quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Lado A



Eu sempre olho para ver se está arranhado. Não estava, tenho certeza.
Eu gasto toda a minha mesada com discos. Este eu tinha encomendado há três meses, e foi bem caro porque era importado. Minha mãe fica louca comigo porque passo horas no quarto ouvindo música e comendo bolacha recheada com coca- cola, ela queria que eu lesse um livro ou fizesse algum esporte mas sou meio cansado para isso. E muito magro. Ninguém nunca me quer em nenhum time de qualquer jeito. Ótimo, gosto mesmo é de ficar no escuro do quarto, olhando o teto cheio daquelas estrelinhas idiotas que a minha irmã colou quando ainda morava aqui.
Não estava arranhado, tenho certeza, e eu não tinha fumado nem nada, o pai e a mãe estavam em casa até. Era cedo, também, mas chovia muito e o dia tinha escurecido rápido. Não foi um sonho, porque meus sonhos não são esquisitos nem assustadores, são sempre os mesmos, pelo menos até onde eu lembro deles. Sonho com a Tina, ou algo a ver com a escola, às vezes com meu pai.
Aquele disco era uma raridade, custou duas mesadas e meia, não que eu tenha juntado esse dinheiro, sou ruim de juntar grana, mas ganhei da vó de aniversário. O Juca mandou buscar três, um para ele, outro para aquele tiozão que está sempre na loja de disco, e outro para mim. Eu converso muito sobre música com o Juca, ele sabe tudo do que está rolando lá fora, lê aquela revistas todas, já morou na Inglaterra. O Juca é um pouco hippie, ainda. Bem legal. Como meu pai era antes de casar, usava umas blusas curtinhas e aquelas calças estranhas e o cabelo comprido, eu tenho certeza que meu pai fumava maconha só que nunca vai confessar. O Juca fuma direto, mas nunca me deu, nem adiantava eu pedir, diz que eu sou muito criança ainda. Ele nem sabe que eu já fumei umas três vezes com uns caras do último ano que tem uma banda de rock pesado. Eles eram meio punks antes e eu achava a banda bem boa. Problema é que agora eles só tocam Legião e Paralamas (eca), que é o que as gurias pedem e eles querem que as gurias peçam, ficou um saco.
Bom, mas naquele dia eu não tinha fumado, nem bebido, nem sonhado. O disco não estava arranhado, nem nada. Eu só sei que foi muito estranho, muito, na hora parecia que uma estrela daquelas ia cair na minha cabeça, acho que eu gritei alto porque o pai veio correndo, acendendo a luz. Não falei nada para ele, só fiquei olhando. O disco se desligou sozinho, ou o quê, e eu não conseguia me mexer, fiquei olhando para ele, ele olhando para mim. Passei uns dias sem conseguir falar, de olhos arregalados, tive febre, me levaram no hospital. Os médicos fizeram um monte de exame de sangue, não deu nada. Depois de uma semana, sei lá, a voz voltou, do nada, e consegui fechar o olho.
Não contei para o Juca, podia ter perguntado para ele, mas fiquei com medo que ele dissesse que eu estava louco, e o tio da loja que tinha o outro, parece que se mudou para a Califórnia, e eu não conheço mais ninguém que tenha o álbum. Acho que nem lançaram no Brasil, não duvido.
Não tive coragem de quebrar, ia jogar fora, mas o disco sumiu. Perguntei para todo mundo em casa, ninguém sabia de disco nenhum com aquela capa. Nunca ouvi o lado B. Parei de ouvir música por um tempo. Também não fico mais de luz apagada sozinho e pedi para a mãe pintar o forro do quarto, tirar aquela babaquice de lá.
De vez em quando toca uma música deles no rádio, outro dia deu um clip no Fantástico, mas nunca é aquela. Tento não pensar muito nisso, só que fico pensando quase o tempo todo. Na estrela, no som. Se alguém mais ouviu. E se ouviu, se mais alguém sabe o que eu sei.
Hoje vou no cinema com a Tina pela primeira vez, vamos ver Sexta-feira 13 número mil, um saco. Eu acho. Mas ela ama. Adora filme de terror.
Eu não. Eu vivo em um.

Dani Altmayer

(exercício para a oficina de escrita, adolescente de 14 anos compra um disco de sua banda preferida, e tem uma surpresa, algo inesperado acontece em uma das faixas, que não pode ser contado).

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