domingo, 23 de outubro de 2016

Coragem (desde que não voe)



Eu tenho pavor de barata, rato e lesma.
Há muito tempo, eu ainda era casada, morava em um apartamento térreo com uma área onde tinha um pequeno jardim. Uma noite eu estava sozinha, sentada na rua e vi uma lesma subindo a parede. Ela ia em direção à janela da cozinha. Entrei em pânico e liguei para o meu então marido que jantava com o irmão, e eles riram muito. Riram muito, mas eu não. O assunto era sério. Então eles pararam de rir e me disseram que se jogasse sal no molusco, ele desidrataria e morreria.
Peguei o sal, mas como não tinha coragem de me aproximar, comecei a jogar de longe. 
Foi uma cena ridícula, desnecessário dizer. A lesma foi perdendo pedaços, mas não morreu. Acho que não consegui acertar seu coração mole, e ela continuou subindo a parede, deixando um traço gosmento e asqueroso pelo caminho. Entrei em casa e fechei a janela e as portas. No outro dia fui ao mercado, e comprei um veneno.
Tempos depois, já morando sozinha com meu filho, uma barata apareceu no banheiro. Ele devia ter uns oito anos e tentei explicar a importância de se saber matar uma barata para o futuro amoroso dele. Ele não me deu ouvidos, e eu resolvi jogar álcool de longe, sempre de longe (ela estava no balcão da pia, horror dos horrores). Acho que ficou bêbada, mas não morreu. Caiu no chão meio tonta, e não teve jeito. Precisei pegar o chinelo e matá-la sozinha. Depois ainda tive que me livrar do corpo. Desde então tenho sempre um inseticida à mão, e não deixo as iscas vencerem, por garantia. Como se garantia houvesse.
Não sei porque lembrei desses fatos hoje, talvez porque no dia da chuvarada tenha aparecido uma barata morta na cozinha e eu não tenha gritado, nem pedido socorro. Fiquei muito calma, e agi como deveria. O fato de ela estar morta ajudou, não posso negar. Peguei um papel toalha e dei fim ao cadáver com uma naturalidade surpreendente.
Enfim, e daí, né?
Bom, tenho a estranha e irritante mania de achar moral nas histórias que voltam à minha cabeça, assim, do nada. Então vamos lá. Só posso concluir duas coisas óbvias. 
Uma, que a dor ensina a gemer. Traduzindo: se só tem tu, vai tu mesmo.
A outra é que se tem que se matar algo, e às vezes é preciso, que se mate direito. Respira fundo e mete o peito, mesmo com medo. Para não sobrar restos nojentos, partes pegajosas, pedaços disformes. Nada de matar aos poucos, lentamente. 
Por compaixão por quem vai, também, e por precisão de quem fica para limpar a sujeira, depois.
Nada mais digno do que uma morte digna, afinal.

Dani Altmayer

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