quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Iniciais

 


Gabriel Silva, comum demais. Solicitação de amizade na rede social, a foto meio desfocada, um homem meio barrigudo, de cabelos grisalhos, óculos escuros e regata. Entro no perfil, não tem muita coisa. Examino a foto, a tatuagem no ombro, uma águia, as iniciais do nome -dou um zoom. Conheço essa tatuagem. Gabriel Henrique da Silva. O Ique. 

Fecho a página, volto mais de trinta anos. Quinze anos, e um coração partido na primeira valsa, o primeiro porre, os rodopios com o par espinhento, o salão decorado de rosa. A viagem para a Disney, os cartões postais, o presente, uma camiseta do Hard Rock, que ele desdenhou, rindo das histórias que eu contava, num misto de deboche e graça, vocês fazem tudo igual, se parecem com todo mundo. Ele não se parecia com ninguém que eu conhecia, era um homem já, de seus vinte e tantos, a pele morena, os braços fortes, as tatuagens, o cabelo aloirado de surfista, uma boca larga. Andava de skate, não no colégio, claro, que era proibido, o pai dizia que era coisa de marginal. Andava lá na lomba da Barão. 

Tinha vindo da praia para trabalhar em Porto Alegre, e morava num quartinho anexo à portaria da escola, queria fazer faculdade de educação física. Usava um uniforme azul, tinha olhos puxados, de gato. Nas tardes de sábado, dia do treino de vôlei, era o Ique quem abria o ginásio, e ficava por ali, de bermuda, fumando, escutando heavy metal no walkman, observando os saques e as pernas das meninas. De vez em quando a namorada também aparecia, não sei se era permitido, mas nos sábados não tinha ninguém para controlar. A Verônica, uma estagiária peituda que trabalhava na secretaria e cursava letras à noite, mulher mais velha, sempre de batom vermelho, com a bunda e a sensualidade que me faltavam, que faltam até hoje. Vulgar, minha mãe diria. 

Eu imaginava os dois naquela cama apertada, no quarto sem janelas, a única luz que entrava era pela basculante do banheiro.O quarto tinha um cheiro de tabaco e suor, de colônia barata, cheiro forte de homem. Na primeira vez que entrei ali, senti enjoo e susto, eu, com meu uniforme impecável e detestado, a saia plissada, as meias brancas, a mochila de grife. Atônita com a desordem e a sujeira, não arrisquei tocar em nada. Sentei na beira da cama, enquanto ele ficava de joelhos e desabotoava minha camisa. Depois acostumei com o cheiro e a confusão, até gostei. Gostava de tudo nele, comecei a fumar, a mentir. Inventava desculpas para ficar até bem mais tarde, estudando na biblioteca. O motorista era meu cúmplice silencioso, me dava balas de menta, ninguém perguntava nada, contanto que as notas estivessem boas, e estavam. 

A Verônica uma vez me pegou no corredor, e me disse que sabia o que estava acontecendo, me chamou de trouxa, falou que o Ique ia se ferrar por se meter com uma menina, filhinha de papai, ele só está tirando uma onda contigo, não acha que tu é especial não, uma fedelha sem sal dessas. 

Saiu pisando forte, rebolando, os saltos estalando nas lajotas. Vulgar. 

Não contei nada para ele, mas naquela noite eu chorei escrevendo no meu diário. No dia seguinte, pintei os lábios de vermelho pela primeira vez. O Ique disse que eu parecia uma puta, e isso me deixou feliz. Nenhuma das minhas amigas sabia de nós, nunca falei para ninguém. Só para a psicóloga, anos depois. 

Quando voltei da viagem de férias, em março, ele não estava mais lá. Nem a Verônica. O quartinho estava trancado e o novo zelador era um velho que não morava no colégio. Os rumores eram de que ele havia sido demitido, a pedido do pai de uma aluna, mas nunca descobri quem, nem porquê. 

Gabriel Henrique Silva. É, o tempo não foi gentil com ele, mas por que deveria?

Um cheiro conhecido me sobe às narinas, excluo a solicitação e vou até a sacada acender um cigarro. 

Nunca consegui deixar de fumar.


(Exercício para a oficina de escrita- o protagonista tímido. De volta aos contos.)

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