sábado, 17 de dezembro de 2016

Poesia



Bebo tuas palavras com a sofreguidão de quem tem uma sede ancestral, então as sorvo com a delicadeza que elas merecem, como fossem um vinho raro a ser saboreado lentamente, na fragilidade transparente de um copo de cristal, o som puro que vem de ti e tudo mais que adivinho me inebria, aos goles prolongo o prazer, adiando a despedida, e me embriago de ti eternamente, meu poeta, depois te conservo escondido, intacto, na minha mais cruel, impotente e doce fantasia.

Dani Altmayer

Sonhei-te, outro dia.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Papai e mamãe


Abri o computador dele, e num primeiro momento achei que era um site de pornografia. Fazia tempo que a gente não transava, uns três meses entre o final da gravidez e o nascimento da Alícia. Minha gineco inclusive já liberou, mas eu andava tão sem vontade que nem contei para o Artur.
Não estranhei então as fotos de peitos, bundas e bucetas, estava achando normal até perceber que era um catálogo enviado para o email dele. "Vai comer uma puta o filho da puta. "
Fechei o catálogo e comecei a olhar as outras mensagens. Pelos títulos imaginei que ele andara fazendo uma boa pesquisa de mercado. Estava achando meio engraçado, o homem quase nunca queria saber de sexo nem parecia gostar tanto. "Não vai saber o que fazer com essa loira peituda,"pensei com certa tristeza, olhando para a nenê que dormia no carrinho ao meu lado.
Já ia desligar o computador para ele não perceber a cagada que tinha feito (e que eu não tinha o menor interesse em discutir, do jeito que eu andava ocupada com fralda e mamadeira) quando vi um email da Cristiele, filha da minha irmã do meio. Ela tinha passado uns dias com a gente antes da Alícia nascer, veio para prestar vestibular para nem sei o quê. Eu, mais pesada que um hipopótamo, inchada do dedo do pé até a ponta do nariz e num humor do cão, estava era preocupada em montar o berço, lavar as roupinhas, comprar o que faltava. Mal podia comigo e a infeliz andava pela casa toda magrinha, de short e fone no ouvido, não me ajudou a pregar um quadro sequer na parede cor de rosa. O Artur foi quem fez a mão de trazer e levar de carro, e acabou despachando na rodoviária uns dias depois do parto. Eu estava no hospital ainda, porque a Alícia teve amarelão.
O título do email era titio.
Estou chegando na segunda e vou direto para o apartamento. Tudo combinado com o cliente. Me encontra lá depois?
PS -Estou nervosa.
Procurei nos enviados e achei a resposta dele:
Relaxa. Você vai se sair bem. Você é boa nisso.
É só fazer o que combinamos e não esquecer de usar salto alto.
Boa sorte! Passo lá depois para falar com todas vocês.
Voltei para o email do catálogo e examinei com mais atenção as fotos. Além da minha sobrinha de rabo empinado, achei duas alunas bem bonitinhas do Artur que haviam jantado aqui em casa no semestre passado quando ele foi paraninfo e dei de cara com a vizinha do 205 de peruca ruiva e peito de fora. Eu sabia que era silicone... Ah, e a menina da pet shop, essa nunca me enganou mesmo, com aquela boca vermelha enorme. Liguei para o número de telefone que piscava na tela e uma secretária eletrônica de voz sexy atendeu: "O que você procura? Deixe seu recado, entraremos em contato." Engoli um desaforo e desliguei com um grito, acordando o bebê.
Alícia acorda buscando meu peito. Estou só de calcinha, faz calor nessa sala e o ventilador mal dá jeito de um vento morno. Olho minha imagem no espelho, engordei mais de vinte quilos na gravidez, só perdi cinco no parto. Vejo minhas coxas grossas e cheias de estrias, a barriga mole e murcha, e a cabecinha careca com laço cor de rosa perdida como uma azeitona entre meus seios brancos e caídos.
Ouço o barulho da chave na fechadura e desligo o computador abruptamente.
- Oi meus amores. Como vão as princesas do papai?
Ele se inclina para nos beijar a testa. Recoloco Alícia no carrinho e puxo o zíper da sua calça para baixo. Ele me olha surpreso. Do meu mamilo esquerdo escorre um fio de leite, e eu falo com raiva.
- Me come, Artur. Agora.

Dani Altmayer
(texto para a oficina- uma história horrível. Era para ser anônima, mas me identificaram pela ironia...)

sábado, 10 de dezembro de 2016

Liquidação



- É aqui que vendem ideias prontas?
- Sim, temos de todo tipo. As radicais estão em promoção, pode ficar à vontade.
- Vocês vendem fé também?
-  Claro. Aliás, fazemos muito essa venda casada. Ideia pronta e fé cega. Funciona super bem.
-  É fácil de usar?
-  Facílimo.
-  Hum... E empatia vocês têm? Ouvi falar que era bem legal.
-  Ah, isso acabou faz tempo, junto com tolerância e pensamento crítico. Não compensava o custo-benefício, sabe?
- Sei, acho que sei. Se é você que está dizendo...

Dani Altmayer

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Seis de dezembro




Amor...


Se teu corpo tem a chave do meu,
Se teu toque desvela meus segredos...
Se gozar nos teus braços é verter poesia,
Então...
Cada poema que te dou
É só devolução.

Dani Altmayer



segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Respeita minha fé

Mais uma de consultório ...


É sua terceira consulta comigo.Ela tem quase oitenta anos e me conta que está fazendo um tratamento espiritual para a falta de equilíbrio, andou caindo muito nos últimos tempos. "Eu tenho muita fé, doutora." 
Vem para me mostrar exames, e enquanto conversamos ela me dá um santinho de Santo Antônio de Categeró. Diz que vai na capela dele antes do Natal e vai mandar rezar uma missa, e acender uma vela por mim. Que eu tenha fé que ano que vem vou estar com um marido muito bom ao meu lado, " como eu mereço". Santo poderoso esse, foi escravo, não conhecia. Desconfio que ela anda falando com a minha madrasta, mesmo assim agradeço sua preocupação e carinho, renovo sua receita e lhe desejo boas festas.
Antes de sair ela pede para me contar uma história, consultou com uma residente de cardiologia pois sua médica estava doente, e levou uma lista escrita de coisas para não esquecer. Entre elas, ela queria falar da novena que fez para um santo do interior de São Paulo, e que, graças a isso, tinha regulado sua pressão. A médica residente riu, fez pouco caso, mas sacou o celular, pedindo para tirar fotos da sua listinha.
-Doutora, ela queria rir de mim com os outros. Na hora não soube o que fazer, deixei. Ela era tão novinha, mas sem educação.
Perco a hora conversando com ela, e no fim ela conclui: "existem médicos e médicos, doutora."
Eu digo, existem pessoas e pessoas, dona querida. Ela segura na minha mão, olha bem fundo nos meus olhos e diz, profética: ano que vem, pode acreditar! Eu sorrio, achando graça na minha pouca fé e guardo o santinho na bolsa.
Tudo bem.
Achar graça pode até ser inevitável. Ridicularizar e desrespeitar é que não pode. Nunca.


Dani Altmayer

domingo, 4 de dezembro de 2016

Cúmplices



Dois únicos no universo,
Despidos de todas as máscaras,
Gêmeos no grito de prazer e dor,
Libertos
Sem qualquer fantasia.

Naquele dia estranho e triste
Éramos apenas isso,
No fio invisível da vida:
Um homem e uma mulher, sós.

Dani Altmayer (revisado e editado)


quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Meditando



Depois de tanto minha mãe insistir, me matriculei na academia. Não é a mais próxima de casa como ela queria, mas é um lugar onde consigo me sentir bem. Talvez "me sentir bem" seja um pouco de exagero, acho que o mais certo seria dizer que é um lugar onde consigo passar desapercebida. Lá quase não tem aquela gente gostosa e sarada se exibindo em frente ao espelho. Todo mundo parece meio cansado e de saco cheio como eu. Suspiram e bufam como eu. A gente está ali cumprindo um dever mesmo, empurrando aqueles pesos todos com as pernas e pensando na vida, dura e difícil como ela é.
Comentei com o instrutor que eu andava meio ansiosa, o terapeuta está diminuindo os remédios, e ele me recomendou fazer uma aula de meditação. Tem todo sábado pela manhã, junto com alongamento. De tudo o que já li sobre meditação achava quase impossível eu conseguir, essa coisa de parar o pensamento só funciona comigo depois de uma garrafa de vinho, aí eu faço merda mesmo, não penso em mais nada. Ou apago, o que dá no mesmo. De resto, se me perguntarem o que eu faço o dia inteiro, respondo fácil: eu penso. Eu penso o tempo todo sem parar. A ideia de meditar era meio absurda e improvável, mas decidi arriscar.
A aula é numa salinha no andar de cima. Cheguei em cima da hora, eu tinha vestido uma daquelas calças largas de yoga que ficam lindas nas magras, e só nelas. Talvez nem nelas, pensando bem. A sala estava à meia luz, e haviam acendido um incenso bem forte. Eu até que gosto, minha rinite é que não. Sentei em uma das almofadas dispostas em círculo, e cruzei as pernas imitando os outros. Não foi nada fácil. Logo o professor começou a entoar um mantra que não consegui repetir, fiquei fazendo um barulho com a boca na esperança de soar parecido, e depois ele mandou a gente ficar em silêncio por dez minutos, fazendo um malabarismo com os dedos da mão que ele chamou de mudrá. Concentra na respiração, inspira, expira, deixa os pensamentos passarem. E eu fixa no almoço de família na casa da minha avó, na massa com carne de panela e mais especificamente na sobremesa, arroz de leite. Ultimamente penso muito em comida. Dez minutos parece pouco, mas experimenta ficar com as pernas e os dedos cruzados sem se mexer esse tempo todo. Comecei a sentir um formigamento insuportável, acho que deve ser isso o que eles chamam de consciência corporal.
Quando achei que não ia aguentar mais, começaram os exercícios de alongamento para liberação dos músculos e da tensão acumulada na semana de trabalho (eu não trabalho, mas tensiono igualmente). Passamos a libertar nossas dores uma a uma, em posições que não ouso descrever. Teve uma hora que achei que não ia voltar ao normal, minha coluna fez um barulho estranho e quando vi tinha todas as dores do mundo em mim. Santa rigidez.
No fim de tudo ele mandou a gente deitar no tatame, fechar os olhos e colocou uma música suave, violinos e piano, e começou a falar. "Imaginem que estão numa praia deserta, o dia está chegando ao fim, os últimos raios de sol banham a areia de cor de laranja, e as ondas do mar batem em suas pernas, a água está quente"... E por aí ele continuou, tocando uns sininhos.
Não sei se foi  a música, o incenso, o tom de voz dele ou o Rivotril que tomei escondido, mas de repente eu estava naquela praia, e era quase magra como há cinco anos, meu cabelo longo e esvoaçante, meu corpo não tinha peso algum, eu flutuava em uma luz dourada, depois eu estava nua deitada na areia, deixando as ondas lamberem meu corpo em carícias mornas, a espuma macia me tocando, e senti uma mão por entre minhas pernas, não abri os olhos, abri mais as pernas, não sei de quem era a mão, mas estava bom, tão bom, tão...
A música parou, e eu levantei a cabeça, subitamente arrancada do meu deleite. Todos me olhavam, uns mal disfarçaram um sorriso constrangido. Eu sorri também, ainda fora de foco. As luzes se acenderam e a aula acabou com mais um mantra que não tentei imitar. Só pensava em chegar em casa e terminar o que tinha começado naquela praia.
No almoço, para alegria da minha mãe, eu não repeti a massa e pulei a sobremesa.
E para seu desespero, resolvi dar um tempo na academia para me dedicar à prática da meditação. Transcendental.

Dani Altmayer
( exercício para a oficina- "sair de si")




sexta-feira, 25 de novembro de 2016

O Ricardo



A gente se conheceu na Internet. Depois que eu saí da clínica, o terapeuta me recomendou ficar longe de relacionamentos, e ficar longe de relacionamentos significava ficar sem sexo. Um dia, de bobeira, digitei no google " assexualidade". Foi depois de um programa de TV. Nem sabia que existia isso, comecei a ler, achei bem interessante ( e meio esquisito). Procurei um grupo no face e foi ali que conheci o Ricardo. Nunca falei no grupo que eu era assexual, nem achei que fosse importante. Na verdade, eu não levava aquilo muito a sério, era mais curiosidade. De qualquer forma, eu podia não ser assexual de nascimento, mas eu estava assim. Proibida de beber, fumar e foder.
O Ricardo me chamou a atenção primeiro pelas postagens romãnticas, depois porque parecia um menino frágil, de tão magrinho. Será que era por isso que não sentia tesão, vai ver nem hormônio tinha. Mas era lindo, cabelo arrepiado muito loiro e usava um óculos roxo cheio de estilo. Tinha uma tatuagem no braço direito, No sex. Comecei a curtir tudo que ele escrevia, e um dia ele me chamou pra conversar. Disse que me achava bonita, e eu perguntei se não me achava gorda, ele falou, "você é gorda. Isso é um fato, não é um problema. E você é bonita, sim. "
Eu me apaixonei na hora, passava as tardes no computador namorando. O celular tinha sido confiscado pela minha mãe no dia da primeira internação, e não tinha jeito de ser devolvido. Ela tinha voltado a trabalhar naquela época, e meio que liberou o computador para mim, junto com a geladeira. "Melhor você comer do que ficar bebendo ou tomar um monte de remédio." Eu tomava um monte de remédio, mas agora ela me dava um por vez, nas horas certas. Meu pai ficava em casa comigo, mas ele nem se dava conta, eu acho. Via TV o dia todo. Depois, que mal haveria de ter em conversar com um cara dez anos mais novo, que é metade do seu tamanho mas é um verdadeiro anjo na sua vida?
Ele me disse que os assexuais se relacionavam sim, normalmente, só não de uma maneira erótica, apenas afetiva. Que não sentiam desejo. Servia para mim, com meus quilos a mais e minha libido zerada artificialmente. A gente gostava das mesmas músicas, dos mesmos filmes, foi uma afinidade incrível. Ele estava estudando sociologia, eu sou formada em pedagogia, só não exerço. Tudo a ver. Combinamos um encontro no parque. (Eu ainda não podia sair de casa à noite). Não falei nada para minha mãe, ela estava no trabalho, para o pai eu disse que ia na casa da Maria pegar uns livros.
Meu cabelo tinha voltado a crescer, e num impulso pintei de vermelho, coloquei meu melhor vestido, o único que ainda servia e pintei a boca de um vermelho mais alaranjado, pela primeira vez em muito tempo sentindo que valia a pena usar essa cor de forma inconsequente.
O Ricardo já estava lá, em frente à sorveteria. Me deu um abraço tão apertado que achei que eu ia quebrar os ossos dele. Ofereceu um sundae que aceitei com prazer. Enquanto comíamos os sorvetes sentados em um banco, nossa pernas se tocaram e eu senti uma vontade louca de beijar ele. Na verdade, de dar uma lambida na sua boca cheia de calda de morango. Fazia muito tempo que eu não beijava ninguém. Mas me segurei. Fiquei o tempo todo mordendo os lábios e apertando as coxas. Ele foi um amor comigo, como sempre era, e a gente ficou até o por do sol conversando da vida. Levei a maior bronca da minha mãe quando cheguei em casa. Depois desse dia a gente se via quase uma vez por semana, e eu estava cada vez mais apaixonada. E quanto mais apaixonada, mais vontade de dar uns amassos nele. Cheguei a insinuar um dia, mas ele me disse que era assim mesmo, que eu sabia desde o começo e tudo, e eu sabia, eu não podia, mas eu queria. Dava um jeito de me controlar, chegava em casa e devorava duas barras de chocolate e a vontade acabava passando, ou eu dava um jeito sozinha.
Acho que a gente ficou uns oito meses assim, super intensos, uma vez ele foi lá em casa de tarde, conheceu o meu pai. Vimos um filme no computador e comemos pipoca. A gente deitava junto no sofá, mas não se tocava. Ajudei com as provas finais, a gente se encontrava bastante na biblioteca. Emprestei um monte de livro para ele. O Ricardo não tinha carro, por isso a gente nunca ia muito longe. Acho que minha mãe nem percebeu que a gente estava namorando, ela e meu pai mal se falam, e dessa vez achei melhor não contar para ela. Eu não conhecia a família dele, moravam no interior. Em dezembro ele foi passar as festas com eles, eu fiquei com o pai, a mãe e uma tia no Natal, foi bem sem graça. No ano novo ele me chamou no skype depois da meia noite, mas eu já estava dormindo.
Ficou janeiro todo fora, e quando voltou estava meio estranho. Começou a passar menos tempo online. Trabalhos da faculdade, dizia. Ele estava fazendo estágio. Problemas com a irmã. Bicicleta de pneu furado. Eu tentava marcar encontro, mas chovia. Comecei a entrar em desespero, eu morria de saudade, mandava textão, ele me dava "oi , bom dia, boa noite".
Até que, uma tarde, voltando de uma consulta, eu estava de carro com o pai num sinal vermelho quando vi o Ricardo na porta de um edifício. Ia chamar, mas nesse instante chegou uma menina e deu um abraço nele por trás, ele se virou e tascou-lhe um beijo daqueles, ficaram os dois ali se agarrando como se não estivessem no meio da rua, numa calçada em plena luz do dia. Eu  abri a janela e botei a cara para fora: " mentiroso, vai tomar no teu cu"!
Naquela noite mesmo veio uma explicação por email. Estava apaixonado, estava revendo conceitos, essas coisas. Que eu era muito legal, e que ele sentia muito. Sentia muito!
Eu quebrei a tela do computador. E mais outras coisas. Eu gritei muito, não parava de chorar. Me recusei a tomar os remédios, e minha mãe me trouxe para cá, mais uma vez.
É isso, essa é a minha história...

Dani Altmayer

( texto para a oficina- casal bizarro. Usei uma personagem criada no semestre anterior)
Outras dela:
http://entretantosatos.blogspot.com.br/2016/04/ainda-nao.html
http://entretantosatos.blogspot.com.br/2016/05/morango-com-chocolate.html

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Nossas histórias




Por quase quarenta anos ela esteve junto em quase tudo que me aconteceu de importante.
Uma das memórias mais remotas e mais bonitas que tenho é de estar sozinha com ela, numa manhã de sol no escritório da nossa antiga casa, cujas paredes eram cobertas por estantes cheias de livros, e onde ela estava trabalhando para um retiro da igreja, produzindo etiquetas com a identificação dos participantes para colar nas pastas. Ela tinha uma maquininha que fazia isso, iam saindo as tiras, e eu estava sentada a seus pés quando de repente comecei a ler os nomes que surgiam como mágica, um atrás do outro. Lembro de ela ter me dito, espantada, Dani, tu está lendo, e lembro de gritar de alegria, eu estou lendo, mãe, eu estou lendo.
Nas prateleiras mais baixas ficavam os gibis para nosso alcance, e ela me deu uma revistinha do Pernalonga que eu li para ela do início ao fim. A primeira de tantas.
Foi um dos dias mais felizes da minha vida, acho que não sei descrever a maravilha daquele instante em que desvendei o mistério por trás das letras que se juntavam em palavras e depois em frases e finalmente em histórias que não mais tiveram fim.
Percorri todas aquelas estantes, li um livro atrás do outro na minha infância e adolescência, e lembro do desespero dela, lê mais devagar guria, não tem livro que dê conta de tanto apetite, e não tinha, por isso eu lia e relia. Muitas vezes. Ela reclamava, vai brincar na rua, e eu não ia. Devorava livros sem capa, histórias de amor, ganhava coleções de presente, subia na escada para alcançar os livros mais altos, proibidos para crianças, os quais eu lia escondida sem ela saber. Pequenas transgressões que sempre nascem de tudo que provoca curiosidade. De tudo o que é proibido. O escritório era uma terra encantada, onde todas as aventuras eram possíveis e eram minhas.
Os livros são o paraíso dos tímidos, mãezinha. Nosso melhor esconderijo.
"Volta para a terra, Dani. " Era em vão. Eu tinha descortinado todo um outro mundo com a leitura, e ela sabia. Não só sabia como entendia. Entendia e compactuava, também ela uma grande leitora. De vez em quando também ela sumia. Quantas vezes a peguei, em tardes de verão, deitada de lado na cama, imersa em outras viagens, no fim de algum romance muito bom, respondendo em monossílabos sem sequer ouvir as perguntas e sem desgrudar os olhos do livro que estava lendo. Estava tudo certo, a gente sempre se entendeu na quietude das palavras escritas.
Vieram muitas outras estreias onde ela também esteve, mas poucas se comparam àquela manhã silenciosa onde fomos cúmplices de uma bela descoberta. A conquista da leitura, que não chegou aos poucos, em sílabas desconexas, "vovó viu a uva" ou coisa que o valha, veio antes do nada, numa espécie de iluminação. "Ah, então era isso?"
Tantas vezes, ainda, depois de tanto tempo, tenho vontade de compartilhar com ela o prazer de um ou outro livro especial. Entre muitas outras coisas que, vez ou outra, ainda gostaria de dividir. E nessas horas eu tenho vontade de pedir, como ela me pedia.
Volta para a terra, mãezinha.

Dani Altmayer ( nove anos sem ela)

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Mas... e a janta?



" O meu pai se separou da minha mãe porque ela não fazia nada para ele, sabe. Deixava tudo na mão da empregada, ele chegava cansado em casa e ela nem a comida esquentava, ele tinha que fazer tudo. Sim, ela trabalhava também, mas menos que ele. "
Deitada no sofá, tentando achar coragem para arrumar o armário, Clara lembra da conversa com um conhecido da academia no dia anterior. O colega, quando criança, culpava o pai que traiu a mãe, mas hoje entende bem o que aconteceu. "Ele tinha razão."
O celular toca, é o Marcos. Estão saindo há duas semanas e meia.
- Oi...
- Oi Clara, lindinha. Pensei em passar aí para filar uma janta, mas ficou tarde.
- Deu sorte, não tem janta. (Nunca tem).
- E como tu fazia quando era casada?
- Marcos, olha só. Preciso desligar, meu pão de queijo está queimando. Beijo!
Deleta o número dele. Menos um, mais um.
Resolve deixar a arrumação do armário para domingo que vem. Desliga o forno, pega um pão de queijo e recheia com maionese. Come cinco e toma uma cerveja. Liga o computador e perde seu tempo nas linhas do tempo de amigos e conhecidos. Vê uma foto do João no face da Lara. Foi seu namorado na adolescência, casou com a irmã da melhor amiga. Hoje moram no Canadá. Ele está velho, barrigudo, grisalho e não tem quarenta anos ainda. É empresário, a Lara não trabalha, eles tem dois filhos pequenos. A foto é do casal numa "breve lua de mel no lago Moraine", ao fundo as montanhas com seus picos nevados contrastam com o céu de um azul profundo.
É noite, faz calor em Porto Alegre.
Clara fecha o computador e vai para a frente do espelho do banheiro, se examina sob a luz forte. Precisa retocar o botox, está vencido há dois meses. Algumas rugas finas se formam ao redor dos oblíquos olhos azuis quando sorri. Já não tem bochechas ou covinhas, mas as maçãs do rosto continuam altas. O pai costumava falar que tinha um rosto de escandinava. Feições aristocráticas, dizia, como ela odiava aquele nariz aristocrático, fino e reto. Os cabelos na altura dos ombros, novamente pintados de loiro, já foram azuis, rosa, pretos e muito curtos, em diferentes épocas. A boca continua grande e cheia. Lábios carnudos, como no poema que ganhou de um apaixonado décadas atrás. Ano que vem faz trinta e nove anos, custa a acreditar. Prende o cabelo em um coque e toma uma ducha rápida, acariciando a barriga lisa e os seios ainda firmes. Sempre foi magra, ombros angulosos, ainda usa o mesmo manequim dos tempos de modelo. O fato de não jantar quase nunca deve ajudar. Isso, e a musculação diária, motivo de muita briga com um cara mais velho com quem morou por uns dois anos, e que reclamava das suas  roupas de ginástica, "você nunca se arruma para me esperar!" Jantavam lasanha congelada e discussão.
Suspira forte. Distraída, passa um hidratante no corpo, veste uma calça folgada de moletom e abre mais uma cerveja. Coloca Norah Jones para ouvir baixinho. Volta a pensar na mãe do colega da academia.
A TV sem som mostra um filme em preto e branco. Sentada no sofá de pernas cruzadas, acende um cigarro e pega um livro, mas não consegue se concentrar. Está longe, tem uma reunião importante bem cedo pela manhã. Faz algumas anotações no seu note, o celular toca de novo. Número desconhecido, não atende.
Logo apita uma mensagem na tela: "Oi minha lindinha gostosa quer ir ao cinema amanhã e dividir uma pizza?"
Sem coragem de perguntar qual o filme, Clara desliga tudo. Apaga o cigarro, e vai dormir.

Dani Altmayer

( tema livre para a oficina, descrever um personagem a partir de uma foto escolhida)



quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Algumas regras



Ele ronca, mais como um gatinho do que como um leão, mas eu comprei protetor de ouvido porque às vezes ele dá uns guinchos que me assustam, e fala dormindo. Já ouvi coisa que não queria, inclusive.
Eu gosto de dormir só de camiseta, mas tenho usado meia porque ele reclama que o meu pé é gelado. Cada um tem seu cobertor, o dele vive no chão, porque ele é grande e sente calor, tem muito pelo também, e você já deve estar pensando que ele parece um urso, mas não.
O ar condicionado ainda é um problema, às vezes rola uma briguinha boba na hora de deitar. Vamos fazendo concessões, cada dia um cede, eu mais. Para isso ainda não tem regra. O lençol térmico eu tirei faz tempo, ele suava feito uma geladeira velha, acho que você nem sabe como era uma geladeira suando. Mas eu sei. Também não preciso mais dele, quero dizer, do lençol, agora que tenho um homem na cama, quase sempre. De vez em quando ele fica vendo TV até tarde na sala, jogos e essas coisas, e nessas horas eu sinto saudade. Do lençol.
A TV fora do quarto é regra antiga, não abro mão. Ele reinou um pouco no começo, mas acho que acostumou. Quarto é para trepar ou ler, depois dormir. Principalmente.
E para dormir de conchinha, porque se era para cada um virar para um lado eu continuava sozinha. Engraçado, todos esses anos e eu sempre dormi no cantinho direito da cama, era como se esperasse por ele, enorme, preenchendo todo o resto. Ele vira pro lado e eu me grudo nele, já tentamos o contrário, mas quase morri sufocada. 
Tá tudo ótimo, sim. A gente só tem que combinar antes para dar certo, você sabe que eu gosto de combinar tudo bem direitinho. É o jeito de fazer funcionar, homem ocupa muito espaço. Tem a questão do banheiro, ele usa o outro. Não, ele não é porco. Não exatamente.
Ele diz que eu é que tenho muitas manias, só porque tenho uma lista de tarefas para cada parte da casa, que colei na geladeira.  Sempre facilita deixar as coisas à vista, bem claras. Tipo quem cozinha não lava. Por enquanto ninguém anda cozinhando nada, nunca comi tanta pizza e sushi. Depois te conto das regras da cozinha, você me diz se eu estou louca.
Mas me fala um pouco de você, tudo bem? Pena que não deu certo com o Fernando, ah, não, claro. Jeremias. Que coisa, guria, tá difícil de acertar. Vai ver faltou umas combinações também.
Bom, mas é da vida, vida que segue, como dizem. Importante é você estar bem. Bola para frente.
Temos que nos ver, estou louca que você conheça ele, amiga. Você vai adorar meu cachorrão...

Dani Altmayer 

( texto para a oficina de escrita, cinco regras para fazer alguma coisa... perdi a conta)

domingo, 30 de outubro de 2016

Tempo de acasalamento



É como houvesse uma roda girando no sentido oposto ao que ando.
Uma imensa roda cuja força não me atrevo a medir, desvio. 
Ando cansada, os passos nem sempre me alcançam.
Um simples tropeço eu caio. 
No centro desta roda, não há nada além de vazio. 
Na escuridão da ausência, nem pensamento nem dor.
Como haveria um céu inverso de ser.
Um esquecimento morno quase apagando seu rosto. 
Que nome agora te darei?
Em algum lugar o sol brilha, há uma árvore que não vejo.
Pois há ali um pássaro que ouço.
Ele canta alto um canto bonito e triste, chamando a fêmea no cio.
Triste também ela vem.
A cumprir seu destino de ser sem saber.
É primavera fora do centro.
E a roda gira, roda forte.
Para um lado sempre contrário ao meu.

Dani Altmayer

(Porque hoje um beija-flor apareceu na minha janela, perdido. Como eu.)

domingo, 23 de outubro de 2016

Coragem (desde que não voe)



Eu tenho pavor de barata, rato e lesma.
Há muito tempo, eu ainda era casada, morava em um apartamento térreo com uma área onde tinha um pequeno jardim. Uma noite eu estava sozinha, sentada na rua e vi uma lesma subindo a parede. Ela ia em direção à janela da cozinha. Entrei em pânico e liguei para o meu então marido que jantava com o irmão, e eles riram muito. Riram muito, mas eu não. O assunto era sério. Então eles pararam de rir e me disseram que se jogasse sal no molusco, ele desidrataria e morreria.
Peguei o sal, mas como não tinha coragem de me aproximar, comecei a jogar de longe. 
Foi uma cena ridícula, desnecessário dizer. A lesma foi perdendo pedaços, mas não morreu. Acho que não consegui acertar seu coração mole, e ela continuou subindo a parede, deixando um traço gosmento e asqueroso pelo caminho. Entrei em casa e fechei a janela e as portas. No outro dia fui ao mercado, e comprei um veneno.
Tempos depois, já morando sozinha com meu filho, uma barata apareceu no banheiro. Ele devia ter uns oito anos e tentei explicar a importância de se saber matar uma barata para o futuro amoroso dele. Ele não me deu ouvidos, e eu resolvi jogar álcool de longe, sempre de longe (ela estava no balcão da pia, horror dos horrores). Acho que ficou bêbada, mas não morreu. Caiu no chão meio tonta, e não teve jeito. Precisei pegar o chinelo e matá-la sozinha. Depois ainda tive que me livrar do corpo. Desde então tenho sempre um inseticida à mão, e não deixo as iscas vencerem, por garantia. Como se garantia houvesse.
Não sei porque lembrei desses fatos hoje, talvez porque no dia da chuvarada tenha aparecido uma barata morta na cozinha e eu não tenha gritado, nem pedido socorro. Fiquei muito calma, e agi como deveria. O fato de ela estar morta ajudou, não posso negar. Peguei um papel toalha e dei fim ao cadáver com uma naturalidade surpreendente.
Enfim, e daí, né?
Bom, tenho a estranha e irritante mania de achar moral nas histórias que voltam à minha cabeça, assim, do nada. Então vamos lá. Só posso concluir duas coisas óbvias. 
Uma, que a dor ensina a gemer. Traduzindo: se só tem tu, vai tu mesmo.
A outra é que se tem que se matar algo, e às vezes é preciso, que se mate direito. Respira fundo e mete o peito, mesmo com medo. Para não sobrar restos nojentos, partes pegajosas, pedaços disformes. Nada de matar aos poucos, lentamente. 
Por compaixão por quem vai, também, e por precisão de quem fica para limpar a sujeira, depois.
Nada mais digno do que uma morte digna, afinal.

Dani Altmayer

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Lado A



Eu sempre olho para ver se está arranhado. Não estava, tenho certeza.
Eu gasto toda a minha mesada com discos. Este eu tinha encomendado há três meses, e foi bem caro porque era importado. Minha mãe fica louca comigo porque passo horas no quarto ouvindo música e comendo bolacha recheada com coca- cola, ela queria que eu lesse um livro ou fizesse algum esporte mas sou meio cansado para isso. E muito magro. Ninguém nunca me quer em nenhum time de qualquer jeito. Ótimo, gosto mesmo é de ficar no escuro do quarto, olhando o teto cheio daquelas estrelinhas idiotas que a minha irmã colou quando ainda morava aqui.
Não estava arranhado, tenho certeza, e eu não tinha fumado nem nada, o pai e a mãe estavam em casa até. Era cedo, também, mas chovia muito e o dia tinha escurecido rápido. Não foi um sonho, porque meus sonhos não são esquisitos nem assustadores, são sempre os mesmos, pelo menos até onde eu lembro deles. Sonho com a Tina, ou algo a ver com a escola, às vezes com meu pai.
Aquele disco era uma raridade, custou duas mesadas e meia, não que eu tenha juntado esse dinheiro, sou ruim de juntar grana, mas ganhei da vó de aniversário. O Juca mandou buscar três, um para ele, outro para aquele tiozão que está sempre na loja de disco, e outro para mim. Eu converso muito sobre música com o Juca, ele sabe tudo do que está rolando lá fora, lê aquela revistas todas, já morou na Inglaterra. O Juca é um pouco hippie, ainda. Bem legal. Como meu pai era antes de casar, usava umas blusas curtinhas e aquelas calças estranhas e o cabelo comprido, eu tenho certeza que meu pai fumava maconha só que nunca vai confessar. O Juca fuma direto, mas nunca me deu, nem adiantava eu pedir, diz que eu sou muito criança ainda. Ele nem sabe que eu já fumei umas três vezes com uns caras do último ano que tem uma banda de rock pesado. Eles eram meio punks antes e eu achava a banda bem boa. Problema é que agora eles só tocam Legião e Paralamas (eca), que é o que as gurias pedem e eles querem que as gurias peçam, ficou um saco.
Bom, mas naquele dia eu não tinha fumado, nem bebido, nem sonhado. O disco não estava arranhado, nem nada. Eu só sei que foi muito estranho, muito, na hora parecia que uma estrela daquelas ia cair na minha cabeça, acho que eu gritei alto porque o pai veio correndo, acendendo a luz. Não falei nada para ele, só fiquei olhando. O disco se desligou sozinho, ou o quê, e eu não conseguia me mexer, fiquei olhando para ele, ele olhando para mim. Passei uns dias sem conseguir falar, de olhos arregalados, tive febre, me levaram no hospital. Os médicos fizeram um monte de exame de sangue, não deu nada. Depois de uma semana, sei lá, a voz voltou, do nada, e consegui fechar o olho.
Não contei para o Juca, podia ter perguntado para ele, mas fiquei com medo que ele dissesse que eu estava louco, e o tio da loja que tinha o outro, parece que se mudou para a Califórnia, e eu não conheço mais ninguém que tenha o álbum. Acho que nem lançaram no Brasil, não duvido.
Não tive coragem de quebrar, ia jogar fora, mas o disco sumiu. Perguntei para todo mundo em casa, ninguém sabia de disco nenhum com aquela capa. Nunca ouvi o lado B. Parei de ouvir música por um tempo. Também não fico mais de luz apagada sozinho e pedi para a mãe pintar o forro do quarto, tirar aquela babaquice de lá.
De vez em quando toca uma música deles no rádio, outro dia deu um clip no Fantástico, mas nunca é aquela. Tento não pensar muito nisso, só que fico pensando quase o tempo todo. Na estrela, no som. Se alguém mais ouviu. E se ouviu, se mais alguém sabe o que eu sei.
Hoje vou no cinema com a Tina pela primeira vez, vamos ver Sexta-feira 13 número mil, um saco. Eu acho. Mas ela ama. Adora filme de terror.
Eu não. Eu vivo em um.

Dani Altmayer

(exercício para a oficina de escrita, adolescente de 14 anos compra um disco de sua banda preferida, e tem uma surpresa, algo inesperado acontece em uma das faixas, que não pode ser contado).

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Bleu




Ela chegou na minha vida de peruca e turbante, cheia de estilo, de salto altíssimo e pisada forte, estremecendo as vigas da velha escada de madeira da livraria. Por muito mais tempo do que deveria, estivemos separadas por várias cadeiras e um certo estranhamento, quem era essa mulher?, unidas apenas pelas narrativas de nossos textos iniciantes. Ela, sempre atrasada.
Um dia (uma noite), por um desses erros que dão muito certo, nos aproximamos e começamos a conversar. Foi quando nos conhecemos de verdade, para muito além daqueles textos que compartilhamos, e pudemos dividir histórias e dores, amores e alegrias, encontramos um cantinho no coração e na vida uma da outra, cantinho esse que só fez crescer ao longo desses dois anos. Os cabelos dela também cresceram, junto com minha admiração. Ela é meu exemplo de força e delicadeza, ela é pura superação e máxima inteligência e sensibilidade. Meu sinônimo de resiliência. Linda, por dentro e por fora, porém sempre atrasada.
Demorou demais para chegar. Eu acho.
Não somos duas, no entanto, e peço licença para falar pela Fernanda, que já sentava ao meu lado, quando nos tornamos três. Formamos um trio, no melhor ménage à trois sem sexo que pode haver. Entre cafés e sanduíches, vinhos e cervejas fortes ( muito fortes!!!), cinemas e shows, ideias de feminismo e conversas malucas, choros e risadas, tarot e trocadilhos infames, fora inúmeras mensagens de whatsapp, construímos um amor gigante, único, especial. Uma amizade que, aliás, é o melhor tipo de amor que eu conheço. Sem medo de ser piegas, e sendo deveras. São mais duas irmãs que a vida me deu de presente junto com a literatura, embrulhadas no mais brilhante pacote do mundo.
Agora, a que estava sempre atrasada está de malas prontas para partir. Vai voar em busca da mulher que ela (já) é, para viver a vida que ela merece ter. Duas de nós vão ficar. Torcendo muito.
Todo mundo vai chorar, despedida é uma merda. Meu coração está apertado de tanta saudade antecipada. Mas ninguém vai dizer adeus, nem poderia. Não se pode partir de um pedaço da gente. Vamos juntas, e ficamos juntas, tá? Para sempre.
Ela demorou demais para chegar, mesmo, mas chegou forte, arrasando no salto, e se veio, foi porque era para ficar.
E essa história só vai mudar de cenário, não vai acabar.
À bientôt ...
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segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Tylenol para dor, Rivotril para humor



Mais uma de consultório:

Não conseguiu consulta com o psiquiatra e veio renovar a receita do Rivotril.
- Pode colocar 3 caixas?
Eu só prescrevo uma, e explico para ela.
- Tudo bem, não tomo muito mesmo. Só quando fico triste, ou me emociono com alguma coisa, tipo uma propaganda bonita, um filme.
- Mas não é bom se emocionar?
- Ah, não, doutora. Essa não sou eu, imagina... Ficar chorando por qualquer coisa.
....
Pausa para reflexão
....
....

Só mais um instantinho.

Dani Altmayer

sábado, 15 de outubro de 2016

Olhar

Na lentidão da tartaruga o sábado se arrasta ao sol. Um bem te vi que não me vê acompanha meu divagar, depois voa e grita.Também eu queria voar. O reflexo no lago mostra um mundo de cabeça para baixo. A árvore busca, como o resto de nós, o céu de azul infinito. Um quero-quero vigia os horizontes que eu já não vejo.
A flor que brota na pedra fala baixinho, que a vida é sempre mais bonita pelo olhar da poesia.
Não é preciso nem ser poeta. Basta andar devagar, vez em quando.

Dani Altmayer (fotos e texto)






segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Sobrevoo





Da lagarta lenta, uma profunda metamorfose.
Frágil beleza de vida curta.
A ela só resta, como bem ao resto de nós,
Voar cada dia.
Todo voo é como fosse o último.
E ao restar assim, o último se demora, infinito.
Agradecida por ser livre, e restante
Ela fecha os olhos para prolongar a ilusão.
Para tão só viver, neste instante derradeiro,
Uma única e verdadeira vez.

Dani Altmayer

domingo, 2 de outubro de 2016

Dois de outubro



O céu muito claro dessa manhã de domingo confirma a primavera que sopra, numa brisa morna quase vento. É dia de eleição. Faz silêncio na avenida à beira do rio. Dá para ouvir as rodas das bicicletas girando, algumas conversas suaves, o motor de uma lancha ao longe. Nenhum carro e pouca gente. Na grama, meia dúzia de jovens montam o que parece vai ser uma festa com som. Dois idosos tomam mate em um banco na frente do museu, um deles tira a camisa. Uma mulher medita na pedra e tem as unhas azuis. Todos oferecem seus rostos ao sol.
Um menino vestido de branco é batizado nas águas sujas do rio por pessoas também vestidas de branco. Pais orgulhosos passam carregando filhos inquietos em seus bagageiros. Muitos caminham, muitos correm. Alguns jogam futebol de várzea, tem quem assiste. Uma senhora bonitona patina, de capacete cor de rosa. Três meninas voam, de skate. Sem capacete. Um homem fuma sozinho contra o muro cinza.
A mulher de unhas azuis fotografa uma ou outra coisa, tentando registrar a crônica dessa manhã silenciosa. Igual a tantas outras, assim diferente. Uma manhã onde a calma se derrama na avenida como um sorriso ensolarado, num daqueles raros momentos em que se estar vivo basta. E não dói.

Dani Altmayer



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quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Patrick




Um dia eu ia encontrar um amor assim, só que não ia ser dançando, porque como minha mãe costumava dizer, as aulas de jazz foram dinheiro jogado fora. A minha dança acontecia dentro, assim como a canção que eu cantarolava baixinho, desafinada, e que só eu ouvia. Era tudo lindo na minha imaginação, a vida real é que não tinha o menor ritmo. Aquela música, aquele homem, aquela cena final. Que filme, nossa. Até esqueci que estava com o Cláudio e a Ana, segurando vela. O pai da Ana não deixava ela sair sozinha com ele, fui junto na parceria, acabou que adorei o filme.
Saímos do cinema os três, o Cláudio reclamando como de praxe que era muita baboseira, eu e a Ana meio apaixonadas pelo Patrick. Com vontade de rodopiar. Resolvemos voltar a pé pela Redenção. Eles iam mais na frente, eu acendi um cigarro. A noite estava quase quente, e uma lua cheia no céu iluminava o parque como fosse dia, as árvores fazendo sombras enormes no chão. Perto do chafariz o tapete de flores ao redor dos bancos tinha um tom estranho de rosa noturno, e exalava um cheiro forte e adocicado, que se misturava ao cheiro dos baseados que muitos compartilhavam por ali.
- Vamos fumar um?
Cláudio era maconheiro de fim de semana. Mais velho que a gente, trabalhava no Banco do Brasil e tinha sempre dinheiro. Compramos o fumo, e enquanto ele enrolava o cigarro, eu e a Ana comentamos o filme. 
- Um dia eu vou conhecer alguém assim, desse jeito. Só vou amar se for assim.
A Ana reclama que eu sou muito romântica, por isso que estou sem ninguém. Já tive um namorado, uma vez. Faz tempo. Olho para ela e o Cláudio. Estão planejando casamento. Apartamento, móveis, lua de mel na Europa, férias na casa de praia que pensam comprar. Terão dois filhos, e vão parar de fumar. A Ana vai casar virgem, como o pai quer. De branco. Tudo tão certo que para mim parece quase errado. Para começar, eu não sou mais virgem, graças a Deus. Também não quero um noivo que trabalhe num banco de segunda a sexta das nove às cinco e depois me faça um sexo burocrático, quero um homem que entenda quando um filme faz a gente chorar de emoção. Que me faça chorar de emoção, que me toque, o corpo e o resto. Quero viajar no imprevisível, correr o mundo, ser surpreendida. Quero um homem que conheça meus livros, meus medos, os poemas que ainda nem escrevi. Um homem que escute essa música que toca por dentro, que sinta a dança que acontece por dentro, que enxergue a delicadeza que é essa coisa de amar.
Uma nuvem pequena encobre a lua, as sombras somem de súbito. Dou um trago no cigarro, estou com fome, está ficando tarde.
Eu quero o impossível, a Ana diz. "Vai acabar sozinha". Ela não entende. Não é que eu não acredite no amor, eu acho é que acredito demais. Não falo nada. De mãos dadas com o Cláudio, minha amiga está feliz e para ela isso faz todo o sentido. Dou de ombros e deito na grama para olhar o céu.
A lua se escapa da nuvem e volta a iluminar o parque, apagando as estrelas. É quando ouço alguém cantando "I`ve had the time of my life...", mais como um murmúrio do que exatamente uma música, mas consigo reconhecer. Na frente do chafariz um menino dança de olhos fechados. Ele está de alpargatas e jeans, veste uma camiseta do Led Zeppelin. Acho que eu o vi no cinema, mais cedo. Sento de pernas cruzadas e fico olhando para ele. Não parece chapado, parece apenas feliz, desligado. E muito bonito. Não pode ser... eu é que devo estar muito chapada. Ele abre os olhos e me vê. Dá uma piscadinha, sorri e faz um gesto me chamando, "vem dançar." Devolvo um sorriso sem graça, desvio o olhar e deixo a franja cair sobre meu rosto. Cláudio e Ana se levantam, animados.
- Vamos comer um baurú?
Eles não viram nada. E o menino não estava mais ali, quando passamos os três pelo chafariz.

Dani Altmayer 
(exercício para a oficina de escrita- anos 80, cinema, Redenção, drogas... eu, ou um alter ego meu)

domingo, 18 de setembro de 2016

Sem teus olhos


Aquele verão teve o gosto bom da liberdade. Do gozo, livre.
Das tardes quentes de vestido leve, os corpos soltos ardendo mais do que o sol de janeiro.
O prazer, escaldante.
Carnaval em fevereiro, areia e vento. Terça e quarta. 
Uma sexta para ficar na lembrança. Outras tantas.
Veio março, não choveu. Não foram as águas que levaram o verão. 
Foi o amor que inaugurou o outono, e com ele as folhas amareladas começaram a cair, uma a uma. Suave, insistente, inexoravelmente.
Vieram os frutos maduros, a polpa e o suco melados escorrendo entre lábios e mãos.
Que gosto tem o amor não correspondido, ela se pergunta. Por perguntar, ela sabe bem, tem um gosto indefinido, agridoce, sedutor.
Por vezes cruel.
Ela pergunta se há saudade, de antes quando se era mais livre e o calor fazia morada sem pudor e sem medo. 
Ele responde que não. Mas ela sim, ela sente saudade do desfrute fácil daquilo que não tinha nome ainda.
Junho, julho, tulipas.
Inverno, café, breves fugas em vão. 
Agosto acabou.
Aproxima-se a primavera, o tempo voou para junto dela.
Ela voou junto com ele.
"Não se pode voar sem conhecer o abismo".
Venta um pouco, o frio não foi de todo embora. 
E no meio das horas felizes, o tal do amor fazendo sua confusão.
Superestimam o amor, e desdenham.
Imperfeito como imperfeita ela é.
Frágil onde havia de ser força, vulnerável e perdida, que falta que faz um manual nessas horas. (Não há.)
Convidado indesejado para uma festa pagã, o amor estraga tudo às vezes.
(E para sempre, às vezes.)
Ainda que o para sempre não exista, o ano corre com a vida. E a vida, com os anos. 
Setembro. Em breve uma nova estação.
As sementes se espalham, se plantam, se regam.
Aleatórias, alheias, incertas.
Como o tal do amor.
Alguma flor vai nascer, alguma flor vai morrer.
Em algum distante jardim, e tudo vai ficar bem.
Ela não abre mão da primavera, não poderia. Não sabe amar como Neruda.

Dani Altmayer ( escrito num dia que não existiu)



domingo, 11 de setembro de 2016

A buzina azul



Três homens de diferentes tamanhos passam por mim, pedalando fardados (fantasiados) de ciclista. Param na sinaleira à minha frente, e enquanto me distraio olhando suas enormes bundas acolchoadas, não posso deixar de ouvir a conversa. O menor e mais gordinho está falando:
- Ela queria o azul. Brigou, bateu pé, disse que era mais bonito. Quase chorou. Falei para ela, azul é coisa de menino, filha. Não combina, mas ela insistia, até que eu disse, meio brabo: "azul não serve na tua, e pronto." Resolvido o assunto, ponto final, ora bolas. Imagina uma bicicleta toda cor de rosa com uma buzina azul!
Os outros dois concordam, balançando afirmativamente os capacetes. Sérios, como a relevância do assunto exigia. É, aham, imagina, que horror.
O sinal abre e eles se vão. Com suas camisas laranja fluorescente, suas bundas grandes, com sua macheza muito bem protegida. Eu fico para trás, pensando com meus pedais.
Imagina...

Dani Altmayer ( crônicas de pedal)

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

London




Uma amiga costuma dizer que o chuveiro é o melhor lugar para chorar. Mas, como em muitos hotéis baratos de Londres, neste também o banheiro não tem chuveiro. Apenas uma daquelas banheiras antigas, de louça já amarelada pelo uso, e um pouco suja. Laura passa um lenço umedecido pela superfície áspera, e enche a banheira de água. Precisa lavar a cabeça, depois de tantas horas de voo, só que isso não é uma tarefa fácil, espremer-se embaixo das torneiras que não se misturam, a água fria sai em gotas, enquanto a quente é quente demais. Faz espuma com o xampu, e deita-se estendendo o corpo dolorido da viagem. A água a acaricia, e sente um arrepio de prazer. Ou de medo. Como ele a descobriu aqui, porque o deixou entrar no quarto, seu cabelo estava horrível. Aquela chuva fina lá fora. Tanto tempo, e essa surpresa de merda, a cara de ressaca, o gosto ruim de comida de avião na boca, tem coisa pior do que escovar dente em avião? O beijo, o sexo às pressas, sujo, quanta urgência como fosse saudade e não era. Certo que não, era outra coisa menor. Uma cisma, tem gente que não sabe, não acaba nunca. O cheiro dele, ah, o mesmo perfume que ela espalhava no travesseiro antes de dormir, só para fingir que ele estava ali. Pagara uma fortuna na loja de importados. Toda vez que sente cheiro de cebola. A maioria das pessoas não gosta desse cheiro, ela gosta, lembra do sítio do avô, a cebola e a bosta de vaca. O avô tinha cheiro de cachimbo e erva doce misturado, a avó era bolo de chocolate com cebola de molho. Se inventassem perfume de cebola ela comprava. Mas ele, não acredito que ele usa o mesmo perfume ainda, eu disse que eu avisava quando pudesse encontrar, não queria que fosse assim. Será que não podia ter esperado ela aterrisar direito? Duas noites sem dormir, aquele bebê chorando o tempo inteiro, Laura querendo chorar, se ao menos a porcaria desse hotel tivesse um chuveiro, o cabelo vai ficar horrível, a água já está ficando gelada, cadê a coragem de sair. Ele esperando lá embaixo, para quê, meu Deus, depois de tantos anos, por que as pessoas voltam para minha vida desse jeito, ninguém pede licença para sair, para voltar. Ninguém quer ficar, também. Era para ser só dela esta viagem, um tipo de resgate, tem sido só ela há muito perdida, sozinha, o que ele pensa que está fazendo? Não quero essa migalha, que se foda. Vou mandar embora, quem disse para vir para cá, por que também fui parar justo neste lugar? Entre tantos, era para ser, existe isso? O mundo é grande e pequeno ao mesmo tempo nas nossas escolhas.Vou usar o casaco verde, fico bonita nele.  Ah, o cheiro, o perfume... aquelas mãos. Tudo como era, tudo como nunca foi. Em Londres, de novo. Ao menos se a chuva parasse...
Laura fecha os olhos e mergulha na banheira fria. Está tremendo. Mas não consegue chorar.

Dani Altmayer
( exercício para a oficina de escrita- fluxo de consciência)

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Crônica de instante




- Faz tempo que tu tá esperando?
Olho no relógio e descubro que faz cinco minutos.
Para alguns, pode parecer pouco. Mas chove, e estou cansada.
Respondo: faz muito tempo.
Porque é assim. Em última instância, toda espera é longa.

Dani Altmayer

domingo, 28 de agosto de 2016

Personagem




Vários não sabemos. Muitos de nós não sabem. Talvez a maioria.
Mas eu sei. Eu vim das páginas de um livro sem título e sem capa. Como os que minha mãe me dava. Uma daqueles romances grossos, com heroínas pálidas de vestido longo e suspiros curtos. Tenho certeza de que vim de um romance. Nasci ofegante, cresci meio hesitante. Ruborizo com facilidade. Estou sempre assim, distante, perdida. Em outro plano. Um pouco acima, um pouco abaixo. No lugar errado, no lugar certo na hora errada, adiantada. No mais das vezes, atrasada. Confundo vida real com história. Sexo com amor. Amor, com dor. Com flor. O tempo todo. Eu rimo e nada mais rima comigo. Me divido em capítulos. Me confundo e não me reconheço em palavras passadas. Descubro palavras novas e escrevo. Reescrevo sem parar, me fortaleço. Porque eu vim das páginas de um livro, palavras me fizeram nascer e morrer, de novo e desde sempre, e eu já perco as contas das vidas que vivi e não vivi. Dos enredos que inventei só para o meu prazer (só para me enredar), dos dramas que desenrolei para poder seguir, dos mundos que compartilhei e dos abismos onde me joguei e de onde depois voei. Saí, depois voltei. Perdi as contas das viagens que imaginei e das que viajei. Das comédias, trapalhadas, dos personagens que criei, que criaram em mim, e para mim. Dos sonhos que não sonhei, dos ideais e dos devaneios que me conceberam e que me mantém. Solitária como uma manhã de domingo, e quieta.
Vários não sabemos do que viemos. Muitos não sabemos para onde vamos. E eu ainda não sei quem sou. Eu vim das páginas de um livro e acho que ali continuarei, sem escolha. Escrevendo e lendo até a palavra fim. Tentando descobrir, misturada na névoa imprecisa entre ficção e realidade, presa pelos pés e liberta pelas mãos. Por meus olhos. Deliciada e confusa. Repleta. Assombrada, e estranhamente a salvo.
Com uma única dúvida a me atormentar, se nessa história eu queria mesmo ser eu. Ou uma outra. Se nesse romance, eu não gostaria de ser ela.

Dani Altmayer
( desafio- escrever sobre a foto)

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Depois


Os raios de sol penetram a poeira da janela.
Nada se move no outro lado do mundo.
Estamos suspensos no tempo, instantes.
Somos o instante em que nada se move.
Suspensos no silêncio desse mundo paralelo, inventado.
Dois, e dois de um "tamanho tão certo."
Sem passado sem futuro, sem peso.
Inertes e embriagados, do todo e de nada.
Até uma lágrima escorre repleta, saciada.
Sorri, numa tarde muito azul de sorrisos. 
E eu penso que a felicidade deve ser um pouco isso. 
Um poema assim muito azul.
Feito dois corpos instantes, dançando momentos. 
Como partículas de poeira, suspensas. Entregues ao sol.

DA

domingo, 7 de agosto de 2016

Eu



"Eles olhavam e não a viam. Ela fazia mais sombra do que existia. "
   Clarice Lispector, in Preciosidade

Às vezes nós estamos pobres de palavras. Nesse instante, calamos. Quem está pobre de palavras não deve falar. Calamos para saber ouvir. Para levar um soco... De quem tem na palavra sua maior riqueza.

domingo, 17 de julho de 2016

Para dentro



O lago reflete o céu acinzentado do início de outono. Eram seus dias preferidos, estes em que não se distingue a linha do horizonte na água. Um vento fraco a faz levantar a gola do casaco, em breve vai fazer frio. Pedala devagar, não tem mais pressa. É muito cedo de manhã, e a orla está quase deserta. Um homem de roupa verde e um cachorro passam por ela, correndo.
Lembra de um verão no passado, dos vendedores de sorvete, dos carrinhos enfeitados por balões de gás coloridos. Lembra dos risos. Ecos agora distantes, que se embaralham em memórias outras. Passeios, pontes, esperas. Os corpos quentes ao sol morno de um janeiro, a placidez de espelho no lago. O toque áspero das mãos em contraste com a leveza tépida da água. A muda, mútua contemplação.
O lago, onipresente e tranquilo. Como era, então. (Como ele.) Com suas águas lentas e profundas, feito uma felicidade que brota do nada, numa calma sem motivo aparente.
Sem dor. Sem dor.
A bolha se desfaz. Sente falta de ar, a força está no limite. O vento agora sopra mais forte, o lago encrespa-se levemente, desfazendo a imagem do céu. Larga a bicicleta na calçada e caminha na estreita faixa de pedras, tira os sapatos e sente a rudeza do solo que conhece de uma vida inteira. Sente a saudade cortando seus pés. Experimenta a água gelada do lago de sua infância, alguns pingos de chuva começam a cair pesados, ardendo em seus olhos ácidos. O homem de verde e o cachorro perderam-se de vista, não há ninguém por perto além da névoa.
Num suspiro resignado, quase contente, levanta um pouco o vestido. E espera.

Dani Altmayer
( Texto- desafio para a foto enviada pelo meu primo "she always loved the lake")

terça-feira, 12 de julho de 2016

Carta para Isabella (meu amor cor-de- rosa)



- Qual a sua cor preferida?
- Rosa claro e rosa forte.
É domingo cedo, estamos conversando pelo facetime e fazendo planos para o seu aniversário. Lembrei de quando soubemos que as mamães estavam esperando uma menina, e eu postei no facebook "a felicidade é cor-de- rosa." Mal sabia eu que a felicidade seria tanta, e tão cor-de-rosa.
Olho para seu rosto sorridente, e te digo que vejo uma nuvem cor-de-rosa à sua volta. Você olha para cima, com uma cara preparada finge procurar algo, revira os olhos e diz que não está vendo nuvem alguma.
Você não vê, Isabella, porque essa nuvem é você. Um pequeno e doce algodão cor-de-rosa. Uma bela prenda. Toda princesa, bailarina, fantasia. Toda luz, emoção, sensibilidade.
Você, que há quatro anos enfeita nossas vidas com música e com arte, com sua forte vontade, suas respostas rápidas e inteligentes. Você que é firme nas suas opiniões, tem muita personalidade e é suave e gentil ao mesmo tempo, coisa rara de se ver (ser). Você, com seus olhos curiosos de menina que mistura inglês com português, inventa verbos, "thinkando,"numa receita cheia de charme. Você que devora e conta histórias, que acredita em fadas, mas tem medo das bruxas e do escuro. Você que ainda não sabe o que são anjos, e me pergunta, "o que são anjos, Daniela?" Como vou explicar o que são anjos, Isabella? Anjo é você.
A garotinha dourada e rosa, que é linda de todo jeito, mas que é linda ainda mais por dentro. Que é puro coração. Você, que quando "for grande quer ajudar as criancinhas. "
- O que você vai fazer, Bella?
- Vou ajudar os pequenos a alcançar as coisas, tiDani.
Porque quando a gente é criança, parece que as coisas boas estão meio fora do alcance, mesmo. Os biscoitos e os doces ficam naquele armário bem no alto, e dependem da boa vontade dos grandes, assim como as tintas, a massinha de modelar e o sorvete de chocolate.
Mas não tenha pressa, Bellinha.
Crescer é bem legal, só que nem é tudo isso. As melhores coisas da vida não são difíceis de alcançar. Elas já estão bem juntinho de você, e já estavam bem antes de você nascer. Coisas que são ao mesmo tempo, complicadas de explicar e fáceis de entender.
Como essa nuvenzinha cor-de-rosa, brilhante, que você não vê. Que é da cor exata da nuvem que fica perto do sol, ao se pôr e ao alvorecer.
Como esse tanto de amor. Que cresce junto, a cada instante, e fica grande. Como você.



PS: Escrevi antes da sua festa, antes das nossas tantas outras conversas... Foram tantas, e tão interessantes que merecem um outro registro.
"A gente ama porque tem amor, ti Dani. "
Voltei com mais saudade, mais encantada, e com mais certeza ainda de que você era a cor que faltava no meu arco-íris.
Hoje é teu dia especial, princesa, e quem vai apagar a velinha é você. (E só você!)
Parabéns, amada!
Um beijo grande da tua tiDani


domingo, 3 de julho de 2016

Descanso


Domingo de sol, e um silêncio maculado.
Por sinos de igrejas,
E apitos de futebol.

quinta-feira, 30 de junho de 2016

A mais longa das despedidas


Todo domingo eu visito minha irmã. Hoje o dia amanheceu escuro, ameaçando chuva, e muito gelado. Meu joelho está ruim desde ontem, e pensei em não ir. Que diferença faria, afinal? Olho para o bolo de milho embrulhado em cima da mesa, e mudo de ideia. Faça chuva, faça sol, sempre penso em não ir, e sempre mudo de ideia.
O Jorge me pega pontualmente às 14 horas. Ele é o motorista de táxi que me leva e traz, desde que parei de dirigir por causa do joelho e de um ou outro acidentezinho sem importância.
- Como vai, dona Júlia?
O Jorge é muito gentil, me ajuda com os pacotes de fralda e as sacolas de supermercado, dessa vez estou levando xampu, sabonete, creme de mãos e um gorro de lã.
Faz três anos que a Juliana está internada nessa clínica, desde o dia em que ela escapou do apartamento, e foi encontrada pelo zelador tomando banho de piscina em pleno julho. Fazia cinco graus, e ela foi parar no hospital com pneumonia. Depois disso não voltou mais para casa.
A clínica não é ruim, quem paga é o filho que mora na Espanha. Tem um quarto só para ela, com ar condicionado. Só não tem vista, e fica um pouco escuro porque a janela dá para um muro todo pintado de verde. Juliana está sentada em uma poltrona, tem um livro aberto no colo. Ela lê o mesmo livro faz tempo, agora já nem trago nenhum novo, só mudo os antigos de lugar.
Ela sorri para mim, vagamente. Acho que hoje é um dia não. Domingo sim, de um dia não. Acontece bastante. Seus olhos estão vazios de qualquer reconhecimento. Ela é educada.
- Boa tarde, senhora.
Sua voz é igual à minha. Seus olhos verdes, o nariz pontudo, as mãos esguias, tudo igual. Apenas seus cabelos brancos contrastam com os meus, escuros, bem pintados.
Faço um chá e ofereço um pedaço do bolo de milho. Ela adora esse bolo, e come duas fatias. Está muito magra, eu engordei depois que tive o problema no joelho e precisei parar com as caminhadas. Pego o livro no seu colo e leio um pouco para ela. Eu sempre fui a leitora da família, por gosto e profissão. A Juliana era mais esportista, inclusive foi da equipe de vôlei do ginásio, antes de casar. Está viúva há muitos anos. Não quis mais ninguém depois que o marido morreu e cuidou dos nossos pais enquanto eu viajava. Morei muito tempo fora.
Ela fecha os olhos e penso que vai dormir, mas logo se impacienta com a minha leitura. Começa a falar. Olhando para ela agora, vejo a menina que foi, enquanto me conta histórias que conheço e lembra detalhes que preferiria esquecer. Hoje ela não sabe quem sou eu. Domingo próximo, talvez. Um dia, não mais. Fala de mim para mim, como que para uma estranha, e conta as peripécias que fazíamos, as duas, enganando nossos pais e amigos.
- A Júlia era tinhosa... ela pintava a unha de vermelho, meu pai dizia que não era coisa de mulher direita. Pinta minha unha?
Faço as unhas da minha irmã com o mesmo esmalte que também uso, rosa claro, como ela sempre gostou. Seguro suas mãos trêmulas em minhas mãos gêmeas e sorrio para ela. Peço que me conte de novo sobre a vez em que achamos uns filhotes de gato embaixo da casa, na praia. Ela se ilumina com a memória.
Vendo a Juliana assim, de olhos brilhantes, penso que ela parece uns dez anos mais jovem do que eu. Dez anos, quase o tempo dessa doença que nela se demora.
Já não somos iguais, ela está a andar para trás, e parece que só eu envelheço. Todas as perdas que me acontecem, já não acontecem a ela. Talvez seja esse o segredo, este parar no tempo e depois regredir para sempre às memórias mais tenras, e ternas.
Sua filha chega para a visita, atrasada, e ela me apresenta.
- Essa é a Juliana, minha irmã gêmea.
Não sei se brinca ou se confunde. Não importa, eu também me confundo. Rimos, as duas, crianças e cúmplices.
Lá fora continua escuro e frio, a chuva finalmente começou, mansinha. Jorge me espera na porta com um guarda chuva.

Dani Altmayer ( exercício para a oficina de escrita criativa)