sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Mais uma vez


Todas as roupas espalhadas sobre a cama, as malas abertas à espera, e a inércia. Mais uma vez, as roupas e as malas, além de um porta retrato vazio, um estojo de maquiagem e três livros.
Poderia uma vida caber em duas malas?
Sentada na beira da cama, ela chora baixinho. Mais uma vez, a dor.
Pela janela aberta entra a luz tênue do fim de um dia de verão, pintando o quarto de dourado e laranja. Fora um dia quente, mas agora sopra um vento morno que a faz sentir calafrios. Segura na mão o vestido floreado, o mesmo que usara no último Natal. Ele sempre implicara com seus vestidos floreados, "coisa de hippie", dizia. Lembra da noite feliz, na casa da praia. Ouve os ecos dos risos forçados da família durante a ceia, relembra as histórias não contadas, e por tantas vezes repetidas, os presentes sempre meio fúteis do amigo secreto. Ganhara um porta retrato, com foto.
Se naquela noite ela soubesse, teria escolhido outra roupa?
Suspira, dobra o vestido com cuidado, é um vestido bonito, azul e branco, e o coloca no fundo da mala. Enxuga as lágrimas com o dorso da mão, decidida. Se uma vida cabe em duas malas, não vale a pena chorar.
Tem pressa agora. Joga de qualquer jeito o restante das roupas, o estojo de maquiagem, os sapatos e o porta retrato vazio. Senta em cima da mala maior para fechar. Não cabem os livros, que guarda na bolsa.
Olha uma última vez o quarto, já cheio de sombras na penumbra da noite que se avizinha. Respira fundo, não esqueceu de nada.
No cesto de lixo, jaz a foto, rasgada ao meio. Ele, de bermudas brancas e camisa amarela, ela com o vestido azul floreado. Dois rostos sorridentes, e um abraço, partidos.
Mais uma vez, partida.

Dani Altmayer
( Desafio)

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Haja terapia!



Como é complicado essa coisa de conhecer a si mesmo, e será que um dia a gente chega a se conhecer, de verdade?
O que é mais difícil, o auto conhecimento ou a mudança que precisamos fazer a partir daí?
Freud disse mais ou menos assim: o dia em que a dor de não estar vivendo for maior do que o medo de mudar, a pessoa muda.
Mas, e quando é esse dia?
Haja terapia!
Uma vez um amigo me falou, "não basta chegar no fundo do poço. Porque, no fundo do poço, ainda tem o ralo."
E o ser humano gosta de testar o limite, de ir até o fim, só assim para aprender.
Do contrário, se está mais ou menos, ser humano é que nem brasileiro. Vai dando um jeitinho.
São anos e anos de convivência íntima consigo mesmo. A gente se acostuma, sei lá.
Depois dizem que a gente não consegue enxergar bem tão de perto, deve ser isso. A visão embaralha, tem sentimento, atrapalha.
Ficamos apegados às ideias, que têm e que temos de nós.
Até que chega o ponto em que não tem mais jeito. Depois que toca o fundo, e passa o ralo.
Depois que carregam todas as nossas certezas, a gente se olha no espelho, tenta ser honesto.
É nessa maldita hora da verdade, que, ou a gente muda ou se conforma.
Ou segue a viagem, com mais bagagem e menos peso e mais coragem. Em busca do "si encantado."
Ou assunto encerrado, porque viajar para dentro dá mesmo um trabalho, um cansaço danado.
Então a gente faz o quê, aceita. Enfia o rabo no meio das pernas, guarda a viola no saco, tranca a mala no armário. E joga a chave fora.
Porque haja né…haja terapia.


Dai Altmayer 
(Desafio)


quarta-feira, 5 de novembro de 2014

O sonho de todo homem


Fazia tempo que ele me pedia isso. Começou como uma brincadeira na cama, para apimentar o sexo. Ele falava no meu ouvido, descrevia o que poderia acontecer, como seria, onde. Eu ficava excitada na hora, mas nunca levei muito a sério. Depois de 24 anos de casamento, a gente tem que usar a imaginação. Nada contra uma fantasia, um brinquedinho, uma venda nos olhos. Qualquer coisa serve para quebrar a rotina.
Como todo casal, a gente passou por um período complicado, quase nos separamos uns anos atrás, quando o Marcelinho foi estudar nos Estados Unidos. Acho que ele teve um caso nesta época com uma colega médica, nunca soube ao certo. Eu não queria me separar, gostava dele, não tive outro homem, nunca trabalhei, ele achava que não precisava. Toda a minha vida foi sempre em função de marido e filho, não reclamo, a vida era boa.
 Moramos numa cidade pequena, todo mundo conhece o doutor fulano e a esposa, ele é um dos diretores do hospital onde faço um trabalho voluntário, e que me ocupa umas poucas horas na semana. De resto eu corro, danço e faço academia, ele não pode reclamar, estou com um corpo bom para a minha idade, cuido da alimentação, me visto bem. Ao contrário dele, que não se cuida, que trabalha demais, é estressado, e está até um pouco barrigudo.
Quando meu filho viajou, eu passei um tempo por lá, alugando apartamento, ajeitando as coisas para ele. Depois que voltei, a casa me pareceu enorme, os dias vazios, repletos de horas que se arrastavam, Meu marido fazia muito plantão, e chegava sempre tarde, cada vez mais. Eu acabava jantando sozinha, na maioria das noites. Quase não conversávamos, tínhamos brigas terríveis. Sexo muito pouco, para não dizer nunca, eu sempre arranjava uma desculpa para evitar, ou dormia antes. Não tinha a mínima vontade mesmo.
Um dia, de repente, ele me disse que a gente devia dar um tempo. Eu achei que ele não ia ter coragem, mas teve, passou cinco noites fora de casa, num hotel. Eu ligava toda hora, ele não me atendia, entrei em desespero. Uma amiga me disse que no hospital andavam falando que ele estava de caso com a residente do terceiro ano. Aí uma noite ele voltou, não sei se tinha vindo para ficar. Eu estava fora de mim, chorava, gritava, falei que não queria perder ele para aquela vagabundinha. Berrei que ele ia se arrepender, que eu iria infernizar a vida dele, ia tirar todo o seu dinheiro, que ele não valia nada. Acho que ele se assustou comigo. Falou muito pouco, negou o caso quase com frieza, disse que o problema era outro. Depois sentou na poltrona de couro e ligou a TV, parecia distraído. Então eu me avancei nele, queria que ele reagisse. Ele me pegou pelos cabelos com força, "cala esta boca", me deu um beijo de tirar o fôlego, daqueles de início de namoro. Arrancou minha calça ali mesmo, na sala, e naquela noite transamos de um jeito como há muito não acontecia, duas vezes, e dormimos abraçados como há anos não dormíamos.
Ele acordou todo sorridente no dia seguinte, me mandou flores, cartão. À noite chegou cedo, e com duas passagens para Amsterdã. Foi lá que descobrimos as sex shops, tudo começou com algemas e um chicotinho, depois fomos experimentando outras novidades. Desde então as coisas melhoraram bastante, não vou dizer que eu estou sempre a fim,  mas estou mais disposta. Sexo é tão importante para homem, e eu não quero mais correr o risco de ser trocada por uma puta qualquer. Deixo ele ter o controle, me submeto, não nego mais quando me procura, até gosto de uma sacanagem de leve.
Uma bela noite, durante o jantar, ele chegou com a surpresa. Quase engasguei com o vinho quando ele disse que tinha tido uma indicação, que a gente não ia correr risco nenhum, que era muito tranquilo. Tranquilo? Eu confesso que fiquei com muito nojo, parecia tão fora de contexto aquele assunto, enquanto comíamos nosso peixe ao molho de alcaparras. Uma coisa é falar na hora do tesão, outra é chegar assim, tudo arranjado, com data e hora marcada. Quase disse que não, mas aí pensei em tudo o que a gente já tinha passado, pensei na residente gostosa, rodou um filme na minha cabeça. Se ele queria tanto, se era importante para ele...Concordei.
Viajamos para a serra uma semana depois, e nos hospedamos em um hotel de luxo, meio afastado, com cabanas bem separadas umas das outras. Quando chegamos, o quarto estava cheiroso e enfeitado de pétalas de rosa, e tinha espumante num balde de gelo, que eu logo comecei a beber. Havia uma jacuzzi na varanda envidraçada e aquecida, dava para ver o bosque escuro. Meu marido estava bem calmo, ao contrário de mim. Esperamos em silêncio. Uma hora depois, mais ou menos, bateram na porta.
Milena era a mulher mais linda que eu já tinha visto, uma morena de olhos verdes e peitos enormes, vestida de forma elegante num vestido preto justo e saltos altíssimos.
Oferecemos espumante, mas ela recusou. Tomou água tônica. Conversamos um pouco, fiquei sabendo que ela era artista plástica e poeta, morava na capital e estava noiva de um italiano. Não sei como tudo começou, eu já havia bebido muito, mas em pouco tempo estávamos as duas na banheira cheia de espuma. Meu marido de início ficou fora, sentado na borda e vestido de calça e camisa, enquanto ela acariciava meu corpo de um jeito que nunca imaginei. Depois ele juntou-se a nós.
Passamos a noite juntos, dividindo a enorme cama de casal. Lá pelas tantas da madrugada ele adormeceu, exausto, mas Milena continuou me tocando, e a gente não dormiu naquela noite. Eu não conseguia tirar os olhos daquele corpo perfeito, dos seios fartos e naturais, daquela pele macia e perfumada. Ela tinha um gosto doce, bom.
No dia seguinte, um domingo, meu marido tinha um congresso na capital e demos uma carona para a Milena. Paramos para almoçar em um restaurante alemão, ele tomou umas duas cervejas, e deitou-se no banco de trás para dormir. Fui dirigindo, e enquanto ele roncava, nós duas conversávamos sobre arte e sobre vida. Eu tentava prestar atenção às curvas da estrada, enquanto Milena passava as mãos pela minha coxa, subindo com seus dedos ágeis por dentro da minha saia, até me fazer gemer baixinho.
Quando estacionei na porta do seu prédio, ela pediu para esperarmos um pouco. Tinha uma coisa para mim. Subiu correndo e voltou ofegante, trazendo nas mãos um pequeno livro. "O que te falei", ela disse. Era uma coletânea de poemas eróticos, de um concurso no qual fora selecionada.
Quando chegamos ao quarto do hotel, sem trocarmos uma palavra, meu marido foi para o banho.
Eu sentei na cama, e abri o livro na página 22 para ler seu poema. No rodapé da página, rabiscado às pressas, havia um número de telefone.
"Quero te ver de novo."

Dani Altmayer

Texto para a oficina de escrita criativa

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Quem disse?

Não precisa ser muito.
Nem ser tanto. Menos ainda ser tudo.
Mas tem que ser o suficiente.
Sempre. No mínimo.
E o suficiente é isso.
O suficiente é o bastante.
Mesmo que seja pouco.

Dani Altmayer