quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Nossas histórias




Por quase quarenta anos ela esteve junto em quase tudo que me aconteceu de importante.
Uma das memórias mais remotas e mais bonitas que tenho é de estar sozinha com ela, numa manhã de sol no escritório da nossa antiga casa, cujas paredes eram cobertas por estantes cheias de livros, e onde ela estava trabalhando para um retiro da igreja, produzindo etiquetas com a identificação dos participantes para colar nas pastas. Ela tinha uma maquininha que fazia isso, iam saindo as tiras, e eu estava sentada a seus pés quando de repente comecei a ler os nomes que surgiam como mágica, um atrás do outro. Lembro de ela ter me dito, espantada, Dani, tu está lendo, e lembro de gritar de alegria, eu estou lendo, mãe, eu estou lendo.
Nas prateleiras mais baixas ficavam os gibis para nosso alcance, e ela me deu uma revistinha do Pernalonga que eu li para ela do início ao fim. A primeira de tantas.
Foi um dos dias mais felizes da minha vida, acho que não sei descrever a maravilha daquele instante em que desvendei o mistério por trás das letras que se juntavam em palavras e depois em frases e finalmente em histórias que não mais tiveram fim.
Percorri todas aquelas estantes, li um livro atrás do outro na minha infância e adolescência, e lembro do desespero dela, lê mais devagar guria, não tem livro que dê conta de tanto apetite, e não tinha, por isso eu lia e relia. Muitas vezes. Ela reclamava, vai brincar na rua, e eu não ia. Devorava livros sem capa, histórias de amor, ganhava coleções de presente, subia na escada para alcançar os livros mais altos, proibidos para crianças, os quais eu lia escondida sem ela saber. Pequenas transgressões que sempre nascem de tudo que provoca curiosidade. De tudo o que é proibido. O escritório era uma terra encantada, onde todas as aventuras eram possíveis e eram minhas.
Os livros são o paraíso dos tímidos, mãezinha. Nosso melhor esconderijo.
"Volta para a terra, Dani. " Era em vão. Eu tinha descortinado todo um outro mundo com a leitura, e ela sabia. Não só sabia como entendia. Entendia e compactuava, também ela uma grande leitora. De vez em quando também ela sumia. Quantas vezes a peguei, em tardes de verão, deitada de lado na cama, imersa em outras viagens, no fim de algum romance muito bom, respondendo em monossílabos sem sequer ouvir as perguntas e sem desgrudar os olhos do livro que estava lendo. Estava tudo certo, a gente sempre se entendeu na quietude das palavras escritas.
Vieram muitas outras estreias onde ela também esteve, mas poucas se comparam àquela manhã silenciosa onde fomos cúmplices de uma bela descoberta. A conquista da leitura, que não chegou aos poucos, em sílabas desconexas, "vovó viu a uva" ou coisa que o valha, veio antes do nada, numa espécie de iluminação. "Ah, então era isso?"
Tantas vezes, ainda, depois de tanto tempo, tenho vontade de compartilhar com ela o prazer de um ou outro livro especial. Entre muitas outras coisas que, vez ou outra, ainda gostaria de dividir. E nessas horas eu tenho vontade de pedir, como ela me pedia.
Volta para a terra, mãezinha.

Dani Altmayer ( nove anos sem ela)

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