quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Mas... e a janta?



" O meu pai se separou da minha mãe porque ela não fazia nada para ele, sabe. Deixava tudo na mão da empregada, ele chegava cansado em casa e ela nem a comida esquentava, ele tinha que fazer tudo. Sim, ela trabalhava também, mas menos que ele. "
Deitada no sofá, tentando achar coragem para arrumar o armário, Clara lembra da conversa com um conhecido da academia no dia anterior. O colega, quando criança, culpava o pai que traiu a mãe, mas hoje entende bem o que aconteceu. "Ele tinha razão."
O celular toca, é o Marcos. Estão saindo há duas semanas e meia.
- Oi...
- Oi Clara, lindinha. Pensei em passar aí para filar uma janta, mas ficou tarde.
- Deu sorte, não tem janta. (Nunca tem).
- E como tu fazia quando era casada?
- Marcos, olha só. Preciso desligar, meu pão de queijo está queimando. Beijo!
Deleta o número dele. Menos um, mais um.
Resolve deixar a arrumação do armário para domingo que vem. Desliga o forno, pega um pão de queijo e recheia com maionese. Come cinco e toma uma cerveja. Liga o computador e perde seu tempo nas linhas do tempo de amigos e conhecidos. Vê uma foto do João no face da Lara. Foi seu namorado na adolescência, casou com a irmã da melhor amiga. Hoje moram no Canadá. Ele está velho, barrigudo, grisalho e não tem quarenta anos ainda. É empresário, a Lara não trabalha, eles tem dois filhos pequenos. A foto é do casal numa "breve lua de mel no lago Moraine", ao fundo as montanhas com seus picos nevados contrastam com o céu de um azul profundo.
É noite, faz calor em Porto Alegre.
Clara fecha o computador e vai para a frente do espelho do banheiro, se examina sob a luz forte. Precisa retocar o botox, está vencido há dois meses. Algumas rugas finas se formam ao redor dos oblíquos olhos azuis quando sorri. Já não tem bochechas ou covinhas, mas as maçãs do rosto continuam altas. O pai costumava falar que tinha um rosto de escandinava. Feições aristocráticas, dizia, como ela odiava aquele nariz aristocrático, fino e reto. Os cabelos na altura dos ombros, novamente pintados de loiro, já foram azuis, rosa, pretos e muito curtos, em diferentes épocas. A boca continua grande e cheia. Lábios carnudos, como no poema que ganhou de um apaixonado décadas atrás. Ano que vem faz trinta e nove anos, custa a acreditar. Prende o cabelo em um coque e toma uma ducha rápida, acariciando a barriga lisa e os seios ainda firmes. Sempre foi magra, ombros angulosos, ainda usa o mesmo manequim dos tempos de modelo. O fato de não jantar quase nunca deve ajudar. Isso, e a musculação diária, motivo de muita briga com um cara mais velho com quem morou por uns dois anos, e que reclamava das suas  roupas de ginástica, "você nunca se arruma para me esperar!" Jantavam lasanha congelada e discussão.
Suspira forte. Distraída, passa um hidratante no corpo, veste uma calça folgada de moletom e abre mais uma cerveja. Coloca Norah Jones para ouvir baixinho. Volta a pensar na mãe do colega da academia.
A TV sem som mostra um filme em preto e branco. Sentada no sofá de pernas cruzadas, acende um cigarro e pega um livro, mas não consegue se concentrar. Está longe, tem uma reunião importante bem cedo pela manhã. Faz algumas anotações no seu note, o celular toca de novo. Número desconhecido, não atende.
Logo apita uma mensagem na tela: "Oi minha lindinha gostosa quer ir ao cinema amanhã e dividir uma pizza?"
Sem coragem de perguntar qual o filme, Clara desliga tudo. Apaga o cigarro, e vai dormir.

Dani Altmayer

( tema livre para a oficina, descrever um personagem a partir de uma foto escolhida)



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