segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Sem Paradas



  O ônibus está lotado, que saco. Tinha esperança de viajar sozinha, mas, pelo tamanho da fila, nem pensar. Dezembro. Faz calor na rodoviária suja. Entrego a passagem ao motorista, e procuro meu assento. Bem no fundo, comprei de última hora. O bom é que não para no caminho. Vai direto.
  Pouco depois, minha companheira de viagem chega, esbaforida. Quase perdeu o ônibus, me diz. Não estou com sorte, mesmo. Penso, mas não falo. Ao menos é magrinha, uma mulher pequena. Não vai ocupar muito espaço. Ela está na janela, eu no corredor.
  Senta e começa a mexer na bolsa. Fico desviando de seus cotovelos, enquanto ela escava seu território. Acha o celular, liga para a prima, para a mãe, e a prima de novo. Repete a mesma história de como o trânsito é louco nesta época do ano em Porto Alegre, de como quase perdeu o ônibus, de como está precisando de uns dias de descanso, depois de tudo. Não, não viu mais o Carlos Eduardo, graças a Deus. Aquele filho da puta. Sim, está indo bem, dadas as circunstâncias. Não sabe a que horas vai chegar, liga da Junção.
  Desliga, e começa a jogar Candy Crush, com som. Apoia o cotovelo na divisória entre nossos bancos. Eu afundo meus olhos no livro, com meus braços colados ao corpo. Só mexo as mãos, o mínimo necessário. Não gosto de ficar encostando, me dá agonia. O ar condicionado está um gelo, ainda bem que eu trouxe um casaquinho. Faço uma ginástica para vesti-lo, sem usar os braços.
  Ela pede passagem para ir ao banheiro, na volta pisa no meu pé. Pede desculpas, é apertado ali. Está acostumada a viajar na classe executiva, mas este ônibus não tinha. Bem mais espaçoso lá, e dão um copinho de água. Até vale pagar quase o dobro. Concordo.
  Ela senta, logo depois o telefone toca: "pre- pa -ra." Levo um susto, estava quase cochilando.  É o Carlos Eduardo, dá para acreditar? Aquele, mesmo. Depois de todo este tempo. Esquece, ela tá em outra. Não interessa, ela não quer ouvir. Não quer saber, a Martinha que se exploda. Fica com ela, faz bom proveito. Casa! Bate o telefone na cara dele (modo de dizer), e começa a chorar. Finjo que durmo, mas ela começa uma nova exploração na bolsa. Quer um lenço, não acha, e me cutuca. Não sou o tipo de mulher que anda com lenços, desculpa.
   Ela  limpa o nariz na manga da blusa, funga bem alto, e liga para a Júlia. A Júlia não acredita que o Carlos Eduardo apareceu, depois de todo este tempo. É verdade, posso confirmar. Logo agora, que ela estava se recuperando, ia tirar uns dias na praia, ficar longe de tudo. Por que é sempre assim, quando a gente tá bem? Hein? Parece que eles tem um radar, os filhos da puta.
  Acabou a bateria, no meio da conversa. A tomada do ônibus não funciona, nem a internet a bordo. Ia tentar um Skype. Ela desliga o tablet, conformada. Guarda o celular.
  Pede licença para pegar a mochila, que está acima dos bancos. Tira dali uma lata de coca, e um pacote de salgadinhos com cheiro de vômito. A coca está quente, ela derrama um pouquinho. Procura os lenços, não tem, nem eu. Oferece um salgadinho, não, obrigada. Tenho intolerância ao glúten. Ela me olha, espantada, e diz: nem parece!
  É noite já, sou obrigada a tirar os óculos escuros. Não consigo ler, com esta luz fraquinha. Olho para ela, de canto. Estou enjoada com o cheiro, do salgadinho, e do perfume doce. Não digo nada. Ela, quando fica triste, precisa comer. Sem parar. Ansiedade, né? Para provar isso, abre um pacote de Bis. Eu até gostaria de um ou dois, mas ela não oferece, desta vez. Come todos.
  Com a boca cheia, conta a saga do Carlos Eduardo, aquele. Eu quero dormir. Coitada, passou por tanta coisa. Não foi fácil, tanta decepção. Homens, né? Todos iguais. Agora está ali, renascida das cinzas, uma, qual é mesmo o nome? Fênix, isso mesmo. Pronta para outra. A prima vai apresentar um amigo, e tal. Parece que o Carlos Eduardo sentiu o cheiro, impressionante. A volta dos mortos vivos, me diz. Não é justo, concordo. Sim, eles tem um radar. Concordo.
  Estamos chegando, ela pede meu celular para ligar para a prima. Vai descer na estrada, a outra vai buscar. Muito querida, esta prima, a Carmen. Está ajudando nesta fase difícil. E aquele filho da puta enchendo o saco de novo. Não lembra o número da Carmen, mas tem anotado, em algum lugar. Recomeça a escavação da bolsa. Telefona para a prima, adivinha, guria, quem ligou?  Deixa a moça curiosa, quer contar pessoalmente. Escova os cabelos, retoca o batom. Coloca (mais) perfume. Desvio, mas borrifa um pouco em mim. Espirro.
  Antes de sair, diz:
- Olha, obrigada pela força. Você foi um anjo de me ouvir.
  Concordo.
- Tão bom a gente poder dividir um pouco, né? Quase não tenho com quem falar.
  Suspiro. Penso no Carlos Eduardo.
  Ela me abraça com força, e se despede.
  Percebo, então, que não consigo mexer meus braços. Vou precisar de ajuda. Grudaram.

Dani Altmayer

sábado, 19 de outubro de 2013

Sem piedade


Na avenida, carros andam mais lentos do que prédios.
Edifícios crescem, velozes, feito truque de cinema.
Brotam do chão, antes plantas.
Gigantes espelhados, de concreto armado.
Onde era vazio, ou casa, ou apenas nada. 
Surgem de lugar algum. Pré moldados.
Vingam da pedra, intrépidos, ligeiros.
Empilham-se, andares e vidas.
Compartimentam-se flores, e dores, em imensas sacadas.
Fechadas.
Perdem-se de vista, na vista de outras janelas.
Suspendem-se jardins, e alegrias.
Progridem acima, ao alto, avante.
Competem com coqueiros, em altura, e passarinhos.
Arrasam com canteiros, e sonhos, e amores quase perfeitos.
Entalam risos e canções, e cadeiras na calçada.
Engaiolam-se, em torres, vizinhos de elevador.
Acomodam-se, inquietos, sujeitos.
Enjaulam suas solidões sem sol.
Na modernidade de vidro e de lata,
Faz frio, faz calor.
O asfalto arranha a garganta.
E a cidade, arranha o céu.

Dani Altmayer

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Quem ri por último


Ana arruma a mesa pela décima vez, Paulo desconfia:
- Que neura é essa, mulher? Até parece que quem vem jantar é a rainha da Inglaterra.
Ela quer que fique tudo bonito, como na casa da Lúcia. Mais bonito, até. Olha para o vaso de flores. Nunca pensou que flores do campo fossem tão caras. Paciência. Não ia perder para a outra.
- Você colocou a cerveja no freezer, Paulo? Não quero oferecer cerveja quente.
- Ana, relaxa, é só o Fábio e a Lúcia. Eles são de casa, tá tudo no controle. Você tá gostosa, hein?
Ana confere mais uma vez sua imagem no espelho: vestido curtinho, florido, sandália de salto, o cabelão lindo, santo alisamento. É, tô gostosa, concorda. Pensa na Lúcia, deixa escapar um sorriso. Tão sem sal.
Vai na geladeira, pega uma cerveja, e serve dois copos.
- Pra esquentar.
Como é bom ter a casa sem as crianças, para variar um pouco. Só o som da TV, na novela das oito. Nem está assistindo. Quando as visitas chegarem, vai botar uma música. Já separou os CDs. Nada muito romântico, para não dar bandeira. Coisa suave. Um pagodinho, a Paula Fernandes, o Diogo Nogueira. Fábio gosta. Tão diferente do marido, entende de música, de livro. Fala até uns poemas. Tem assunto, sabe conversar. Deve ser porque é casado com uma professora. A Lúcia dá aula de português. Sem graça!
Paulo sabe falar de carro e de futebol. Os dois trabalham juntos, o Paulo e o Fábio, há anos. Em uma revenda de automóveis. O Fábio é gerente, o Paulo mecânico. Jogam futebol todo sábado. Esta é a primeira vez que vem jantar, fora o aniversário do Júnior, ano passado. Ana caprichou na lasanha. Fez até uma salada verde, o Fábio gosta. Paulo não come verdura, só carne, e massa. Por isso a barriga, depois reclama.
Estão atrasados, Ana fala que a culpa deve ser da obra no viaduto. Anda tudo trancado para aquelas bandas. Deixa escapar um suspiro. Está nervosa, a Lúcia deixa ela nervosa. Ainda mais agora. Tudo bem, vai dar tudo certo. O Paulo nunca vê nada, mesmo. Depois da terceira cerveja, só fala do Grêmio. A Lúcia, coitada, não fede nem cheira. Nem bebe, é quietinha. Duas pessoas tão diferentes, o Fábio e a Lúcia. Casados há quinze anos, sem filhos. Vai entender.
- Está quente aqui, vou ligar o ar.
- Não, mulher. Pra que gastar? Abre a janela, deixa entrar a fresca da rua.
Pão duro, como sempre. Um chato. Mania que tem de chamar de " mulher". Ana vai até a janela, abre a cortina, vê o carro do Fábio. Estão chegando. Sente um arrepio na espinha, ao ver o Fábio descer, de bermuda e camiseta preta, cabelo molhado. Todo cheiroso, delícia de perfume. Comprara até um igual para o Paulo, mas não ficou a mesma coisa.
Lúcia dá um beijo na Ana, entrega um pote de sorvete. Sobremesa, diz ela. Está diferente, mais bonita, deve ser o vestido soltinho.
Fábio disfarça, não chega nem perto. Está esquisito.
Alcança uma garrafa de champagne para o Paulo, que estranha:
-Onde é a festa?- pergunta.
Fábio não fala nada, baixa os olhos. A Lúcia é quem responde, radiante:
- Para comemorar com vocês, agora podemos contar. Estou grávida, de doze semanas! É uma menina, como o Fábio queria. Vai se chamar Vitória.
Olha em volta, e sorri. Elogia:
- Nossa, Ana, que beleza! Até parece que você sabia...  adoro flores do campo, minhas preferidas. Uau, esta mesa está linda mesmo. Arrasou!
Ana fecha a janela, liga o ar. Está muito quente, ali.

Dani Altmayer
( exercício para Oficina Escrita Criativa- módulo II- "Realismo sujo" )

domingo, 13 de outubro de 2013

A Nossa Música Nunca Mais Tocou


 Outro dia eu li uma frase: "a verdade só dói em quem está vivendo uma mentira."Fiquei pensando nisso. Se a mentira é uma doença, a verdade é que nem injeção. Dói muito na hora, depois fica ardendo um pouquinho. Então passa, e você fica curado. Livre.
 Hoje eu fui ao cinema, sozinha. Lá, onde a gente se encontrou da primeira vez, porque você sabe, eu não gosto de shoppings. Quando o filme acabou, o tempo estava lindo, e tomei um choque de realidade. Sair da escuridão de uma história fantástica para a claridade do dia me assustou. Fiquei meio tonta, e decidi ficar um pouco, para me ambientar. Não foi de propósito, mas sentei na mesma mesa em que sentamos. Tomei a mesma água. Fiquei observando as pessoas, o lugar, tomando notas no meu caderninho, sobre o filme que acabara de ver. Queria comentar com você. Eu ainda quero comentar tudo com você, força do hábito. Fotografei com meus olhos a lembrança dos teus. Tudo ali é a tua cara. Precisei ir embora.
 Peguei um táxi para voltar, ele pediu a direção. Disse a ele que fizesse o mesmo trajeto daquela vez. Queria fazer o caminho de volta. Não tocou a mesma música, nem poderia. A música era secreta, como a gente. O rádio estava ligado, e tocava Caetano. "Todo dia ela faz tudo sempre igual... " Não teve este tempo para nós.
 Cheguei em casa, e ninguém me beijou. Não era noite, mas dia. Chorei um pouquinho. Não me importei, chorar me faz bem. Não foi choro de dor, nem alegria. Foi de ardência. Uma lágrima cai sempre que uma ilusão é perdida.
No entanto, hoje você esteve comigo, como se fosse real. Foi minha companhia. Talvez pela última vez. Talvez ainda não. Mas logo, é certo, você será a mais doce lembrança. Você, meu querido engano, será ausência. Aceito, acredito, e quero.
Não se preocupe, eu entendi. A injeção foi bem aplicada. E vai fazer efeito. Já está fazendo. Mais cedo, ou mais tarde, não interessa o tempo, eu vou me curar. Eu espero

Dani Altmayer

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Caraminholando

 Não dirijo. Não tenho carro. Uso bicicleta, ônibus e lotação para me locomover. Mas não me queixo, gosto de ser passageira.
 Apesar de viver correndo, não tenho pressa. Minhas ideias costumam surgir nestes momentos solitários, no tempo que gasto me deslocando daqui para lá. Ou de lá para cá. São instantes de devaneios, pensamentos perdidos, uma espécie de sonolência criativa. Um tempo para caraminholar. Bom, às vezes até durmo, mesmo. E sonho, quando estou precisada.
Nenhum lugar é melhor do que a rua, para ver a vida como ela é. Para observar, e ouvir, cada coisa. Acontece de tudo, na calçada. Às vezes, acontece comigo.
 Hoje, por exemplo. Estava eu, na esquina de casa, esperando a lotação. Numa boa, curtindo o solzinho. Distraída, não vi ele chegar. Um homem, como qualquer outro, loiro, de seus cinquenta anos, um sorriso bonito. Chegou falando:
 " Não sei se compro uma kitnet na rua Joana Angélica, perto da lagoa. 
    Ou uma casa. Casa tem que ter cachorro, sabe. Eu gosto de cachorro. 
    Eu gosto de tudo. Sabe por quê?  Não sou invejoso. Consequentemente, não sou recalcado. 
    Engraçado, estou aqui falando contigo, e é como se eu te conhecesse há anos. E olha que eu não bebo. Nunca bebi.
     Bom, vou indo. Ah, Feliz ano novo! -com uma risadinha, justifica: -é que eu sou judeu. E nosso ano novo é por agora, cinco mil e tantos anos."
  Já longe, no meio da rua, grita: "tiau gata. Agora escancarei, hehe. Tiau, gata."
  Não falei uma palavra, ele falou sozinho.
  Quando ele se foi, puxei meu bloco de ideias da bolsa ( sempre ando com um, nunca se sabe), e transcrevi o "monólogo" na íntegra. Tal e qual.
  A lotação chegou em seguida. Veio rápido, até. Às vezes demora muito, dá para fazer duas viagens, ou mais. Sem sair do lugar.
  É... De carro ganha-se tempo, não resta dúvidas. Mas perde-se um bocado da diversão.
  Fazia tempo que ninguém me chamava assim, talvez anos. Gata. Já pensou? Que bom que ele não bebe, nunca bebeu.
Ainda bem.

Dani Altmayer



domingo, 6 de outubro de 2013

Oração

Te quero perfeito, imperfeita que sou.
Falo que tenho fé, que tudo vai se ajeitar, que o que tiver que ser será. E tenho medo da minha sombra.
Digo que amo, que amo muito, mas não sei amar sem esperar. E para mim, isso não é amar.
Grito que me importo, mas fecho os olhos para não ver alguém chorar.
Canto uma música, leio uma história, cito coisas, recito. E tapo os ouvidos para não ter que escutar.
Escuto, mas não ouço. Não entendo. Mudo o significado, se me convém.
Peço, muito, peço errado, peço assim. Peço para mim. E nem sei aceitar.
Porque fui ensinada, agradeço. Obrigada, sim. Mas não reconheço.
Todas as linhas tortas por onde escreves, onde vivo a me equilibrar.
Onde tropeço, tantas vezes, e te troco por um osso, uma cachaça, uma droga qualquer. Sou vira latas assumida, faminta e carente. Infiel.
Você me dá um pouco, dá muito, e tira um tanto. Tem seus motivos. Você me leva para dançar. Convida para brigar. Eu avanço e recuo, sem saber onde tocar.
Você me mostra um milhão de razões para acreditar.
Mas basta uma só, e eu volto a duvidar.
Se me deito em teus braços, tenho paz. Tenho lar. Se abres teus braços, fico braba, me deixo escapar.
Te dou tantos nomes, te chamo de tudo, nenhum satisfaz. Nenhum me seduz.
Tenho mil perguntas a fazer. São tantos porquês.
No entanto, eu sei. Você não vai me dizer. Tem este jeito estranho, indireto, sutil, de não responder. De mostrar sem falar, o que preciso saber.
Nem sempre eu consigo enxergar, e peço perdão. Por desconfiar.
Na luz é fácil te ver. No sol, na cor, no calor do verão.
O problema é na sombra. Não vejo bem, no escuro. Quando é inverno, e faz frio, mal consigo lembrar.
Quando a noite demora, tenho dor. Onde está você, então?
Te procuro nas ruas, calçadas e becos. Te procuro na gente. Nas coisas do mundo, e de fora daqui. Te acho, me acho, me perco. Te perco, admito.
Sou inconstante, te quero e me afasto. Te busco aos pedaços. Tapo buracos com purpurina.
São muitos os furos, e eles nunca terminam.
Sou insistente, entretanto. Há tempos te amo. Amigo, desculpa o mal jeito, este amar imperfeito. Este amor que espera. Amor não espera.
Mas sou persistente, não vou desistir. Hei de aprender.
Aqui, ali, você está em todo lugar. Onipresente.
No fundo, eu já sei. Você nunca falhou. Eu, sim.
Te persigo bem longe, em desvios, atalhos. À toa.
Você já mora comigo. Alento, atento. No silêncio profundo.
Na prece que não sei dizer.
No poema que teimo em escrever.
No ar que sorrio. Na inspiração.
Em qualquer vão. Lá fora, aqui dentro.
Em tudo, em todos, em mim. Enfim.

Dani Altmayer



quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Vamos Combinar: Se eu não te vejo, você não existe .



Quando o parque de diversões chegava na cidade, era uma festa. Roda gigante, cinema 360 graus ( grande inovação tecnológica dos anos 70), maçã do amor, e a atração principal: o trem fantasma. Eu era pequena, e morria de medo, mas nunca deixava de ir. O melhor de todos os brinquedos. Tinha sempre fila para o frio na barriga, a gente vibrava na antecipação do susto.
Todas as vezes, sem falhar nenhuma, eu ia de olhos fechados. Do início ao fim. Todas a vezes, durante todo o percurso, sempre mesmo. Tenho que confessar que nunca, em todos aqueles anos, eu abri meus olhos no túnel. Nem para dar uma espiadinha. Mas gritava o tempo todo, e saía sempre apavorada.
Tudo o que eu tinha eram algumas sensações. Teias de aranha, gritos horrorosos, clarões de luz. E, claro, a minha fértil imaginação. Nada mais do que isso.
Outro dia, conversando sobre o assunto, cheguei a uma conclusão óbvia, embora um tanto tardia: o medo só era possível de olhos fechados. Provavelmente, se eu decidisse abri-los, a surpresa seria o riso, ao invés do susto. Com certeza, nenhum monstro, naquele parque meio falido, naquela cidade pequena, chegaria aos pés daqueles que só eu conhecia. Que só existiam dentro da minha cabeça, frutos da minha própria criação. Afinal, o escuro desaparece quando a luz se acende, né? Nenhum monstro resiste a uma boa encarada.
Quantas e tantas vezes, bem mais tarde, mas ainda feito aquela criança, fechei os meus olhos por covardia. Por não querer enxergar. Ainda hoje faço isso. Nunca funcionou, nem vai, e acho que sei o porquê.  
Como naquele trem, a vida que levamos de olhos fechados é a única capaz de meter medo de verdade. 

Dani Altmayer

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

A Benção, Madrinha


   
A campainha soava estridente, insistente. Quem poderia ser, tão cedo? Silvana levanta-se da cama, relutante, calça os chinelos e arrasta-se até a porta. Maldito vinho francês, não devia ter bebido tanto ontem, que dor de cabeça infernal.
- Sua piranha!- Marina empurra Silvana, e entra na casa, aos berros. Tem as bochechas ainda mais vermelhas do que de costume, e os olhos parecem  que vão saltar da face, como molas de desenho animado. Está desfigurada pela raiva.
- Como você pôde, sua puta? Vadia, sem vergonha, filha de uma égua! 
Sem dar chance de Silvana responder, Marina joga um porta retratos na parede, esfacelando o vidro em um milhão de caquinhos. A foto do seu pai, e não era uma moldura qualquer não. Comprara num antiquário, em Praga.
- Sua vaca, amiga da onça, traidora! 
Marina agora pega o elefante indiano da sorte, que ficava com o rabo virado para a porta, de modo a atrair boa fortuna, e o joga contra Silvana, que desvia, e deixa estatelar -se no abajur inglês que fora de sua avó.
Nada pode conter a fúria da amiga. Silvana logo percebe que o melhor a fazer é ficar fora do caminho da outra. Procura com os olhos o celular, pensa em chamar o porteiro, mas desiste e tranca-se no banheiro. Senta para  fazer xixi, a cabeça entre as mãos, ouvindo os sons das coisas sendo quebradas, destruídas pelo desespero da amiga. Tem vontade de chorar, mas não chora.
Nunca pensou que Marina pudesse chegar a este ponto. As duas se conheciam há mais de 20 anos, são amigas desde a faculdade. Foram madrinhas de casamento uma da outra. De batismo dos filhos uma da outra. Das duas, Marina sempre fora a de temperamento mais tranquilo, dócil. Agora isso.
De repente, silêncio. Silvana espicha o ouvido, tentando adivinhar. Nada.
Com muita cautela, abre a porta e se dirige para a sala, onde Marina chora, encolhida num canto, em meio aos escombros das caras lembranças. Chora e soluça, mas sem fazer ruído. Não emite nenhum som. Parece um estranho filme mudo. Como no dia seguinte a uma grande catástrofe, à explosão de uma bomba, o silêncio pesa. Espectral, antecipatório. O começo do fim.
Silvana chega bem perto, senta no chão, e abraça Marina com certo receio. Esta se deixa envolver pelos braços da amiga, e sussurra, em meio às lágrimas:
-  Você ficou louca? Ele só tem 19 anos, Silvana. Uma criança.
Sem dizer nada, Silvana balança a cabeça, e pensa: você está enganada. Ele é um homem, Marina. Seu filho é um homem.

Dani Altmayer
Oficina de escrita criativa-módulo II - Títulos ( outras opções: Amiga da Onça- O Filho Dela)