Anos depois, se encontraram por acaso, na calçada junto ao jasmineiro.
Era final de setembro e os ipês amarelos já haviam florido, e a floração já havia até passado, efêmero que é quase tudo que é flor.
Quase tudo que encanta tem os tempos contados.
Foi numa manhã de domingo, um desses dias amenos, nem quente nem frio, a neblina recém descortinada, um céu azul pálido e o chão ainda úmido de orvalho.
Ela passeava o cachorro, distraída.
O cheiro de jasmim a faz parar por instantes, o cão aproveita o arbusto, e o perfume a assalta na esquina, num golfo adocicado.
A memória é antes de tudo uma célula olfativa.
O bacon frito da torta de carne, o vapor do bolo desfornado, ainda quente, o laquê da avó, o odor de alvejante do banheiro das meninas, a fragrância das folhas do mimeógrafo, o cheiro de óleo e gasolina na garagem da casa velha, o cheiro inconfundível do vento, e quem é do vento sabe, a maresia, ah, a maresia feito sexo e areia entranhando nas narinas, o aroma ácido, áspero, do marinheiro há muito naufragado, a essência de baunilha em pitadas de saudade, aqui e ali, um jasmineiro.
O olfato é a máquina do tempo dos afetos.
O cachorro segue, pelas lajotas, a linha das formigas carregadeiras, ocupadas que estão a receber a recém chegada primavera. Duas borboletas brancas dançam ao som dos sabiás desafinados, não há carros na rua domingueira, e não há alma viva a perturbar o silêncio da velha mulher que passeia.
Domingo é o ocaso da semana, a cidade se alenta em preguiças e moletons surrados, em cafés que se demoram, nas lasanhas de família e nas tardes intermináveis em frente à televisão.
Mas é manhã ainda, e a mulher que passeia não espera, não deseja, não tem pressa. Apenas anda a esmo, acompanhada do curioso cão, absorta pelos cheiros acordados no arbusto, estranhamente saudosa da mãe partida e outros amores, dos distantes dias, mais barulhentos, confusos e fáceis, quando a vida, o mundo, a mulher eram ainda, um poço de possibilidades.
Caminha no seu passo lento, perdida em nostalgias tontas, e não vê o homem de cabelos grisalhos que se aproxima, subindo a lomba com apoio da bengala, até que o cachorro late, feliz, até sentir uma mão fria na nuca, e ouvir a voz rouca, tão conhecida e há tanto esquecida, desbotada como tudo, pelos lapsos de tempo:
- Marília?
Súbito, a brisa da primavera levanta uma poeira, e um novo velho perfume se espaira no ar.
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