quinta-feira, 30 de junho de 2016

A mais longa das despedidas


Todo domingo eu visito minha irmã. Hoje o dia amanheceu escuro, ameaçando chuva, e muito gelado. Meu joelho está ruim desde ontem, e pensei em não ir. Que diferença faria, afinal? Olho para o bolo de milho embrulhado em cima da mesa, e mudo de ideia. Faça chuva, faça sol, sempre penso em não ir, e sempre mudo de ideia.
O Jorge me pega pontualmente às 14 horas. Ele é o motorista de táxi que me leva e traz, desde que parei de dirigir por causa do joelho e de um ou outro acidentezinho sem importância.
- Como vai, dona Júlia?
O Jorge é muito gentil, me ajuda com os pacotes de fralda e as sacolas de supermercado, dessa vez estou levando xampu, sabonete, creme de mãos e um gorro de lã.
Faz três anos que a Juliana está internada nessa clínica, desde o dia em que ela escapou do apartamento, e foi encontrada pelo zelador tomando banho de piscina em pleno julho. Fazia cinco graus, e ela foi parar no hospital com pneumonia. Depois disso não voltou mais para casa.
A clínica não é ruim, quem paga é o filho que mora na Espanha. Tem um quarto só para ela, com ar condicionado. Só não tem vista, e fica um pouco escuro porque a janela dá para um muro todo pintado de verde. Juliana está sentada em uma poltrona, tem um livro aberto no colo. Ela lê o mesmo livro faz tempo, agora já nem trago nenhum novo, só mudo os antigos de lugar.
Ela sorri para mim, vagamente. Acho que hoje é um dia não. Domingo sim, de um dia não. Acontece bastante. Seus olhos estão vazios de qualquer reconhecimento. Ela é educada.
- Boa tarde, senhora.
Sua voz é igual à minha. Seus olhos verdes, o nariz pontudo, as mãos esguias, tudo igual. Apenas seus cabelos brancos contrastam com os meus, escuros, bem pintados.
Faço um chá e ofereço um pedaço do bolo de milho. Ela adora esse bolo, e come duas fatias. Está muito magra, eu engordei depois que tive o problema no joelho e precisei parar com as caminhadas. Pego o livro no seu colo e leio um pouco para ela. Eu sempre fui a leitora da família, por gosto e profissão. A Juliana era mais esportista, inclusive foi da equipe de vôlei do ginásio, antes de casar. Está viúva há muitos anos. Não quis mais ninguém depois que o marido morreu e cuidou dos nossos pais enquanto eu viajava. Morei muito tempo fora.
Ela fecha os olhos e penso que vai dormir, mas logo se impacienta com a minha leitura. Começa a falar. Olhando para ela agora, vejo a menina que foi, enquanto me conta histórias que conheço e lembra detalhes que preferiria esquecer. Hoje ela não sabe quem sou eu. Domingo próximo, talvez. Um dia, não mais. Fala de mim para mim, como que para uma estranha, e conta as peripécias que fazíamos, as duas, enganando nossos pais e amigos.
- A Júlia era tinhosa... ela pintava a unha de vermelho, meu pai dizia que não era coisa de mulher direita. Pinta minha unha?
Faço as unhas da minha irmã com o mesmo esmalte que também uso, rosa claro, como ela sempre gostou. Seguro suas mãos trêmulas em minhas mãos gêmeas e sorrio para ela. Peço que me conte de novo sobre a vez em que achamos uns filhotes de gato embaixo da casa, na praia. Ela se ilumina com a memória.
Vendo a Juliana assim, de olhos brilhantes, penso que ela parece uns dez anos mais jovem do que eu. Dez anos, quase o tempo dessa doença que nela se demora.
Já não somos iguais, ela está a andar para trás, e parece que só eu envelheço. Todas as perdas que me acontecem, já não acontecem a ela. Talvez seja esse o segredo, este parar no tempo e depois regredir para sempre às memórias mais tenras, e ternas.
Sua filha chega para a visita, atrasada, e ela me apresenta.
- Essa é a Juliana, minha irmã gêmea.
Não sei se brinca ou se confunde. Não importa, eu também me confundo. Rimos, as duas, crianças e cúmplices.
Lá fora continua escuro e frio, a chuva finalmente começou, mansinha. Jorge me espera na porta com um guarda chuva.

Dani Altmayer ( exercício para a oficina de escrita criativa)

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