domingo, 29 de julho de 2018

As vitrines



Dos pequenos luxos, como lavar roupa.
E escrever sobre nadas...
Vai chegando ao fim o belo domingo de sol, depois de tantos dias de céus tristes, emburrados, da cor de coisa alguma.
Hoje foi um dia para tirar o mofo das paredes, aquecer o frio dos ossos, espantar a umidade de dentro.
Duas máquinas de roupas, lavadas e quase secas. Uma alma arejada ao sol quieto da manhã. O frio azul e seco lá fora. O vento gelado que dói o ouvido na beira do rio, faz zumbir uma estranha música de aniversário.
A pedalada solitária, necessária, puxada: meditação. O coração batendo forte. Um desafio e uma afronta à metade de século menos um.
Gente!
Duas malas semi-prontas, abarrotadas de excessos a serem editados. Um outro dia. Na bagagem, como na escrita, é preciso cortar sem pena. (Por mais que pareça importante, e tudo parece sempre importante).
O abraço forte do filho, tão apertado que quase dói, como quase doem todas as coisas que a gente ama com tamanha força.
A música ao fundo, o Chico, sempre ele. Tua cantiga me aperta a garganta, todas as vezes e por uma só razão. Eu te amo, eternamente.
Depois do Chico vem o Caetano, a gente não aprende a esquecer, só a não querer, um dia a gente deixa de querer porque sim e porque tem que ser.
Ele canta a oração ao tempo, esse senhor tão bonito, compositor de destinos, eu adoro essa música, ela é para mim hoje, minha música, amo esse tempo que passa, e me envelhece, mas não amo que ele me envelheça, isso não.
Preparo uma máscara de argila rosa que promete elasticidade e que me deixa por vinte minutos com a cara da cor da doo presidente dos estados unidos, depois me resta a pele macia, ainda com as marcas e os sinais que máscara alguma jamais apagaria, porque não.
Ouço de novo a música, tempo, tempo, tempo, canto junto a oração, faço as pazes com ele.
Já fiz as pazes com ele há alguns anos, desde que me encontrei aqui nesse lugar, nessa mulher. O tempo não me enruga o espírito, pelo contrário, ele o torna cada vez mais flexível, mais forte, mais firme. Inteiro.
Termino o dia numa celebração lenta, taça de vinho, pizza de cebola e gorgonzola, a melhor das companhias.
Chega ao fim outro domingo, começa uma nova semana, inicio mais uma volta ao redor do astro-rei.
(Cada clarão é como um dia, depois de outro dia...)
Que ela venha assim, como hoje. Cheia de sol, porque todos os desejos são de sol, com cheiro de roupa lavada e a certeza de que está tudo bem. 
Tudo em paz.

Daniela Altmayer

Através da parede





 ...sobre amores-fantasma

nas casas em que não entro
me assombra uma pergunta:
eu existo onde não estou?

Daniela Altmayer

domingo, 15 de julho de 2018

Liberdade, igualdade, fraternidade


Hoje pela manhã, enquanto pedalava, ia pensando na minha vida e me veio uma frase aleatória à cabeça: algumas revoluções são silenciosas. Tão silenciosas, que só quando passa um tempo a gente percebe que aconteceram.
Quando acabou a final da copa, eu que ao contrário dos meus vizinhos torcia (sem muito empenho) para a França- por razões bobas como: gosto da língua, amo Paris, uma irmã minha mora na França, ontem foi 14 de julho, um desses motivos que a gente acha para tomar partido, enfim, fim de jogo e de festa, decidi assistir a um talk show que estava na minha lista. Hannah Gadsby- Nanette.
Hannah Gadsby é uma comediante lésbica, nascida na Tasmânia, onde a homossexualidade era crime até 1997. Mas claro que ela é muito mais do que isso, veja por você mesma.
Na primeira meia hora do programa, quando ela fala que vai desistir de fazer comédia, eu parei para fazer um chimarrão e enquanto esperava a chaleira chiar, voltei meu pensamento para a França, não sei porquê. Lembrei de quando aprendi sobre a revolução francesa no colégio, e de como me foi tão mal contada a história que cheguei a ter pena(!) dos monarcas que tiveram suas cabeças decepadas na guilhotina. A meu favor, tenho a dizer que eram tempos de ditadura, filosofia estava longe do meu universo infantil e da minha limitada compreensão humana. 
Só muito tempo depois eu consegui ter um vislumbre diferente de tudo que aconteceu ali, da grandeza daquilo que mudou o curso da nossa história. Ironicamente, ou por aquela coisa chamada sincronicidade, (quem assistiu o programa sabe do que estou falando), pensei na importância da forma como as coisas são contadas, mais ainda, no quanto nos protegemos de pensamentos críticos, por falta de mudar as perspectivas, por preguiça ou medo de pensar por conta própria e assumir o risco.
Fim dos parênteses.
Chimarrão e pipocas na mão, voltei para a Hannah, para entender por que ela queria parar de fazer comédia. Entendi. É que ela quer contar sua história do jeito certo, com princípio, meio e fim, e quando ela fala da infância, e diz a seguinte frase: "Porque o armário só impede que te vejam, não é à prova de vergonha." e continua, falando sobre a criança que foi: "o ódio de si mesma é uma semente que só pode vir de fora", tive que dar uma pausa para deixar o choro rolar solto. 
Quem nunca se encaixou, por um motivo ou outro, pode entender o tamanho dessa dor.
Ela segue dando uma paulada em cima da outra, cheia de sensibilidade, graça, inteligência. Formada em artes, quando fala do Picasso, que ela odeia, diz que ele sofria de um transtorno mental chamado misoginia. E ironiza, dizendo que louco que deve ser odiar o que se deseja.
Fala de sofrimento, força, de resiliência, de feminismo, me diz uma coisa que já aprendi, e que fez parte da minha revolução pessoal, aquela mesma de que falava no início deste texto confuso: a diferença é uma professora.
Uma baita professora, sim. Não só ela, a história também nos ensina.
Eu queria ter nascido pronta, quem não? 
Adoraria ter reconhecido desde cedo a misoginia como um transtorno mental, assim não teria me envolvido em um relacionamento abusivo com um homem doente. Queria ter aceitado de braços abertos desde o primeiro dia quando meu irmão se disse gay, sem qualquer senão ou porém, queria ter sabido antes mesmo de ele precisar dizer. Gostaria ter entendido desde sempre que não ser racista (nunca fui) é muito diferente de ser contra o racismo, conceito esse ainda novo para mim e que tentava explicar para o JP antentem. Me encantaria ter reconhecido antes a sociedade patriarcal, e lutado contra os machismos deles (e nossos) de cada dia. Queria poder dizer que nunca depreciei uma mulher do mesmo jeito que um homem faria, queria ter vindo com o conceito de sororidade tatuado na perna feito minha mancha de nascença. Só que não foi assim. 
(Tanto não é assim, que o meu corretor nem reconhece, troca por sonoridade, ri-se da minha teimosia sublinhando de vermelho essa estranha palavra.) 
Tudo que aprendi veio com o tempo, veio bem tarde (nunca tarde demais), algumas vez por amor, a maioria das vezes. Em outras, veio com muita dor. Não caiu do céu, nada cai, fora avião e chuva. Foi uma construção. Está sendo ainda, e acho que vai ser sempre, essa revolução silenciosa e lenta a que me referia.
Ou seria, evolução?
A Hannah me cativou, me fez rir, chorar, parar para pensar, me deixou emocionada na tarde desse domingo azul.
Ela fala que entender o passado é um dom, e diz que rir não é o melhor remédio. Nem a raiva é a solução, ouçam:
"O que cura são as histórias." 
Eu acredito nisso também. A minha história é a sua, e vice-versa. 
E alguém já disse antes: todas as histórias importam.

Vale muito a pena, nos conhecermos. De verdade.

Daniela Altmayer

quinta-feira, 12 de julho de 2018

Carta para Isabella 7


Numa terra distante,
numa pequena grande ilha,
entre príncipes e princesas, 
vive uma menina valente.
Ela é muito importante.
Para mim, 
Ela é mais importante que a rainha
da Inglaterra.

O nome dela é Isabella.

Há seis anos ela chegou,
E fez do mundo um lugar mais bonito,
Mais colorido e mais divertido.
Ela chegou e já foi tomando posse,  
Sem a menor cerimônia
Não de um castelo, 
isso até que não.
Ela logo se tornou
foi dona, soberana 
do meu coração.

Dear Bella,
Quando tu fez 4 anos eu escrevi uma carta falando do meu amor cor-de-rosa. Porque essa era a tua cor favorita naquela época. Agora fiquei sabendo que tu gosta muito de cinza, e eu adorei saber disso, porque cinza é minha cor preferida também, junto com azul. Fiquei pensando em como a gente vai mudando com o tempo, e que bom que a gente muda. 
Faz um ano que nós não nos vemos, mas eu sei que esse ano que passamos longe foi muito legal, tu aprendeu um monte de coisas novas, aprendeu a ler, a escrever, fez vários amigos, viajou, cresceu. 
Acompanhei aqui de longe teu primeiro ano na escola, tuas aulas de teatro, macaquinha linda, super talentosa.
Fiquei toda orgulhosa e comovida com os teus boletins que sempre falam da guria inteligente, sensível e corajosa que tu é. Eu já sabia que tu era. Sempre soube.
Ontem eu recebi uma mensagem tua dizendo que queria que eu estivesse contigo no dia do teu aniversário, e meu coração se encheu de amor e de saudade, de vontade de estar aí para te dar muitos beijos, abraços e presentes, festejar contigo esse dia tão especial. 
Mas não fiquei triste, não mesmo, porque logo vamos estar juntas, e vamos nos divertir muito, tenho certeza.
Meu amor por ti é gigante, ainda maior que esse oceano enorme que nos separa. 
E é ele que nos liga e conecta, para sempre. Forever. Em qualquer lugar.
Bom, enquanto não chego, mando o nosso querido amigo senhor esquilo para te dar um abraço de urso, bem grande e apertado, cheio de carinho. 
Mando ainda, um recado por ele: 
Seja feliz, meu anjo.
Minha menina dos olhos azuis de poesia.
Acredita muito em ti, na tua força.
Na tua cabeça e no teu coração.
Acredita nos outros também, se possível.
Ame todas as cores, mude quando precisar.
Seja tudo que tu sonha, tudo que tu quiser: não existe limite para ser.
Menos ainda para sonhar. 
Happy birthday, my love
See you soon
xxxxxxxxxxxx
tiDani
senhor esquilo abraçando a Bella

domingo, 8 de julho de 2018

"A felicidade de ser triste"

"Melancolia é a felicidade de ser triste."
         Victor Hugo


Amanhece com o coração apertado como quem espera más notícias, como se o vento frio que assobia pelas frestas do velho apartamento fosse o prenúncio de um longo inverno, as mãos geladas abraçam a xícara de café amargo, o cinza desses dias penetra pelos ossos úmidos e, se a solidão tivesse um nome, seria julho e jamais agosto.
Novas dores substituem as antigas, agora é o joelho que falha enquanto desce a escada sem corrimão, cada escorregada é uma falta a favor da bengala, o cabo de madeira entalhado pretensioso demais para ser guardado no fundo de um armário, ainda assim. Teimosa, se escora pela parede até a saída, como cega tateia o caminho, já não confia.
Uma chuva fraca, garoa feito mágoa e molha a calçada, o guarda- chuva vermelho é forte demais para a pouca água, para a pouca cor desse domingo escuro, ele grita, todo exagero é lembrança de outras coisas vermelhas, mais vivas, mais pulsantes, a memória do sangue, a memória da carne. Da dor.
A rua está deserta, exceto por um mendigo descalço e pelo homem que passeia mais adiante com seu lulu de botinhas amarelas, acha um pouco ridículo, ela nunca gostou muito de amarelo, cor do desespero, a mãe dizia, não combina. Que engraçado isso de combinar, passa-se uma vida inteira tentando combinar, de que adianta agora saber que azul -marinho e preto não combinam, é a mesma coisa que melancia com leite, não faz mal, só é ruim. E mesmo ruim, tem quem goste.
A chuva aperta, o vento vira a sombrinha vermelha, uma quadra é muito longe, puxa o capuz sobre a cabeça branca, a capa preta, a meia-calça preta, a saia comprida preta, a blusa cinza, o casaco quente, as botas de sola de borracha, feias, botas de velha, seguras e antiderrapantes, feias e confortáveis, botas de velha, pretas.
Na parada uma menina de cabelos verdes e fones de ouvido balança a cabeça de olhos fechados, cantando uma dessas músicas sem sentido, ela parece esquisita e feliz, pensa no que a mãe diria, cabelos verdes é ainda pior que uma blusa, uma bota amarela, qual o problema de parecer ridícula, ela devia ter vestido a echarpe florida. Ele gostaria disso.
- É da cor dos seus olhos.
Olhos cor de violeta, que ideia, nunca vira, só vira nos livros, as heroínas dos romances que devorava quando ainda podia distinguir as letras. A manta era cor de violeta, quase roxa, combinava com seus olhos, de novo essa coisa de combinar. Macia, de boa qualidade, tantos anos já fazia, tem coisas que são descartáveis e outras que não. Tem coisas feitas para durar.
Sobe no ônibus quase vazio, a menina verde fica na parada, ela senta num dos bancos da frente e encosta a cabeça na janela. Olha, como fazia quando criança, as bolhas de chuva que formam  no vidro estranhos desenhos e caminhos. Toda vez que tenta adivinhar um trajeto, erra quase sempre. As bolhas, como as pessoas, se desfazem. Não são previsíveis. Desenha ela mesma um coração torto no vidro embaçado, e sorri com a lembrança.
Um homem cheirando a cigarro e umidade senta ao lado dela, a cumprimenta, com tanto lugar vago, ela não quer falar, hoje não, quase nunca. A voz sai com dificuldade nesses dias de chuva. Vira o rosto para não sentir a respiração ruidosa e fétida do outro, que fala do tempo, da copa, de política, assuntos que não interessam, velho é como mulher grávida, só que invisível: não se pertence, ninguém respeita. Finalmente ele se vai, "não fica triste vozinha. Amanhã a chuva para. "
Não é tristeza, não é nada, só um vazio que ela não sabe que nome tem, nem se deveria ter nome algum.
Atravessa a cidade aos solavancos, é quase uma viagem sem fim. Olha os muros brancos, as bancas de flores, as flores de plástico, vai comprar uma rosa para celebrar sozinha esse estranho aniversário. Uma rosa de verdade.
Aperta o botão para descer, a chuva deu uma trégua, levanta os olhos para o céu carregado de nuvens pesadas, pensa numa palavra que eles gostavam, não consegue mais lembrar como se diz. Tinha a ver com chumbo.
Dá de ombros. Tanto faz, as palavras vão envelhecendo e morrem também. Ficam cada vez menos palavras, e as que ficam são cada vez mais simples, talvez mais feias, com certeza mais funcionais: como as botas que ela usa para se prevenir, para não derrapar.
E mesmo assim, não previne. Nada previne nunca.
Ela escorrega de novo. E cai.

Daniela Altmayer

domingo, 1 de julho de 2018

Suavidez




Como a joaninha...

Na palma da mão
(Tão leve, tão breve)
Eu sou teu imponderável.

E você, amor,
É o meu.

DA