domingo, 12 de dezembro de 2021

Reflexões


 

Encostados à porta do tempo
resistimos
a força é inútil
tentativas em vão
podem atrasar adiar
mas não há
o que dê jeito

o poeta já cantava
o tempo não para
ninguém ou
nada impedirá
que ele passe

talvez seja essa
a beleza afinal

abrir a porta
deixar o tempo
passar
deixar o tempo dizer

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Caubói

Ana está radiante. Cercada de amigos e admiradores, a noite transcorre suave como a música do piano ao fundo. As taças de vinho branco, os canapés, o vestido de alças finas deixa à mostra os ombros bem torneados, a cabeça baixa esconde um sorriso, enquanto assina mais uma vez o nome no livro recém lançado. Ao longo da galeria, suas fotos em preto e branco enfeitam o cenário e contrastam com o colorido das flores recebidas. A fotografia premiada, em destaque, é alvo de todos os olhares, enquanto as filhas ajudam a mãe a organizar os autógrafos. Jorge se afasta um pouco, admirando a esposa em seu habitat, satisfeito porém entediado com as conversas amenas de artistas e intelectuais. O prefeito acaba de sair, com a namorada. A nata da sociedade comparece, em peso, como era de se esperar.

- As meninas estão lindas, meu chapa.

Essa voz. Jorge se volta para o homem de casaco de couro, barba mal feita, cabelos grisalhos e olhos verdes feito o diabo. 

- Que idade elas estão? 

As gêmeas acabaram de completar quinze anos, a festa que deram saiu na coluna social por uma semana, grande evento na pacata cidade serrana.

- Quinze... quinze... a idade da Neca... Lembra disso, Caubói?

- Fernandinho. Achei que você estava preso. Ou morto.

- Era o que tu queria, né Caubói? Dedo duro do caralho. 

O homem está visivelmente embriagado. 

- Fala aí, meu chapa. Tua mulher sabe quem tu é ? Ana, o nome dela, né? Comprei essa bosta de livro aqui só pra poder chegar perto. Vou lá pedir um autógrafo para a madame, que tu acha da gente bater um papinho, nós dois ao pé do ouvido? Eu e a Ana bacana?

Os olhos verdes faíscam. Jorge não responde, paralisado pelas lembranças há muito domesticadas.

- A Neca tinha quinze anos, seu puto. Igual àquelas duas bonecas ali, só que não. Só que não! Tu lembra, Caubói? Me diz.

- Você ainda fuma, Fernandinho? Vamos na rua um pouco. Vamos conversar.

Os dois saem para a varanda, acendem os cigarros.

- Tu ainda cheira?

- Não. 

- Claro que não, virou importante. Ouvi dizer que tu vai concorrer pra prefeito ano que vem, cansou de ser vice, tá metido nessa merda de política. Quem diria, Caubói.

Ô bonita, tu conhece o Caubói? Me dá mais um pouco desse vinho aí.

A garçonete enche a taça e se afasta.

Jorge pensa em chamar o segurança, mas desiste. Está quase na hora do discurso. 

- Essa porcaria de livro aqui, ó. Sabe pra que eu vou usar, pra limpar a bunda. Lá no inferno que tu me enfiou esse papel daqui é luxo.

- O que você veio fazer aqui, Fernandinho. O que você quer? Dinheiro?

- Era bonitinha a Neca, gostosinha, né seu filho da puta. Qual é meu preço? Quanto tu acha que vale o meu silêncio?

- Vamos nos encontrar amanhã, para negociar. Você me diz quanto quer, dinheiro não é problema. Te encontro no posto de gasolina da entrada, antes do pórtico. 

Fernandinho entorna o resto do vinho, tira a jaqueta. Os braços tatuados ainda são  musculosos. Dá um abraço em Jorge, e ri.

- Caubói, meu chapa. Em nome dos velhos tempos. Fica frio, não vou estragar a festinha da tua mulher. Tu engordou, meu parça. Tá com cara de rico, mesmo. Rico que não come mais ninguém, haha. Nos vemos amanhã, então. Leva a carteira, seu puto.

Caminha cambaleante em direção à saída. Jorge está suando. Acende outro cigarro. Amanhã vai resolver tudo, basta uma ligação e está feito. 

Ana chega na varanda.

- Vem, amor.

É  hora de agradecerem a presença de todos e falarem da festa beneficente de Natal. Chamam as meninas para perto, ficam os quatro no palco improvisado em frente à fotografia.

Começa a chover forte, a luz pisca e volta.

Jorge pega o microfone com as mãos trêmulas, um raio ilumina a porta de entrada da galeria.

Fernandinho está parado, com uma arma apontada para o segurança. Dispara um tiro à queima roupa, os convidados se deitam no chão. 

Ele se aproxima da família, os olhos verdes muito escuros. 

- Bonitona a patroa, meu velho. Tá explicado a genética das gurias.

Dá um tiro na Ana, que cai amparada pelo marido. O sangue espirra na foto premiada da parede. 

As gêmeas gritam. Ele agarra uma delas pelo cabelo, desce a mão no decote, rasga o vestido de crepe. Pega o microfone do chão, e fala, a voz embargada:

- Mudei de ideia, Caubói. Olha pra mim. Isso. Vamos animar esta festa, companheiro. Vai ser uma, depois a outra.

Exercício para a oficina de escrita: o personagem agente do caos. 


domingo, 28 de novembro de 2021

Despacito




 "Por una cabeza, todas las locuras

Su boca que besa

Borra la tristeza
Calma la amargura"

Quem passa apressado não vê. É apenas mais uma casa antiga entre as tantas casas antigas e meio abandonadas do centro da cidade.
Espremida entre camelôs e bazares, calçadas tortas, escorregadias, confusa entre feias e gastas fachadas, a poesia resiste. A poesia existe para os olhos de quem anda devagar.
Quem demora, percebe. Para, olha, escuta.
A música escapa pelas frestas do número vinte e nove, melancólica, mas não se lê o aviso. Não lêem-se avisos.
Talvez porque haja algum perigo em se deixar conduzir desse jeito. A mão firme, as coxas enlaçadas, a pose. A pausa. A posse.
Sedução, passo a passo.
Os dedos hábeis do artista e a porta deixa de ser porta. 
Se faz janela. Vira moldura. Conta histórias.

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

O escritor







O chapéu escondia os olhos cinzentos. Olhos cor do mar em dias de tormenta. Estava sempre ali, no banco da praça, na hora em que ela saía da boate. Fumava o cachimbo sob a luz tênue do único poste, não dizia palavra, mal levantava a cabeça enquanto ela acendia um cigarro. Tragava fundo, a boca de batom borrado, as unhas pintadas de glitter, a alça do vestido deslizando pelos ombros. Descalçava o salto, cruzava as pernas, suspirava aliviada. Gostava de ficar ali, naquele banco, naquela praça, ao largo dos bêbados e mendigos, junto àquele homem que não queria nada. Só uma vez ela ofereceu e ele negou, a voz rouca e firme, o cheiro do fumo remetia a lembranças do avô pescador, há muito falecido.

Ele sabia seu nome, Mariana. Pronunciava de forma engraçada, com sotaque estrangeiro Nunca disse o dele, nem ela insistiu. Era o homem do chapéu. Usava roupas largas, tinha uma idade indefinida e uma tristeza adivinhada. Ouvia suas histórias com atenção, conhecia todas as meninas e os clientes, às vezes tomava notas num caderninho com capa de couro, que puxava do bolso do paletó. Raramente fazia perguntas ou tecia comentários.
Tinha sempre à mão o isqueiro e um lenço azul, para enxugar as lágrimas das piores noites.
Quando ela terminava o segundo cigarro, ele a acompanhava até a porta da pensão e seguia andando pelos paralelepípedos da rua mal iluminada, rumo ao cais.
Ia de cabeça baixa, imerso na solidão e na fumaça do cachimbo, as roupas cada vez mais largas, os passos cada vez mais lentos. Ela ficava olhando até ele sumir, calado, na névoa da madrugada.
Só então fechava a pesada porta com as trancas de ferro e subia, tentando não fazer barulho, pela escada de vigas soltas.

Um dia, ele não estava lá.
No assento do banco ela encontrou um pequeno livro de poesias e a dedicatória impressa: para Mariana, das noites claras.
Na contracapa, a foto e o nome do homem do chapéu.
Depois disso, nunca mais o viu.



domingo, 31 de outubro de 2021

Sons do plantão




Toca ao longe, insistente. Um alarme. Para e toca, toca e para. As motos rosnam furiosas, escapamentos adulterados, os homens e seus brinquedos. Carros em excesso de velocidade, gente em excesso de velocidade. A janela aberta e um vento quente, o preço da gasolina esse absurdo,  é domingo e quase feriado, as bruxas estão soltas, eu não. Estou presa à beira da ciclovia, e pela janela olho as nuvens lá no alto, corrediças e gordas, embaixo vejo os veículos e seus motores, há muito ruído para um domingo, o alarme volta a soar, toca, toca. Daqui a pouco para. Uma sirene abafa o som com outro som, mais estridente, mais agudo, mais pungente. É sempre doloroso o som das sirenes. Ambulâncias, polícias, bombeiros. Não importa, é sempre dor. Diferente do alarme chato e irritante, que é só um dono distraído que esqueceu dos ouvidos alheios, as sirenes acionam outras coisas, o medo, a angústia, uma bomba, anunciam tragédias- onde não sei, já passaram, velozes, mas o alarme volta a gritar. E as motos adúlteras. E os carros. A pressa. O tempo aprisionado faz barulho demais, na tarde deste domingo azul.

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

O marido da Darlene




O fato ocorreu há um bom par de anos. Mais de dez. 

A festa já ia pela hora aquela, em que as moças trocam o salto pelo chinelo e o sapato do noivo se enche de dinheiros, para ajudar na lua de mel na serra. Em casamento de rico, antigamente, era tudo em dólar. Agora é tudo em cota, mas rico não viaja para a serra em lua de mel. É cota de resort em Cancún, é cota de cruzeiro na Grécia. Rico médio, né? Porque rico rico nem conhece a palavra cota.

Mas esse casamento era de pobre, pobre médio, que viaja para a serra para passar frio e chuva.

Eu falei para a Darlene que a ideia era horrível, ela disse, ah mas a lareira ah mas o vinho, a Darlene é dessas. Romântica.

E pelo jeito, a irmã também. A Damiany. Uma cópia melhorada da Darlene. A caçula das cinco filhas. Magrinha e peituda, como eu gosto. Era o casamento dela. Com o Ferdinando do Xis. O Ferdinando que, diziam, vendia droga lá no trailer. Eu e a Darlene éramos padrinhos. 

A Damiany gosta de filme americano. Todas as madrinhas estavam vestidas iguais, de rosa fraco. Rosa não favorece a Darlene, coitada. Ela lembrava um pirulito de morango, daqueles que se desgastam na primeira lambida. Os padrinhos estavam de fraque, igual ao noivo. Elegantes, confesso: eu ainda não tinha essa barriguinha de futebol. O vestido da Damiany era daqueles que parecem rabo de sereia, os seios empinados fugindo do decote, ela andava miudinho, tão bonitinha a Damiany de noiva, segurando o buquê de rosas amarelas, as unhas pontudas, aquela unha fazia um estrago que nem te conto. Casaram na igreja das Dores, a festa foi no salão paroquial. Ferdinando tinha cara de bandido, acho que era o bigodinho loiro, diziam que tinha engravidado a Damiany e mais uma outra, as duas ao mesmo tempo. Não juntas, no mesmo dia. Ao menos, acho que não. Escolheu a Damiany, bem fez ele. Bonita, gostosa, e mais situada que a irmã, se é que você me entende. Rebola que é uma delícia. Estou falando da dança, do samba, que sou um homem de família, o senhor me respeite. Como eu ia dizendo, a festa estava alta, os convidados também. Já tinha tocado Macarena e tudo. Todos se divertindo, quando a Damiany foi para o microfone.

Já falei que ela gosta de filme americano? Principalmente daqueles bem bestas, de amor, que terminam em casamento. 

Estava muito lindinha a moçoila, nem parecia que tinha embarrigado, a cintura fina, os seios, ah... já falei deles? O que posso fazer, eram hipnotizadores. São, ainda. Enormes e pontudos. Ganhei beliscão da Darlene, mais de uma vez, nos almoços de domingo.

Bom, a Damiany anunciou que cada padrinho poderia fazer um brinde aos noivos, se quisesse.

A música parou, alguns reclamaram. As crianças dormiam no colo das avós, as maquiagens borradas, aquele cheiro de flor morta e cerveja derramada, e a prima Carla sai do banheiro com o marido da tia Ana, pouco antes de acenderem as luzes. Eu vi, ninguém contou. Nunca me enganaram, aqueles dois. 

Cadê minha mulher? Perdi a Darlene de vista há horas. A Darlene, coitada. Coitada da Darlene. Deve estar bêbada, em algum canto, com alguma amiga de infância.

Dou um gole no uísque, para molhar a garganta. Peço a palavra.

" Do noivo, pouco conheço, portanto pouco tenho a falar. A não ser que não poderia ter feito escolha melhor. Literalmente, pelo que dizem, haha. A Damiany é a mulher dos sonhos de todo homem. Discreta e gostosa ao mesmo tempo, magrinha e peituda, o que é Darlene, tô dizendo alguma mentira, de onde tu surgiu mulher, deixa eu elogiar tua irmã, minha cunhada, família é tudo, não é, tia Ana, priminha, tudo em casa, e depois, ninguém rebola como a Damiany, haha. Não que o Ferdinando não tenha percebido, o cara não é bobo nem nada, fala aí mermão, tô mentindo, tu comeu a merenda antes da hora, tô sabendo, não me olha com essa cara, deixa eu fazer a homenagem, o que é Darlene, inferno...."

Minha fala foi interrompida por um estrondo, depois outro. Tiros. 

Levo a mão ao peito, deixo cair o microfone.

O marido da tia Ana está estendido no chão, com o braço sangrando. Correria e gritos, a festa termina com metade do povo no hospital, metade na delegacia. Ninguém morreu, mas da prima Carla ninguém mais soube. Tia Ana e o marido completaram bodas de pérola ano passado. Foi uma festa bonita, renovaram votos e tudo.

Quanto ao casório da Damiany, que a gente chama de faroeste nupcial, sabe como é, piada interna, bobagem, só não pude terminar meu discurso. A Darlene fala que fui salvo pelos tiros. Tem cabimento?

O Ferdinando é que não gosta de mim até hoje, mas juro que é  implicância. Afinal, o Junior nasceu loirinho de olho bem azul. 



Texto para a oficina de escrita, o personagem falastrão. 


quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Estatísticas

 


Estatísticas


Cá entre nós, quem ainda acredita em  príncipe encantado? Tá bem que certas redes sociais até parecem contos de fadas, todos lindos e felizes para sempre, mas você há de concordar comigo: a vida real de noventa e nove por cento das pessoas é uma merda. Mais, eu diria. Noventa e nove, vírgula nove. 

Eu tenho a sorte, ou o azar, de conhecer algumas das exceções. Mas não sou uma delas. Sou apenas a secretária de uma ONG que atende mulheres em situação de vulnerabilidade. Vítimas de violência doméstica. Então, eu sei do que estou falando, quando falo de merda. Você não faz ideia, mesmo que ache que sim. O que sai nos jornais é só a ponta do iceberg. Nosso dia a dia é ferrado, mano. Pesado pra cacete. 

Mas estou desviando do assunto. Vamos lá, o príncipe encantado. Eu nunca acreditei, "para sempre" sempre me pareceu vago demais, tempo demais, assustador demais. Quais as chances, me conta? Abaixo de zero, com certeza.

Hoje estou mais atrapalhada do que de costume. É a noite do jantar e desfile beneficente para arrecadar fundos para a criação da creche. Um projeto meu, de longa data. A maioria das meninas que passa pelo abrigo não tem família, nenhuma rede de apoio para deixar os filhos enquanto estudam ou trabalham. Mães solo, vítimas de todo tipo de abuso. Gente que nunca sonhou na vida. Só teve foi pesadelo, mesmo. 

A creche é para dar um futuro para elas, sabe.

Minha amiga deu um berro quando viu o nome do Vitinho no topo da lista dos patrocinadores. João Victor Cavalcanti de Oliveira Muller, um dos homens mais ricos- e bonitos do Brasil. Para ela, um príncipe. É como o chamam os colunistas, neste país metido a besta, pretensioso de passados e sonhos imperiais. Para mim, é o Vitinho, mesmo. 

Foi meu colega no ensino fundamental, antes de se mudar para a Alemanha com os pais. Ele me pediu em namoro na primeira série, não aceitei por vergonha, mas guardei durante anos um coelho de pelúcia e um anel de vidro que ele me deu. Voltou tem uns meses, nos reencontramos numa festa da turma e ficamos amigos de novo. Do jeito que dá para ser amiga de um cara desses, que nasceu com a bunda, e que bunda, virada para a lua. Ele vive na minha volta, mas não faz parte do meu mundo. 

O meu mundo não é fácil. Meu carro está sempre na oficina, ralo para pagar a faculdade, ralo pra caramba num trabalho que me consome toda a energia. Mas que também me situa, em comparação- não tenho do que me queixar. É tudo perspectiva. Tudo mesmo.

Então, de novo me perdi. Foco, Camila. Voltando:

O Vitinho e a Verônica são as exceções. Os zero ponto um por cento, menos até.  

A Verônica é a namorada dele, modelo internacional, já foi duas vezes capa da Vogue. Lindíssima, perfeita, sem filtros, é a atração principal do desfile, e uma chata de galochas. Cheia das manias, camarim com rosas brancas, toalhas brancas, vinho branco. Chegou de motorista, colar de brilhantes e o cachorrinho a tiracolo, um lulu branco chamado... Lulu.

- Camila, querida, quase não te reconheci.

Acostumada a me ver de jeans e camiseta, estou enfiada num vestido preto e longo, cabelos soltos, sem óculos. Não gosto da fantasia, mas a causa é justa. Vendemos todos os convites e as colunas sociais estão em peso noticiando o evento, ainda que o destaque seja para um possível noivado do casalzinho. Belos, ricos e famosos, etc. 

Os dois conversam encostados a um pilar, sérios e entretidos. Ele de smoking, ela de vermelho. 

O Lulu se meteu entre as pernas de uma senhora peituda, que está alimentando o cãozinho com pedaços de queijo brie. Quem traz cachorro para um jantar beneficente? Arranjo uma babá para o Lulu, antes que alguém pise num cocô em plena pista de dança. 

A Verônica sumiu. Está quase na hora de começar o desfile. João Victor, na mesa principal, brinca com o gelo do uísque. Desde que sentou, não tira os olhos de mim. Deve estar estranhando a minha elegância, também. Malditos saltos. Pergunto pela namorada, dá de ombros. 

- Terminamos. Tenho uma surpresa para você, Camila. Aliás, você está linda. 

- Depois, Vitinho. Depois falamos. Tenho que achar a Verônica. 

Encontro a modelo no meu escritório, no segundo andar. Está soluçando, debruçada sobre uma foto das meninas do abrigo. Quase todas têm menos de 20 anos e vestem a camiseta da ONG. Algumas seguram bebês de colo.

A maquiagem borrada, o rosto desfeito, e ela consegue ser bonita mesmo quando chora, a filha da mãe. Faço um carinho em seus ombros, um pouco compadecida, mas também impaciente e irritada. Tnham que terminar logo nesta noite?

- Verônica... não fica assim...

- Ah, Camila. O que vocês fazem aqui é maravilhoso, eu te admiro.

Tudo bem, obrigada, ótimo, mas vamos lá. Chega de choramingos. Está todo mundo esperando. Não tenho tempo de responder, ela murmura:

- Eu te odeio. Mas agora acho que sei.

- Sabe o quê, mulher do céu?

Levanta o queixo. Seus olhos faíscam.

- Sei porque ele se apaixonou por você. 


PS: Exercício confuso, para a oficina. O personagem sedutor. 

Conclusão da aula: para haver sedução, precisamos de tempo. Talvez não o tempo de um conto, algum tempo mais longo.

Mas tá valendo, sempre vale.

😉❤

sábado, 2 de outubro de 2021

Espelhinho é a mãe





A liberdade de não pertencer
Ou... como tem babaca nesse mundo:

Sábado pela manhã, pós feirinha, pré plantão, dia de primavera, céu azul, temperatura amena e uma bicicleta de cestinho, uma mulher pedalando não quer briga com ninguém. 
- Próxima aquisição tem que ser um espelhinho, né moça?
Barba grisalha, voz arrastada de portoalegrense, alá magro do bonfa, roupa coloridíssima de ciclista e um sorriso cínico desmascarado.
Peço desculpa por reflexo, sem pensar. Educação. Não tive culpa do que não aconteceu. Não aconteceu nada, apesar do homem achar por bem me ultrapassar numa curva da ciclovia, ali em frente ao Palácio da Polícia, bem onde um poste afunila o trajeto em via única, sem sequer buzinar. Passa tirando fininho, e me culpa. Ok.
Ele segue, veloz na sua bermuda acolchoada, voando talvez de encontro ao bando. E eu sigo no meu ritmo passeio, subitamente irritada pela advertência e ironia sem propósito, com vontade de engolir de volta o pedido de desculpas que escapou pela máscara, porque sim. Porque assim fomos acostumadas, a pedir desculpas sem ter culpa.
Respiro fundo, om, shanti, krishna, ave maria e outros mantras para não estragar a manhã bonita, chego na beira do rio. Vento contra, pouca gente, já passou. Deixa ir, a vida é boa sobre as duas rodas, sob o sol.
- Oi, te achei de novo. Não me leva a mal pelo comentário, tá? Mas que um espelho é uma boa, isso é. 
Seguro com força meu dedo do meio para não levantar do guidão, sem querer.
- Tanto quanto uma buzina e um pouco de noção, né moço?
Ele dá de ombros, e pedala forte, para longe. Já está no bando. 
Um bando de homens de roupas coloridas, bermudas acolchoadas e rodas grossas. Muito grossas e cheias de razão.

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Namastê

   



   Namastê 

A Bia mora com a gente, porque é mais fácil assim. Duas horas de ônibus para ir e duas para voltar, todo dia. Fora o preço da passagem, inviável. 

Ajeitei o quartinho dos fundos, comprei um baú, um radio-televisão e uma poltrona daquelas que vira cama, para não ficar muito apertado. O quarto não tem janela, então melhor que a porta não feche com a cama montada, mesmo. Mas é tranquilo, a Bia é pequeninha, não tem 1,50 m. E eu super respeito a privacidade dela.

Já avisei o Joaquim e os meninos, a área de serviço à noite é território proibido. Depois que ela termina a louça, fechamos a porta da cozinha que dá para lá, e ninguém mais a incomoda. Pode ouvir música, ver novela, tomar banho. A não ser quando um dos garotos tem febre, ou quando ela fica cuidando das crianças  para eu ter um vale-night com o maridão. Aí ela pode ficar na sala, assistindo desenho no Netflix com eles. Mas eu pago por fora, nessas ocasiões, porque a Bia é minha secretária do lar, acho horrível o termo empregada, e ela não é nossa babá. 

Nem eu tenho condições de ter babá, com o custo de vida aqui em São Paulo, a escola dos guris, o clube de golfe e o meu pós. Tudo carésimo, Joaquim mal dá conta. Vive se queixando.

A Bia me ajuda para caramba, sabe, mas é troca. Sou muito justa com todo mundo que trabalha para mim, sempre fui, assino carteira, faço questão de pagar tudo certinho, salário mínimo, INSS. Ela diz que eu sou um anjo na vida dela. E que os meninos são os capetinhas.

Caiu de paraquedas aqui em casa, indicação de uma amiga da yoga. Sorte minha e dela. Coitada, veio do interior da Bahia, não vê a mãe faz uns quatro anos, não conhece ninguém na capital. Mas tem uns aparentados em Guarulhos. Todo fim de semana a gente leva ela até lá, de carro, para ficar sábado e domingo, na segunda cedo o namoradinho traz na moto. Ela não sabe andar de ônibus, bichinha, morre de medo. Veio para cá muito nova. E eu acho melhor assim, porque é muito perigoso o transporte público, além da violência e do risco de assalto, é um pouco nojento aquela gente toda suada.

E a Bia fica mais restrita, mais caseira. Evita bateção de perna desnecessária. Faz as coisas que tem que fazer a pé, aqui pelo bairro mesmo. Passeia o cachorro, leva os meninos na natação, busca. Cozinha um feijão que é uma delícia, compra pão cedinho na padaria, quando saio do banho ela já passou o café e espremeu as laranjas. É uma mordomia que eu não esperava ter, mas a Bia faz questão de nos servir café da manhã,  almoço e janta. E na verdade, acho que é bem justo, por eu deixar ela morar aqui. Bem ou mal, é mais uma boca para alimentar. Ela come o mesmo que a gente, coisa simples, de dia a dia. Não fico controlando, só os chocolates e biscoitos dos meninos que guardo no meu armário. Não quero ninguém diabético aqui em casa.

Mas não deixa de ser uma estranha, num apartamento que nem é tão grande. É  sempre um pouco esquisito. Apesar de que agora a Bia já é quase da família. Estamos pensando em levar ela junto, nas próximas férias em Balneário, ainda não contei para não se empolgar demais, vai depender das promoções. Ela nunca andou de avião na vida, vai ficar contente.

Quando estou estudando no computador, ela limpa tudo em silêncio, sei que gosta de cantarolar, mas ela sabe quando incomoda e isso é uma qualidade da Bia que admiro, faço questão de elogiar. Assim como ela já disse que admira meu jeito de vestir, de falar, meu perfume, até achou uma imitação num dos livrinhos que a prima emprestou e eu dei de presente para ela, não me custa agradar um pouco, fazer um mimo. Foi baratinho, pudera, o cheiro é horroroso de forte, mas ela não usa no trabalho, a Bia tem noção.

Não é por nada, mas nem parece que tive dois filhos, mesmo. Com quase 40, estou na minha melhor forma. O emprego de meio turno na boutique da Lu, aqui em Moema, veio a calhar. Como gerente, ganho um descontão nas roupas, e ainda conheço gente grandona, bons contatos são tudo na vida, sempre falo para a Bia. A Lu é uma chata, pedante e esnobe , mas é minha amiga mais próxima em São Paulo. Outro dia fui almoçar na casa dela, nos Jardins. Luxo puro, tudo lindo, pratarias e grana de família, adega de vinhos e jardim de inverno, mas aí que a gente vê que dinheiro não compra educação. É impressionante o jeito como trata os funcionários. Só faltou o chicote e o tronco. Isso porque a cozinheira errou o ponto do molho, um tal de grave, e olha que não estava ruim, não. Muita grosseria, fiquei boba. Uma mulher tão fina e elegante, sem consideração nenhuma. Chega a dar vergonha alheia. Como pode?

Eu contei para a Bia, para ela saber a diferença, para ver a sorte que ela teve. Eu tenho sorte de ter a Bia também, querida.  

Mas é importante a gente falar, dar ênfase, se valorizar. Para darem valor. Gratitude é um must.


Texto para a oficina de escrita. Personagem dependente. 

sábado, 25 de setembro de 2021

25 de setembro



Gente humilde

Tem certos dias

Em que eu penso em minha gente

E sinto assim

Todo o meu peito se apertar

Porque parece

Que acontece de repente

Feito um desejo de eu viver

Sem me notar

Igual a como

Quando eu passo no subúrbio

Eu muito bem

Vindo de trem de algum lugar

E aí me dá

Como uma inveja dessa gente

Que vai em frente

Sem nem ter com quem contar

São casas simples

Com cadeiras na calçada

E na fachada

Escrito em cima que é um lar

Pela varanda

Flores tristes e baldias

Como a alegria

Que não tem onde encostar

E aí me dá uma tristeza

No meu peito

Feito um despeito

De eu não ter como lutar

E eu que não creio

Peço a Deus por minha gente

É gente humilde

Que vontade de chorar 


Todos os meus (5) leitores sabem que tenho temas recorrentes, e sendo o Chico a trilha sonora das minhas lides, inevitável que volte a ele, volta e meia. Outro dia, cozinhando o almoço do domingo, ouvi esta música que há muito não ouvia, entre outras tantas que são ao mesmo tempo poema, conto, crônica e romance, é muito impressionante o tanto de mundo e história que vai em cada melodia.

Toda vez que escuto Chico me quedo embasbacada, e reverencio a genialidade, a inteligência, o deboche e a doçura de um cara que para mim é um dos grandes mestres da língua portuguesa. 

Mas esta canção, em especial, tem um significado muito particular, porque esta música conheci pelo violão e voz da minha mãe, que cantava lindamente.

Eu, menina de uns sete ou oito anos,  sempre pedia a ela para tocar Gente Humilde. Fechava os olhos e imaginava o cenário, os lares, as varandas, completamente transportada e tocada por essa gente que vai em frente sem nem ter com quem contar. Na fachada escrito em cima que é um lar, ai que vontade de chorar, e eu invariavelmente chorava de verdade.

Eu gostava de ouvir e chorar, eu pedia para ela cantar, para poder chorar. Sabe-se lá porquê. Coisas de criança.

Ouvir a mãe cantar era sempre emocionante.

E acho que foi esta canção que primeiro me ensinou a empatia, na voz bonita da mulher que primeiro me ensinou a amar. 


Lembro disso agora, porque num dia como hoje, na Londres da segunda guerra, há 78 anos ela nasceu.💙

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Apesar de você





"Tuas noites são de gala

Nosso samba inda é na rua"


Eu conheço esta voz. Ou estou muito bêbado, ou é a Darlene cantando. Quem te viu, quem te vê...

Entro no bar, está escuro e enfumaçado. No palco tem um cara de barbicha dedilhando um violão, e no microfone, sim, é ela. A Darlene, cabelo mais curto, mais claro, um vestido solto, decotado nas costas, continua gorda, as panturrilhas grossas apertadas pelas tiras da sandália alta, mas está ajeitada, lá do jeito dela, a voz rouca cantando Chico, sempre gostou dessas porcarias de MPB, dor de cotovelo e tals.

Meu paletó enlaça o teu vestido, quando a Darlene foi embora levou tudo o que era dela, as roupas coloridas, as bijouterias, as botas, os porta-retratos, a louça do casamento, a geladeira, o forno de microondas. E o cachorro. Trocando em miúdos, pode guardar /as sombras de tudo que chamam lar...

Bebo uma cerveja e me encosto no balcão. Peço um torresminho. Desde que a Darlene me deixou, foi logo na volta das malditas férias, janto pelos bares aqui da cidade baixa. Ainda não comprei a geladeira, nem o microondas. Não faz falta, igual a Darlene.

Aquela loira peituda, na mesa junto ao palco- parece a Nina lá do resort, não pode ser, será que ficaram tão amigas assim? Que eu saiba, a outra mora em São Paulo.

Amaram o amor serenado

Das noturnas praias

Levantavam as saias

E se enluaravam de felicidade

É a Nina, sim. Reconheci pela bunda.

Música besta, por que a Darlene não canta um pagodinho raíz, parece até que esqueceu de onde veio, quem é de verdade. Ficou besta. 

Foi depois que começou a trabalhar. Eu sempre digo, mulher não pode ganhar mais do que homem. Um dia, fui buscar ela no serviço, reclamou que eu não abri a porta para ela, que estava com as mãos ocupadas, blabla. Até parece que ela não conhece meu ditado: quando um homem abre a porta do carro para uma mulher, das duas uma: ou a mulher é nova, ou o carro é. E o meu carro está na oficina há mais de mês, sei lá se volta.

Qual o quê?

Só bebendo para aturar este petista chato na voz da minha ex- mulher, agora está achando que sabe sambar, arrasa, o meu projeto de vida, bandida...

Tem mulher que se acha. A Darlene é dessas, parece que não tem espelho em casa. Joga o cabelo, sensualiza com os ombros, faz biquinho, rebola. Onde será que aprendeu esses modos? 

Dois caras aqui do lado, falando que ela é gostosa, que canta para cacete, dois bichinhas, claro. Não entendem de mulher. Ela é feita pra apanhar, ela é boa de cuspir. Pronto, agora sim. Uma música que faz sentido para a Darlene. 

Ainda bem que nenhum dos meus amigos vem em barzinho metido a cult, imagina a vergonha alheia, ver a Darlene toda toda, cantando estas músicas bregas, beijando a loira na boca. Sério isso?

Olha quem chegou na mesa, o instrutor veado, também ganhou beijo na boca. Das duas.

Uma pouca vergonha, não é por falta de aviso, tem a ver com a tal ditadura gay. Vai deixando se criarem. Querem destruir a família brasileira, os bons costumes, quem diria que a minha Darleninha, tão ingênua que era, iria se transformar numa cantora de cabaré de quinta categoria. Aquela viagem, eu deveria ter adivinhado. Deixei a Darlene solta, mulher a gente leva é no cabestro apertado, feito égua chucra. Deu no que deu. Deu. 


A Darlene me vê aqui no balcão. 

Abre um sorriso, toda feliz. Acho que botou silicone na boca, que nem a amiga, arrumou os dentes com certeza. Fez clareamento e tudo.

Ela se vira na minha direção, empina o peito e segura o o microfone com as duas mãos. Levanta o queixo, solta a voz, fica séria. Olhos nos olhos: 


(...)quero ver o que você diz

Quero ver como suporta me ver tão feliz...

domingo, 19 de setembro de 2021

Maresias



Anos depois, se encontraram por acaso, na calçada junto ao jasmineiro. 

Era final de setembro e os ipês amarelos já haviam florido, e a floração já havia até passado, efêmero que é quase tudo que é flor.

Quase tudo que encanta tem os tempos contados.

Foi numa manhã de domingo, um desses dias amenos, nem quente nem frio, a neblina recém descortinada, um céu azul pálido e o chão ainda úmido de orvalho.

Ela passeava o cachorro, distraída.

O cheiro de jasmim a faz parar por instantes, o cão aproveita o arbusto, e o perfume a assalta na esquina, num golfo adocicado. 

A memória é antes de tudo uma célula olfativa.

O bacon frito da torta de carne, o vapor do bolo desfornado, ainda quente, o laquê da avó, o odor de alvejante do banheiro das meninas, a fragrância das folhas do mimeógrafo, o cheiro de óleo e gasolina na garagem da casa velha, o cheiro inconfundível do vento, e quem é do vento sabe, a maresia, ah, a maresia feito sexo e areia entranhando nas narinas, o aroma ácido, áspero, do marinheiro há muito naufragado, a essência de baunilha em pitadas de saudade, aqui e ali, um jasmineiro.

O olfato é a máquina do tempo dos afetos.

O cachorro segue, pelas lajotas, a linha das formigas carregadeiras, ocupadas que estão a receber a recém chegada primavera. Duas borboletas brancas dançam ao som dos sabiás desafinados, não há carros na rua domingueira, e não há alma viva a perturbar o silêncio da velha mulher que passeia. 

Domingo é o ocaso da semana, a cidade se alenta em preguiças e moletons surrados, em cafés que se demoram, nas lasanhas de família e nas tardes intermináveis em frente à televisão. 

Mas é manhã ainda, e a mulher que passeia não espera, não deseja, não tem pressa. Apenas anda a esmo, acompanhada do curioso cão, absorta pelos cheiros acordados no arbusto, estranhamente saudosa da mãe partida e outros amores, dos distantes dias, mais barulhentos, confusos e fáceis, quando a vida, o mundo, a mulher eram ainda, um poço de possibilidades.

Caminha no seu passo lento, perdida em nostalgias tontas, e não vê o homem de cabelos grisalhos que se aproxima, subindo a lomba com apoio da bengala, até que o cachorro late, feliz, até sentir uma mão fria na nuca, e ouvir a voz rouca, tão conhecida e há tanto esquecida, desbotada como tudo, pelos lapsos de tempo:

- Marília?

Súbito, a brisa da primavera levanta uma poeira, e um novo velho perfume se espaira no ar. 





quinta-feira, 9 de setembro de 2021

A sorte da Darlene



 

Só vim por insistência da Darlene. Ela ganhou a estadia num sorteio da firma. Parcelei as passagens em 12 meses, e aqui estamos nós, neste resort all inclusive metido a besta, cinco piscinas, spa, o escambau, a coitada nem sabe nadar, não tem nem roupa para isso, e eu tenho que aguentar os gritinhos dela a cada novidade que se apresenta.

Ontem foi a lagosta, não sei que tanta graça achou naquilo. Me atacou a gastrite, passei a noite arrotando o molho branco. Pedi um sonrisal e suco de tomate no café da manhã, foi o que salvou. 

No primeiro dia a deslumbrada se deitou nas pétalas de rosa em cima da cama, sensualizando, achei aquilo de uma breguice sem tamanho. Morri de rir. A cama é enorme, cheia de travesseiros, acho que cabem uns quatro, mesmo que sejam gordos que nem a Darlene. 

Ainda queria que eu comesse ela na jacuzzi, ficou assanhada com uma taça de espumante, a tonta. Tomei o resto da garrafa, mais a cerveja do frigobar, que bebida não pega fácil em macho, ainda mais de graça. Virei para o lado e dormi sem encostar nela. Tenho pavor de mulher falando alto, bêbada, se querendo. Mulher tem que ser discreta, saber se comportar direito. Mesmo nas quatro paredes, não dou mole não. Já proibi de beber, se é fraca vai ficar no suco de caju, para não inventar moda.

Agora foi lá para a aula de hidroginástica, naquele maiô preto que não disfarça a barriga flácida nem a bunda de mãezinha, como eu digo. Fico até com vergonha, porque tem cada mulherão aqui, até umas atrizes que a Darlene conhece, eu não, que não sou homem de ver novela, menos ainda daquela emissora lixo.

Está conversando animada com o instrutor, um cara de sunguinha vermelha, depilado e tão cheio de músculo que só pode tomar bomba. De tão perfeito deve ser veado, só pode, que homem de verdade tem que ter barriguinha, pelos nas costas, uma careca de respeito. Testosterona. Para não deixar dúvida. Tem que suar, sovaco cabeludo, tem que ter fungo na unha dos pés. A Darlene me deu um creme para as frieiras, vê se eu vou usar creminho, tem cabimento. Aliás, preciso pedir para a Darlene cortar essas unhas, já estão furando a meia.

Tomei um torrão na praia hoje. O médico da enfermaria me receitou remédio para aliviar a dor, falou para tirar a corrente do pescoço, estava machucando. Presente da Darlene, acho quem nem ouro é. Fiquei com a marca do crucifixo. O doutor também mandou eu me hidratar, tomar água de coco, essa merda que tem aos montes aqui. E evitar álcool, agora imagina férias com a Darlene, sem beber, nem fodendo.

Arde tanto que não consigo deitar na rede para ouvir meu futebol sossegado. Também, esse time está tão ruim que não passam as partidas na televisão. Queria era estar no estádio com a parceria, churrascada depois, isso sim é domingo que se preze.

O bom é que assim arranjei desculpa para não ir mais à praia, quem é que gosta de areia em tudo que é buraco? Ainda inventaram um passeio de escuna para ver os corais. Todo dia é uma coisa diferente, tudo com nome inglês. Frescobol virou beach tennis, agora. Darlene está louca para aprender, que vá sozinha passar vexame. Ela acha tudo lindo.

A Darlene é muito dada, impressionante, conversa com deus e o mundo. Fez amizade com uma loira gostosa, toda siliconada nos peitos, nos lábios, a bunda tão empinada que só falta saltar, diz que a mulher é casada com um velho cheio da grana. Marcaram de jantar na boate esta noite.

Parece uma noiva para se arrumar, como se adiantasse. Sai do banheiro toda perfumada, enjoativa. Prendeu os crespos, meteu um vestido curto, de lantejoula, batom cor de boca, sombra preta.

- Tá achando que é carnaval, Darlene?

A loira se chama Nina, está embalada a vácuo num tubinho branco, costas de fora, um tesão. Tem gente que tem classe, e tem a Darlene.

O marido é um baixinho cem anos mais velho, acho que vai pegar no sono logo. Peço bife mal passado com batata frita, por garantia. Cerveja para mim, limonada para a Darlene.

Ela inventa que quer dançar, que a música está ótima, strangers in the night. Eu só  quero tomar meu uísque em paz, então ela se vai para a pista com a amiga. Fico de olho nas duas.

O contraste, credo. 

Nina oferece bebida, a outra aceita- não vai prestar, já sei.

Estão se roçando, dançando de um jeito bagaceiro, parecem duas cobras. Safadas.

É bom de ver, admito. 

Mais tarde eu me acerto com a Darlene, coloco nos eixos, deixa chegar no quarto. 

Preciso mijar. Toda hora isso. 

O banheiro é todo espelhado, tem cheiro de perfume francês, não de mijo, nem parece banheiro de homem. Tem até fio dental. Olho a minha cara barbuda no espelho, a testa lustrosa. Fecho o botão da polo listrada, assim não aparece a marca da cruz. Não deu para colocar a corrente de volta, azar. 

A música mudou, mas o espetáculo continua, está parecendo filme pornô, não que eu assista a este tipo de coisa, sou homem de família, não gosto de sacanagem.

Olha só quem chegou. O instrutor. 

Bronzeado, de camisa cor de rosa justa, realçando o peitoral, mangas dobradas à perfeição, os braços morenos, a calça jeans apertada nas coxas. 

Que homem bonito, eu diria. Se eu fosse destes tipos que acham homem bonito, o que não sou.

As duas se abraçam, se esfregam nele, o puxam para um canto. Rebolam, dão risada, e bebem. A Darlene esqueceu de mim, pelo jeito. Deixa estar.

O velhote cochila, peço mais um uísque. Passo um gelo na nuca, está ficando quente. Maldito sol. Sinto arrepios e meu corpo arde. 


O instrutor sorri, os dentes brancos se destacam na luz negra. Dança bem, o moço.

Deve ser veado. Tem que ser.


Texto pra oficina, o protagonista odioso. 

terça-feira, 7 de setembro de 2021

Seis de setembro

 




Isso é novo, essa dor.

Chegou de repente, sem bater na porta, depois do café da manhã. As dores que chegam de manhã são sempre mais perigosas.
Invadiu o banheiro enquanto penteava os cabelos, logo depois de escovar os dentes e passar um creme no rosto.
É preciso proteger sempre o rosto. Todo dia, ao acordar e antes de dormir, duas ou três gotas de ilusão vendida em potes. É preciso se cuidar o tempo todo- do sol, das rugas, dos descalabros. Do tempo.
E das ilusões.
A nova dor chegou segundos antes do rímel, e foi a sorte, evitando, com seu timing preciso, que as lágrimas corressem escuras e escandalosas.
Foram sim, caudalosas, mas discretas, cristalinas e quentes como devem ser as lágrimas de bem. Decentes. Facilmente laváveis.
Ela (a dor) veio como quem chega do nada, mas já com ares de quem está pensando em fixar terreno, construir um puxadinho, se abancar naquele lugar onde as dores desse tipo gostam de fazer morada.
Entre a garganta e o osso do peito, onde sobrevivem de aperto, de roubar o ar e o alimento, de tirar apetites, arrancar suspiros, de disparar os corações cansados, a torto e a direito.
Vivem (as dores essas) de transbordar os copos, qualquer gota d'água no acumulado de mágoa, na exaustão da esperança, da utopia que luta, trabalha, que busca sentido em qualquer sentir, depois dorme ao sol se pôr.
E se refaz em madrugadas lentas, nos sonhos turbulentos, para renascer no outro dia, seis horas da manhã.
Para, no instante de escovar os dentes, pouco antes, pouco depois, grudar na cara feito blush, rímel e pó de arroz. E só então sair porta afora, na fantasia um pouco comovente e um tanto patética, da mulher forte, inquebrável, guerreira.
A esperança é a armadura, a maquiagem e a máscara de quem não quer (nem pode) desistir. Só que às vezes, a esperança não acorda, não.
Deixa os frascos vazios, ausente, deixa um vácuo. Mas os vácuos não existem.

Aí vem essa dor nova, com ares de temporal.
E chove.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

A nova governanta do Hotel Paris

 



A nova governanta do Hotel Paris

                               Daniela Altmayer





Dois meses. É o tempo que falta para eu assumir minha nova função, governanta do Hotel Paris. Não que eu já não faça o trabalho todo, mas em dois meses vai ser de papel assinado, na carteira, uniforme novo, lenço no pescoço, plaquinha dourada com meu nome: Mabel B.
A Marta está se aposentando, vai morar com a filha na capital, coitada, pensa que vai ajudar a cuidar dos netos, mas não é isso. A Marta anda meio esquecida faz tempo e, não fosse eu, nada estaria funcionando nesse mausoléu. Levo as meninas num cortado que dá gosto de ver, os quartos têm que estar sempre arrumados e cheirosos, o chão de taboão bem encerado, a prataria brilhando, os vitrais limpos e os banheiros impecáveis. Não é porque é velho e falta manutenção que a gente vai relaxar, pelo contrário. Aí que entra o capricho. Inspeciono tudo, de lupa: elas não me suportam, as camareiras. A Marta disse que me apelidaram de general, nem ligo. Não importa a opinião desse bando de caturritas, o que interessa é que o seu Carlos me elogia sempre, e a Marta me adora. Foi ela quem me ensinou a ser assim, detalhista. Quase chata, como tem que ser.
Entrei nesse hotel bem novinha, logo fui promovida a camareira sênior, o que sou até hoje. Ninguém dobra um lençol como eu, quero ver achar um vinco, uma ruga sequer. A Rosa do 53 só deixa eu entrar no apartamento dela, está cada vez mais esquisita e cheia de manias, desde que o último amante se foi. Um menino de 20 anos, magrinho e franzino, parecia até doente. E ela toda grandona, toda velha, os braços pelancudos, os seios encostando no umbigo. Eu tinha um pouco de nojo quando chegava de manhã e encontrava os dois na cama. Não sei que tanta graça acham, nunca me interessei nessas coisas. Sou muito discreta.
A Marta me alertou desde o começo, discrição e disciplina são fundamentais para se dar bem neste ofício. Dizem que quem paga o quarto da Rosa é um ex-político conhecido da cidade, parece que está pago até ela morrer. No hotel, de morador só tem a Rosa e o Ruiz, um argentino que não vai com a minha cara. Ele mora na cobertura, suíte presidencial. Fumante e mulherengo, tomador de uísque, pior tipo. De resto, só os hóspedes temporários, cada vez mais escassos e menos interessantes, trabalhadores do porto, representantes comerciais, uma ou outra puta, um turista desavisado, que essa cidade não se presta para isso. Lembro de quando acontecia a feira agrícola na região, era um tanto de fazendeiro rico e mulher cheia de jóia, o restaurante do hotel ainda tinha aquele lustre enorme de cristal, o piano era afinado e a música, boa. Faz tempo isso, bons tempos. Era muito chique jantar no Paris.
A Marta está bem ruinzinha hoje, ficou deitada lá no quartinho dela, pediu para eu receber a menina nova. Parece que é amiga da filha do seu Carlos, a que está estudando fora. Carolina não sei de quê. Magra ela, toda elegante, cabelo curto de francesa, unhas feitas. Simpática também. Fala espanhol, está conversando com seu Ruiz. Ele, que estava rindo feito bobo, fecha a cara quando me vê. Cuidado com essa daí, diz. Ele pensa que não sei que me chama de bruxa? Seu Carlos também está todo derretido com a Carolzinha, homem não pode ver mulher nova que já arria os quatro. Carol, tu vai aprender tudo com a Mabel Beatriz, ele sempre me chama assim, pelos dois nomes. Mas na plaquinha dourada vai estar escrito só Mabel B.
Falo para a Carolina tirar o esmalte vermelho das unhas, explico o serviço, alcanço o uniforme engomado, aposto que nunca pegou numa vassoura na vida.
Ela é boazinha, tem jeito de sonsa, mas até que aprende rápido. Fez curso de hotelaria, cheia de ideias.
Ontem levou uns lírios para a Marta, elogiou os netos dela. A Marta fica toda boba. Coitada, está cada dia pior da cabeça.
Esta manhã me atrasei um pouco, quando cheguei com o café, a Carolzinha já estava abrindo as cortinas do quarto da Rosa, as duas no maior papo de comadre, olhando fotos antigas, mulherão hein, Rosa? Nem me viram deixar a bandeja.
Ela também conseguiu que o seu Carlos comprasse travesseiros e roupa de cama nova, e que pintasse o terceiro andar, onde teve a infiltração ano passado.
Não sei de onde estão tirando dinheiro para as reformas, onde já se viu pintar parede de cor forte, amarelo, vermelho? Mas está ficando bonito, isso tenho que admitir. A Carol também fica bonita no uniforme, a touca preta em contraste com o loiro quase branco, a testa alta, os olhos verdes delineados, a boca rosada sempre sorrindo, as mãos hábeis para fazer a dobra. Parece saída de um filme antigo, da Marilyn Monroe, com aquele aventalzinho de voil marcando a cintura fina, pudera, come feito passarinho.
A Marta me falou que seu Ruiz está encantado, aquele sem vergonha. Chama ela a qualquer hora, dá chocolate, livro, vinho caro, acho que está apaixonado.
Metade do hotel está apaixonado pela Carolina.
As meninas da cozinha guardam doces e sobremesas para ela, as camareiras estão mais sorridentes, os quartos mais arejados e o recepcionista da noite finalmente fez a barba.
O seu Carlos vem todo dia, agora.
Estão planejando abrir o salão de festas para eventos, já tem um casamento e um batizado agendados. É bom que dá movimento.
Falta menos de um mês para a Marta se aposentar, pobrezinha. Já não resolve mais nada. Se não fosse eu, não gosto nem de pensar.
Amanhã vem o filho do seu Ruiz, de Buenos Aires. Vai ficar no andar abaixo da cobertura, seu Carlos pediu para arrumar o 69. Se não me engano, tem uma torneira pingando naquela suíte, preciso ver isso, chamar o Márcio- o cretino do encanador que vive furando comigo. Vou lá conferir, depois ligo para ele, nem que tenha que ameaçar.
Não acho o molho das chaves, não está no prego, ninguém viu. Pego a chave mestra, bufando. É cedo ainda.
O apartamento é amplo, com uma antessala onde flores delicadas estão dispostas na mesa de centro, num vaso de porcelana fina, junto a uma caixa de charutos e um cinzeiro de pedra. É proibido fumar no hotel, mas o seu Ruiz e o filho podem.
Passo os dedos no toucador, nem um traço de poeira, o espelho sem marcas me devolve um rosto bem marcado. Anos de trabalho duro e dedicação exclusiva cobraram o preço da juventude, sorte que não ligo para essas coisas. Como diz o outro, beleza não põe mesa. E ainda desarruma a cama, digo eu.
Sobre a antiga cama de dossel, os lençóis brancos, lisos e imaculados, almofadas verde-musgo e toalhas felpudas dobradas com esmero. Um perfume suave toma conta do ambiente. Cheiro de roupa limpa e almíscar. O quarto está perfeito.
Carolzinha sai do banheiro, cantarolando em francês. Parece um anjo. Atrás dela, o encanador suado cumprimenta, tirando o boné: problema resolvido, tá tudo tinindo, dona Raquel. Ops, Mabel.
Mabel Beatriz na certidão. Para a plaquinha dourada, Mabel B.

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Vinte e um






Vinte e um anos e nove meses do nascimento do meu amor errado, tão certo, do meu amor assustado, assombrado pelas dores, delícias e vulgaridades de se ter alguém assim tão dentro, tão íntimo, tão fora e tão outro.


Vinte e um anos e nove meses de aprendizado, decepções, alegrias e tristezas, tudo junto e misturado, e tudo elevado a potências estratosféricas, potências essas que só um amor de mãe pode calcular.

Que só um amor de mãe pode dar conta, desmedir, na conta que, mesmo assim, nunca fecha.
Vinte e um anos, e parece que foi ontem que vi pela primeira vez o azul profundo dos teus olhos, ainda outro dia eu te pegava no colo, te segurava pela mão, e tua mão ainda cabia na minha.
Vinte e um anos se passaram num piscar de olhos, e não imagino minha vida sem ter concebido a tua.
Metade do que sou, é porque tu és.
É tão bom saber que tu existe, te saber tão bonito por dentro, mais ainda do que por fora, tão inteiro, tão querido, tão legal. Meu implicante preferido. Obrigada por dividir comigo o mesmo tempo-espaço.
Te desejo amor, saúde, paz. E integridade, que é o essencial. O resto a gente corre atrás.
Estou do teu lado desde sempre, e para sempre. Conta comigo para tudo.
Te amo no infinito do universo.
Happy 21!

PS
E veio com a vacina, o melhor presente. Grande dia!

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Iniciais

 


Gabriel Silva, comum demais. Solicitação de amizade na rede social, a foto meio desfocada, um homem meio barrigudo, de cabelos grisalhos, óculos escuros e regata. Entro no perfil, não tem muita coisa. Examino a foto, a tatuagem no ombro, uma águia, as iniciais do nome -dou um zoom. Conheço essa tatuagem. Gabriel Henrique da Silva. O Ique. 

Fecho a página, volto mais de trinta anos. Quinze anos, e um coração partido na primeira valsa, o primeiro porre, os rodopios com o par espinhento, o salão decorado de rosa. A viagem para a Disney, os cartões postais, o presente, uma camiseta do Hard Rock, que ele desdenhou, rindo das histórias que eu contava, num misto de deboche e graça, vocês fazem tudo igual, se parecem com todo mundo. Ele não se parecia com ninguém que eu conhecia, era um homem já, de seus vinte e tantos, a pele morena, os braços fortes, as tatuagens, o cabelo aloirado de surfista, uma boca larga. Andava de skate, não no colégio, claro, que era proibido, o pai dizia que era coisa de marginal. Andava lá na lomba da Barão. 

Tinha vindo da praia para trabalhar em Porto Alegre, e morava num quartinho anexo à portaria da escola, queria fazer faculdade de educação física. Usava um uniforme azul, tinha olhos puxados, de gato. Nas tardes de sábado, dia do treino de vôlei, era o Ique quem abria o ginásio, e ficava por ali, de bermuda, fumando, escutando heavy metal no walkman, observando os saques e as pernas das meninas. De vez em quando a namorada também aparecia, não sei se era permitido, mas nos sábados não tinha ninguém para controlar. A Verônica, uma estagiária peituda que trabalhava na secretaria e cursava letras à noite, mulher mais velha, sempre de batom vermelho, com a bunda e a sensualidade que me faltavam, que faltam até hoje. Vulgar, minha mãe diria. 

Eu imaginava os dois naquela cama apertada, no quarto sem janelas, a única luz que entrava era pela basculante do banheiro.O quarto tinha um cheiro de tabaco e suor, de colônia barata, cheiro forte de homem. Na primeira vez que entrei ali, senti enjoo e susto, eu, com meu uniforme impecável e detestado, a saia plissada, as meias brancas, a mochila de grife. Atônita com a desordem e a sujeira, não arrisquei tocar em nada. Sentei na beira da cama, enquanto ele ficava de joelhos e desabotoava minha camisa. Depois acostumei com o cheiro e a confusão, até gostei. Gostava de tudo nele, comecei a fumar, a mentir. Inventava desculpas para ficar até bem mais tarde, estudando na biblioteca. O motorista era meu cúmplice silencioso, me dava balas de menta, ninguém perguntava nada, contanto que as notas estivessem boas, e estavam. 

A Verônica uma vez me pegou no corredor, e me disse que sabia o que estava acontecendo, me chamou de trouxa, falou que o Ique ia se ferrar por se meter com uma menina, filhinha de papai, ele só está tirando uma onda contigo, não acha que tu é especial não, uma fedelha sem sal dessas. 

Saiu pisando forte, rebolando, os saltos estalando nas lajotas. Vulgar. 

Não contei nada para ele, mas naquela noite eu chorei escrevendo no meu diário. No dia seguinte, pintei os lábios de vermelho pela primeira vez. O Ique disse que eu parecia uma puta, e isso me deixou feliz. Nenhuma das minhas amigas sabia de nós, nunca falei para ninguém. Só para a psicóloga, anos depois. 

Quando voltei da viagem de férias, em março, ele não estava mais lá. Nem a Verônica. O quartinho estava trancado e o novo zelador era um velho que não morava no colégio. Os rumores eram de que ele havia sido demitido, a pedido do pai de uma aluna, mas nunca descobri quem, nem porquê. 

Gabriel Henrique Silva. É, o tempo não foi gentil com ele, mas por que deveria?

Um cheiro conhecido me sobe às narinas, excluo a solicitação e vou até a sacada acender um cigarro. 

Nunca consegui deixar de fumar.


(Exercício para a oficina de escrita- o protagonista tímido. De volta aos contos.)

domingo, 8 de agosto de 2021

Nosso país




Sem público, sem torcida, mas com nossos aplausos.

A vitória sobre o medo, as histórias de superação. 

Os ouros, pratas, bronzes.

As máscaras, as distâncias, fusos.

As lágrimas, os risos, a redenção do hino. 

A reapropriação da bandeira. 

Verde, amarelo, azul e negra, são as cores do nosso país.

Redivivas, triunfantes, o troféu da alegria sobre a tristeza.

Apesar de tanto descalabro, de tanta crueldade, apesar de tanta dor, e tanta morte, tanta falta de sorte, esta olimpíada foi respiro e suspiro.

Alívio por um futuro possível. De amor e de esperança.

O Brasil que nós queremos tem a cara bonita dos Izaquias, Anas, Rebecas, Ítalos, e todos estes atletas que nos deixaram sonhar, que nos fizeram vibrar, que nos devolveram um pouco da felicidade, no breve interlúdio desses dias. 

Obrigada, Tokyo 2020.

domingo, 1 de agosto de 2021

No plantão








Trago livros, carrego-os sempre comigo.

Neste instante eles estão na mesa, à minha espera. Eu, que enquanto espero, estou no celular. Lendo textos, diga-se a meu favor, mas ainda assim. Vejo fotos também, vídeos não me atraem, os longos então, não tenho paciência. Mas assisto à entrevista, e comemoro o ouro da Rebeca, a humildade e a alegria vencendo as dores todas, vencendo as dores expostas, também as ocultas, uma menina vitoriosa num país que é cruel com as mulheres, com as pretas, com os pobres.
Orgulho dela.
Os livros, são dois, os que estão aqui, mais um que não veio, são três livros começados, se não me engano, não, são quatro, mais um que falta apenas um capítulo, os livros andam sempre comigo, ainda que nem sempre os abra, é uma coisa antiga, desde criança. Fazem-me companhia, mas sinto que preciso estar a resgatar constantemente o conhecido hábito, coisa recente, esta distração cotidiana, a vida toda uma leitora contumaz, e isso me dói, estes livros a me olharem com suas belas capas duras, magoados pelo desprezo que nem é, mas eles não sabem. É preciso sempre que se diga, menos em palavras e mais em ações, é assim que se demonstra o afeto, em todas as coisas, em todas as ocasiões, sempre, é só assim que é possível: no ato, não na omissão. Amor não é para ser adivinhado.
E um livro, como as gentes, foi feito para ser descoberto, abrindo as páginas devagarinho e com cuidado, lendo cada palavra com atenção e vontade de entender.
Sem vontade não tem solução. (Sem atenção não tem tesão.)
No toque é que o amor floresce, na disciplina se forja a força, não largar a mão de ninguém é também não abrir mão dos velhos amigos, os mais leais que já tive, os melhores mestres. Ler é resistir. É existir. Na verdade, não sou eu quem os carrega, é o contrário.
São os livros que tomam conta de mim. Um de cada vez, e todos ao mesmo tempo.




domingo, 25 de julho de 2021

Gracias a la vida




 

Mais um aniversário me espreita, na curva da semana que avizinha o prometido frio recorde do século, eu que já ultrapassei a metade de um sem bater nenhum recorde, e acho que chegar a julho de 2021 com saúde e energia já é um grande feito.
Hoje pedalei na orla, depois de mais de 18 meses, andava sem coragem de ir tão longe.  A pandemia trouxe uns medos estranhos, além das mudanças de hábito, ganhamos novas ansiedades e desconfianças. Mas fui, e voltei com a máscara ajustada no nariz, bem tranquila, neste dia ensolaradamente azul, curtindo o verão do inverno, a bonança que antecede a tempestade, será que vai nevar em Porto Alegre no dia 29?
Espero que não, já não gosto de frio, de sentir as mãos geladas e o corpo contraído, prefiro a indolência das temperaturas mais altas, a malícia dos dias quentes, a preguiça das tardes de dezembro a março.
Mas sou do sul, querendo ser bahiana, sou de julho, cria do inverno, e não posso reclamar de frio. Agradeço ter vindo tão bem até aqui. Na luta contra a perda de colágeno, rugas e cabelos brancos, o jogo é de cartas marcadas. Não gosto, admito, mas dane-se, não as vencerei ao final. Envelhecer é o preço que se paga pela vida, e a vida é tão mais que um corpo eternamente jovem. Não é isso que me define, nunca foi. Acho que não há definição. Como dizia a Simone, que nada nos defina, que nada nos sujeite. A essência é o que importa, a substância, a liberdade, a dor e a delícia de ser quem se é. Saúde e sorte.O amor é a arte, e a alegria é saber-se forte, inteira. Com todas as marcas que carregamos, estejam elas visíveis ou não. Gostemos, ou não.
À beira dos 52 anos, cá estou eu: com fôlego para mais alguns.

segunda-feira, 12 de julho de 2021

Mais uma carta para Isabella








A menina e a gata, e eu só posso falar em saudade. 

Hoje a guria que é dona do meu coração completa nove anos de vida. Na última vez que nos encontramos, ela tinha sete. A pandemia me roubou parte desta infância, e eu não vi os oito de perto. Não sei se verei os nove, é tudo tão incerto ainda, apesar de haver mais esperança, apesar de haver mais.
O oceano que nos separa ficou maior e mais profundo, quase intransponível, nestes dias tão tristes, onde não podemos cruzar as fronteiras, eu sei que o amor não tem fronteiras, mas a saudade, ela tem.
A saudade imensa do abraço, dos beijos, do cheiro dos cabelos, dos risos, das pedaladas, das histórias inventadas, dos esquilos, piqueniques, saudade da inocência, da criança que ainda resta, de que gosta ela, agora, que sonhos tem, que livros ama, ainda entenderá meu inglês truncado, o português quiçá, será que passou do meu ombro, quero ver dançar, ouvir cantar, e o tempo não para, o tempo nunca para.
Ele avoa.
O tempo tem asa, mas não tem pena. Tempo, vem cá ao pé do ouvido, deixa eu te fazer um pedido. Vai devagar, por favor. E passa logo, cura nós também, para a gente poder se encontrar de novo.
Que eu quero abraçar a saudade.
A saudade de hoje tem nome, teu nome, saudade, é Isabella.
Menina da minha saudade, hoje é teu dia.
Que ele seja tão lindo quanto tu, e tão cheio de luz quanto tu.
Vai, voa, vem cá. Abraça o mundo, viva, seja muito feliz nessa vida.
Happy birthday!

Com todo amor,
  TiDani

domingo, 4 de julho de 2021

Gaiolas e desejos



 

O sol derramado sobre a mesa e o livro aberto dos teus olhos, os fios prata na tua fronte febril, a gentileza dos dedos indóceis a esculpir as letras, linhas entre vãos, desenhos em arrepio, desbravando estranhezas, libertando pássaros, resgatando frases, onde andará meu amor, tateio a palavra perdida com a sofreguidão de um beijo, na ânsia de quem busca uma graça, um gozo, um abrigo, com a saudade faminta de um amante há muito esperado, há tanto, as carícias repartidas em estrofes a romper o frio dos silêncios, toda voz calada agora se abre, escancarada e cheia de dentes, na sede de lamber o lirismo da tua boca, beber na fonte tua saliva espessa de poesia, a avidez a destravar a língua num grito incontido de prazer e dor, transbordando em versos toda a fúria reprimida, toda letra esquecida, todo bem-querer encoberto em quartos de lua, em crescentes de hotel, em lentas tardes fartas, clandestinas de um infinito azul.


Sobre escrever 

Desenho de Frida Castelli







domingo, 27 de junho de 2021

Maluco beleza


As dores que não imaginamos

"Tu sabe o que é ter 20 anos e uma solidão imensa?"
Ele tem a idade do meu filho e os olhos bonitos, cor de mel. Sofre de esquizofrenia e depressão. Desde quando? "Desde sempre, eu acho, mas principalmente desde os 13."
Mora com a mãe, "fica um em cada quarto, doutora." Trabalha num supermercado, onde não fala com ninguém, porque nenhuma pessoa é digna de confiança. "Nenhuma pessoa no mundo inteiro é confiável. Todos querem te tirar algo."
Ele me diz que a esquizofrenia está controlada com a medicação, mas para a tristeza que sente não tem remédio que dê jeito.
Gosta de ler, se refugia nos livros, mas culpa um pouco os livros por ser assim tão esquisito, por ter tantos pensamentos, por não se encaixar.
Ele deixa o consultório, e me deixa também pensativa e comovida.
Pela vida estranha e crua de um menino ainda, pela solidão que assim não conheço, mas, e principalmente, pela parte que me toca neste latifúndio: de algum jeito, somos nós e nossos preconceitos que tornamos o mundo dele, e de tantos outros, um lugar hostil.
Tão mais fácil seria se cada um de nós já soubesse, desde sempre, que não há encaixe possível.
Porque de perto, né? É aquela coisa, ninguém. E todo mundo, um pouco.
Canta, Raul:

"Enquanto você se esforça pra ser
Um sujeito normal e fazer tudo igual
Eu do meu lado aprendendo a ser louco
Um maluco total, na loucura real"

Que nossas diversidades sejam melhor acolhidas.