sábado, 30 de março de 2019

dois poemas




O porteiro do cemitério

todos os portões
se fecharam
menos um
o principal
fui demitido

é a crise ele diz
tem dia que não entra
ninguém ou perto disso
sabe como é
esses jovens
eles não querem saber
e os velhos
são eles
que morrem
quase sempre

e é por isso
que no meu túmulo
não haverá lápide



   O caderno

vão para o lixo
um beijo uma lua
duas estrelas
um coração
sem uso

todos esses adesivos
que não são colados
quando ainda há tempo

os mais bonitos
ficam sempre guardados
à espera


Daniela Altmayer








domingo, 24 de março de 2019

A cidade que eu vejo






Hoje estava daqueles dias perfeitos. sol, céu com poucas nuvens, essa luz inclinada, dourada, que o outono traz e derrama sobre a cidade, deixando as fotos e a vida mais bonitas, nenhum vento para ir, para voltar, nenhuma resistência fora a do meu corpo, da bicicleta, dos pensamentos, a cidade acordou cedo, na beira do rio um navio se despedia de Porto Alegre, enquanto a gente daqui amanhecia, correndo, pedalando, patinando, andando, desde que vim morar aqui, já faz quase metade da minha vida que eu sei que o porto-alegrense ama um dia de sol, um parque, um chimarrão, uma corridinha, no começo eu era das bandas do parcão, depois fui farroupilha, feirinha da redenção, hoje sou de lugar algum, um pouco de tudo mas quase nada de moinhos e muito do centro, onde passo a maior parte do meu tempo, entre vendedores de guarda-chuvas e compradores de ouro e cabelo, entre ambulantes e artistas de rua, com suas lojas de gosto duvidoso e edifícios de tirar o fôlego.
Há quase um quarto de século convivo com as delicias e as mazelas de Porto Alegre, comemoro suas conquistas como se fossem minhas, mostro a orla nova para meu pai com orgulho bairrista, me entristeço com o fechamento de livrarias de calçada, com a sujeira das ruas, com o mato que cresce sobre a ciclovia, ciclovia que não tem dez anos, e está encarquilhada, craquelado, enrugada como uma centenária, cada dia mais estreita, mal cuidada, cheia de buracos e sem maquiagem, a ciclovia envelhece mais rápido do que eu, do que essa cidade onde escolhi viver no já distante 1994, cidade onde fiz e faço amigos, amor e amores, essa cidade que está de aniversário, tem tão pouco e tão muito para comemorar.
247 anos de vida.

Daniela Altmayer

segunda-feira, 18 de março de 2019

O golpe do amor (?)





Ele a amava, e nós o amamos por isso, apesar de odiar o que ele fez. Eu o perdoo, porque sei que ele fez o que fez num momento de confusão, mas ainda assim, foi por amor. Eu não duvido disso.
Está sem aspas porque não é a fala exata, mas aproximada, de uma das personagens do seriado a que assisti no final de semana. Uma mãe se referindo ao genro que matou a filha porque ela queria o divórcio e a liberdade.
Maratonei essa série no domingo, coisa que não costumo fazer, porque não gosto de ficar tanto tempo refém da TV, me dói o corpo todo e fico sempre com a impressão de que o tempo entra em suspenso, depois se vai, pufff, para sempre perdido, feito um dia que não aconteceu. Só que, às vezes, viro escrava da trama, do personagem, ou mesmo do tédio de uma tarde de domingo, e acontece, como aconteceu.
A série se chama Dirty John, em português tem o subtítulo desnecessário e entreguista de "o golpe do amor."
É uma trama baseada em fatos reais e é a prova de que a realidade é uma baita de uma ficção.
Não é sobre o assassinato ( feminicídio) que mencionei lá em cima, essa é mais uma história paralela. Tampouco é sobre amor, porque o amor não é nada disso, nada daquilo.
É sobre psicopatia, sim. Mas é sobre mulheres, e é sobre cada uma de nós, em maior ou menor grau. Nossas carências, condicionamentos, vulnerabilidade, sobre essa coisa de confundir tudo, de achar que tem que perdoar sempre, que tem que cuidar sempre. É sobre o véu que ainda cobre nossos olhos e que ainda nos faz culpadas mesmo vítimas, faz com que nos culpem, mesmo sendo vítimas, e isso aparece em muitos momentos na narrativa: na voz dos policiais, na voz do cara chamando a ex de louca ( novidade!), na própria voz, na manipulação sutil e nem tanto. Aparece no relacionamento abusivo disfarçado de gentileza, de cuidado, no controle, na dificuldade de ver as coisas sem o filtro COR-DE-ROSA do romantismo inútil, que só nos ilude e nos faz menores.
É sobre crenças, e é sobre o mal. O mal, vestido de PRÍNCIPE, disfarçado de flor ou café da manhã.
Vale a pena assistir, apesar do nervoso que a gente passa. É um alerta, mas também é uma boa história de suspense policial- e psicológico.
Que seria melhor ainda, se não fosse real.


terça-feira, 5 de março de 2019

Reminiscências



Ainda lembro do cheiro do leite quando fervia, e derramava no fogão. Acontecia muito, naqueles tempos de leite de saquinho, em que era preciso ferver para matar as bactérias, um leite aguado que muito provavelmente era mais saudável do que esse pasteurizado- e adulterado- de hoje, enfim, não era a respeito da qualidade do leite que queria falar, talvez nem do leite derramado em si, sobre o qual não adiantava, e nem adianta, chorar. Se bem que nunca vi ninguém chorando por causa de leite, apenas esbravejando. E limpando. Era muito chato limpar leite derramado, uma sujeira danada, o fogão ainda quente, tinha que tirar as grades, passar o pano, queimava os dedos, mais fácil seria prevenir, sempre é, mas e daí? Não adiantava, não adianta avisar.
Tampouco minha intenção era fazer uma metáfora sobre o inesperado, embora ela caiba aqui e num livro de autoajuda, porque o leite só derramava quando você se distraía, e para isso, bastava um segundo. O segundo de pegar a manteiga na geladeira ou o pó do café no armário. Ou atender o telefone, que, naquele tempo, no tempo do leite de saquinho, era fixo na parede. 
A mãe dizia, "cuida o leite." Você ficava horas, talvez minutos, tudo parecia demorar horas na  infância, olhando aquele líquido branco na leiteira sobre o fogão, líquido do qual você sequer gostava, não gosta até hoje, a televisão da cozinha ligada, o leite sempre derramava aos domingos, na hora do Fantástico, e se você, leitor, leitora, não conhece uma leiteira, tenho certeza de que o Fantástico você conhece. Naquele tempo se chamava o show da vida, não sei se ainda é assim. 
Então, lá estava você, criança, pequena, mas grande o suficiente para cuidar do fogão, esperando horas, talvez minutos, que as borbulhas começassem, era preciso desligar ao primeiro sinal de fervura, hoje ferver o leite poderia bem ser um exercício de atenção plena, uma espécie de mindfullness, por que não? -e você se distraía com algum mágico na TV, o clip do Ney Matogrosso, numa briga com o chato do irmão caçula, ou mesmo com nada, porque distração é dessas, acontece, e pronto.
Um segundo, lambança feita, e aquele cheiro esquisito que me fez escrever essa crônica, sem nenhum significado além da lembrança sem nostalgia de um tempo em que cantávamos o hino na escola, tínhamos aula de moral e cívica, um tempo  em que domingo à noite era só o Fantástico, depois dos Trapalhões e antes da segunda, e o leite vinha em saquinhos, precursor das caixinhas, evolução das garrafas que o leiteiro um dia deixou na porta de nossos avós. De carroça.
Nunca vi ninguém chorando sobre o leite derramado. Mas que dava vontade, dava. Dá.
Ainda que não adiante.

Daniela Altmayer