha mãe há uns 15 anos, quando fui para a Europa com um grande amigo. Dia 1, dia 2, tudo detalhado, escrito com tanto capricho, com dicas e conselhos inestimáveis, tanto amor em um simples pedaço de papel. Papel que quase se perdeu no calabouço do Les Invalides na´Paris de 1996, e foi resgatado por um guarda mal humorado. Merci! Peguei este tesouro na mão e minhas lágrimas suaves se transformaram em um choro forte, cheio de saudade e gratidão! O show da Maria Rita terminou, a noite já vai longe, a mesa continua abarrotada de coisas. Meu coração está leve e pesado com estas lembranças, mas feliz por ter vivido tanto, amado tanto e sido amada desta forma. Feliz por já ter andado tão longe, conhecido tanta gente, mudado muito, mas ainda assim, sempre ter carregado a certeza deste amor que tive e tenho, do porto seguro destes pais, desta família, que me deram, e dão, tanto, muito. Um pouco surpresa de ver que uma simples faxina pode mexer tanto com a gente. Quanta vida já passada, ufa! Mas vamos lá, não dá para parar agora, é preciso ir até o fim, organizar papéis e recordações, abrindo espaço nos armários e na vida, para que venham mais, muito mais!

domingo, 18 de março de 2012

Caminhando...

Quantos são os caminhos, apenas um, dois, dez, infinitos? Quantos desvios podemos tomar, quais são as rotas, as retas, as curvas que iremos enfrentar? Será a estrada longa, ou teremos um atalho? Estará o asfalto em boas condições ou precisaremos desviar de buracos? Existirão sempre pontes, ou não? Será um caminho de fácil caminhar, ou andaremos aos tropeços, aos pulos? Seguiremos sempre em frente, ou voltaremos sempre atrás? Será a paisagem que nos acompanha bonita ou feia? E a companhia no caminho, quantos iremos encontrar?  Um, dois, três? Certo é que não caminharemos sozinhos. Será? Mas quem?  Quem irá nos acompanhar? Quem ficará para trás, perdido nas curvas do caminho e do tempo? Quem será resgatado mais adiante, em outra curva, em outro tempo? Quem estará sempre junto, mesmo que já não possa mais caminhar, que tenha tido sua estrada abreviada, por uma ou outra razão? Quantos, como, quem? Não sabemos. Sabemos apenas aquilo que nos diz a canção: é caminhando que se faz o caminho." E o caminho faz o caminhante.

sábado, 17 de março de 2012

Errando e aprendendo

Li um artigo na excelente revista Mente Cérebro cujo título era " Porque é tão bom ter razão ?". O artigo comenta o prazer que sentimos ao nos sabermos certos, seja em relação a um assunto insignificante, seja em relação a uma descoberta científica.  Não importa, a sensação é a mesma.  Sensação inversa à que temos quando percebemo-nos errados. Fala da sensação de se perder o chão, da dificuldade em se admitir ou reconhecer-se o erro, até mesmo da falta de uma categoria mental chamada "erro". Faz referência a como, na visão coletiva, o erro está associado à ignorância, incapacidade, despreparo, até mesmo degeneração moral. E comenta que este é o nosso maior erro, o "metaerro", pois a capacidade de errar é crucial para o desenvolvimento cognitivo. É pelo erro que aprendemos, é através do erro que nos tornamos humanos, que desnvolvemos empatia, entre outras qualidades essenciais. É através dele que desenvolvemos habilidades, que tornamos possíveis as mudanças. O artigo traz o paradoxo cultural em que vivemos, uma sociedade que despreza qualquer tipo de engano e, ao mesmo tempo, prega que ele é parte fundamental da nossa vida, afinal,"errar é humano".
Mas o que mais me chamou atenção em tudo isso foi  o conceito de que só é possível errar quando estamos alheios ao erro. O engano, enquanto engano, é inconsciente. Só nos damos conta dele depois.. Daí a expressão "eu estou errado" ser uma impossibilidade lógica, pois quando reconhecemos o erro, não estamos mais errados.("reconhecer a crença como falsa é parar de acreditar nela").
Li sobre o Princípio da Incerteza de Heinsenberg para o erro : "podemos estar errados, ou podemos saber disso, mas nao é plausível fazer ambas as coisas ao mesmo tempo."
 Uma afirmação tão simples , que imediatamente reconheci como verdadeira, e me fez pensar que este reconhecimento torna mais fácil o perdão. O perdão a mim mesma pelas escolhas erradas, pelos enganos cometidos, pelos erros do passado. E o perdão ao outro,  que pode ter nos machucado, magoado, enfim, errado de muitas maneiras. Ele não sabia. Eu não sabia. Eu estava errada. Não estou mais. Por enquanto.

sábado, 10 de março de 2012

A parte que nos cabe


No exercício de minha profissão ( médica há 16 anos),  me deparo diariamente com histórias e situações as mais diversas, sejam elas divertidas ou tristes, muitas vezes inusitadas, na maioria comuns. Dores, angústias, dúvidas, alegrias, um sem fim de rostos e personagens e vidas que passam de uma forma ou outra a fazer parte da minha própria história.
Ontem pela manhã atendi um senhor de seus 50 e poucos anos que estava fazendo exame admissional para trabalhar em uma indústria, contente após longo período em casa, sem emprego. Gordinho sem ser obeso,certamente acima do peso. Durante a consulta, pergunto sobre uso de medicações. "Ah, uso um comprimidinho para diabetes, doutora". Mais alguma coisa, seu fulano? "Sim, outro pro colesterol, que é um pouquinho alto, a senhora sabe..."Sei, sim, e a pressão, o senhor não tem pressão alta? "Ah, sim senhora" E a medicação?" Tomo aquele comprimidinho pequeninho que dão no posto, tinha que tomar 3 vezes ao dia, mas só tomo â noite, não sinto nada". Resultado: ao medir a pressão do senhor fulano, taxas extremamente altas." Mas como, doutora,etc etc...". Exame pendente, encaminhamento ao cardio, orientações e o sonho do tão esperado emprego, adiado.
Conto esta história porque é muito comum, com pequenas variações. E todos, absolutamente todos querem saber " como"? Ora, como? Esquecendo a parte que cabe a cada um de nós, e que determina em mais de 95 por cento o tipo de pessoa que somos e a saúde ( ou falta dela) que temos. A vida que levamos, a comida que comemos, o exercício que fazemos ou deixamos de fazer, a orientação médica, nutricional, emocional que seguimos, tudo isso determina nosso destino físico e espiritual. É cada dia mais frequente e comum o modelo paternalista que se estende também à medicina, onde os pacientes chegam "à espera de um milagre". Eu sei, mudanças são dolorosas e difíceis, mais fácil é conseguir o remedinho ( para emagrecer, para dormir, para alegrar, para comer, para quase tudo...). É muito mais cômodo culpar o médico ( que  também tem culpa por perpetuar esse sistema) do que tomar atitudes positivas e pro ativas. Informação não falta . Falta vontade. Vontade política, vontade institucional e principalmente, vontade própria, individual, de mudar o jogo e ganhar em saúde. Parar de perguntar como, e descobrir o porquê.

Dani Altmayer