quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Astor

Não aguento mais. Quero a minha vida de volta.
No início, até que gostei. Quando o Sérgio parou de sair todo dia, achei até bom. Tinha companhia para ver TV e dormir até tarde. Os passeios eram mais longos, e a gente conversava bastante. Com exceção de um ou outro telefonema, ou alguns minutos no computador, mandando emails, todas as horas eram para mim. Acho que nunca recebi tanta atenção. Nem quando era bebê. Lógico que eu sentia falta da Renata, mas ter a casa só para os homens tinha lá suas vantagens. Recebi até permissão para deitar no sofá, e comer chocolate.
Renata saía cada dia mais cedo, ouvi qualquer coisa sobre uma promoção, e chegava cada dia mais tarde. Ia trabalhar como quem vai a uma festa, parecia uma daquelas bonecas Barbie da sobrinha, igual a uma que mastiguei por engano, quando era pequeno. Lembro até hoje da bronca que levei. Como poderia saber, estava no chão. E o chão é o meu território. O mundo todo sabe. A Renata também passava horas no banheiro, e seu cheiro mudou. Confesso que preferia o outro. Não gosto muito de mudanças, principalmente de cheiros.Ela já não deixa mais eu pular em suas pernas, anda sempre de saia. Tem medo que eu rasgue suas meias, é o que diz. Também não deixa o Sérgio a beijar, para não estragar a maquiagem. Recebe mensagens no celular, toda hora, inclusive tarde da noite. Aquela porcaria vibra sem parar, atrapalhando meus cochilos.
Já o Sérgio deixou a barba crescer, e passava vários dias de pijama. Só se vestia (mal) para ir na academia, e para passear no parque, comigo. A Renata vivia reclamando de tudo isso. E olha que nunca contei, mas tinha dias, antes, em que ele nem banho tomava. O que por mim estava ok. Gosto do cheiro dele, melhor que o dela. O que está me incomodando, agora, são estas brigas. Toda manhã, o mesmo papo: "vai passar o dia em casa? " Toda noite, um terremoto. Até prato já voou por aqui, ainda preciso tomar cuidado com os cacos que ninguém catou. O apartamento virou um campo minado.
Tenho saudade de quando os dois chegavam juntos, e me levavam para passear. Depois preparavam o jantar, e sentavam para assistir ao jornal. Juntos. Eu inclusive. Tenho saudade do silêncio e até dos sons que eles faziam, na cama, tarde da noite. Nestas noites eu não podia entrar, e isso me chateava. Hoje nem me importaria. A vida era boa pra cachorro, naqueles tempos.
Agora, o Sérgio quase nem lembra de mim. Não me escova mais, não tem tempo. Desde aquele dia no parque, e a culpa foi minha. Se eu não tivesse me metido no lago, e feito aquela confusão, nada disso teria acontecido. Ele não teria conhecido a Diana, que agora passa as tardes com ele, trancada no quarto. Devem ter muito assunto, nunca me deixam participar. Acho que a Renata não sabe da Diana. Eu é que não vou contar. Aprendi, na marra. Desde que levei uma picada de abelha no nariz, ano passado, ao cheirar um arbusto. Eu, hein? Doeu pra cachorro. Não me meto mais onde não sou chamado. Eles que deitem e rolem. Eu me finjo de morto.

Exercício de Escrita Criativa (módulo II- metáforas)

Dani Altmayer

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