quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Namastê

   



   Namastê 

A Bia mora com a gente, porque é mais fácil assim. Duas horas de ônibus para ir e duas para voltar, todo dia. Fora o preço da passagem, inviável. 

Ajeitei o quartinho dos fundos, comprei um baú, um radio-televisão e uma poltrona daquelas que vira cama, para não ficar muito apertado. O quarto não tem janela, então melhor que a porta não feche com a cama montada, mesmo. Mas é tranquilo, a Bia é pequeninha, não tem 1,50 m. E eu super respeito a privacidade dela.

Já avisei o Joaquim e os meninos, a área de serviço à noite é território proibido. Depois que ela termina a louça, fechamos a porta da cozinha que dá para lá, e ninguém mais a incomoda. Pode ouvir música, ver novela, tomar banho. A não ser quando um dos garotos tem febre, ou quando ela fica cuidando das crianças  para eu ter um vale-night com o maridão. Aí ela pode ficar na sala, assistindo desenho no Netflix com eles. Mas eu pago por fora, nessas ocasiões, porque a Bia é minha secretária do lar, acho horrível o termo empregada, e ela não é nossa babá. 

Nem eu tenho condições de ter babá, com o custo de vida aqui em São Paulo, a escola dos guris, o clube de golfe e o meu pós. Tudo carésimo, Joaquim mal dá conta. Vive se queixando.

A Bia me ajuda para caramba, sabe, mas é troca. Sou muito justa com todo mundo que trabalha para mim, sempre fui, assino carteira, faço questão de pagar tudo certinho, salário mínimo, INSS. Ela diz que eu sou um anjo na vida dela. E que os meninos são os capetinhas.

Caiu de paraquedas aqui em casa, indicação de uma amiga da yoga. Sorte minha e dela. Coitada, veio do interior da Bahia, não vê a mãe faz uns quatro anos, não conhece ninguém na capital. Mas tem uns aparentados em Guarulhos. Todo fim de semana a gente leva ela até lá, de carro, para ficar sábado e domingo, na segunda cedo o namoradinho traz na moto. Ela não sabe andar de ônibus, bichinha, morre de medo. Veio para cá muito nova. E eu acho melhor assim, porque é muito perigoso o transporte público, além da violência e do risco de assalto, é um pouco nojento aquela gente toda suada.

E a Bia fica mais restrita, mais caseira. Evita bateção de perna desnecessária. Faz as coisas que tem que fazer a pé, aqui pelo bairro mesmo. Passeia o cachorro, leva os meninos na natação, busca. Cozinha um feijão que é uma delícia, compra pão cedinho na padaria, quando saio do banho ela já passou o café e espremeu as laranjas. É uma mordomia que eu não esperava ter, mas a Bia faz questão de nos servir café da manhã,  almoço e janta. E na verdade, acho que é bem justo, por eu deixar ela morar aqui. Bem ou mal, é mais uma boca para alimentar. Ela come o mesmo que a gente, coisa simples, de dia a dia. Não fico controlando, só os chocolates e biscoitos dos meninos que guardo no meu armário. Não quero ninguém diabético aqui em casa.

Mas não deixa de ser uma estranha, num apartamento que nem é tão grande. É  sempre um pouco esquisito. Apesar de que agora a Bia já é quase da família. Estamos pensando em levar ela junto, nas próximas férias em Balneário, ainda não contei para não se empolgar demais, vai depender das promoções. Ela nunca andou de avião na vida, vai ficar contente.

Quando estou estudando no computador, ela limpa tudo em silêncio, sei que gosta de cantarolar, mas ela sabe quando incomoda e isso é uma qualidade da Bia que admiro, faço questão de elogiar. Assim como ela já disse que admira meu jeito de vestir, de falar, meu perfume, até achou uma imitação num dos livrinhos que a prima emprestou e eu dei de presente para ela, não me custa agradar um pouco, fazer um mimo. Foi baratinho, pudera, o cheiro é horroroso de forte, mas ela não usa no trabalho, a Bia tem noção.

Não é por nada, mas nem parece que tive dois filhos, mesmo. Com quase 40, estou na minha melhor forma. O emprego de meio turno na boutique da Lu, aqui em Moema, veio a calhar. Como gerente, ganho um descontão nas roupas, e ainda conheço gente grandona, bons contatos são tudo na vida, sempre falo para a Bia. A Lu é uma chata, pedante e esnobe , mas é minha amiga mais próxima em São Paulo. Outro dia fui almoçar na casa dela, nos Jardins. Luxo puro, tudo lindo, pratarias e grana de família, adega de vinhos e jardim de inverno, mas aí que a gente vê que dinheiro não compra educação. É impressionante o jeito como trata os funcionários. Só faltou o chicote e o tronco. Isso porque a cozinheira errou o ponto do molho, um tal de grave, e olha que não estava ruim, não. Muita grosseria, fiquei boba. Uma mulher tão fina e elegante, sem consideração nenhuma. Chega a dar vergonha alheia. Como pode?

Eu contei para a Bia, para ela saber a diferença, para ver a sorte que ela teve. Eu tenho sorte de ter a Bia também, querida.  

Mas é importante a gente falar, dar ênfase, se valorizar. Para darem valor. Gratitude é um must.


Texto para a oficina de escrita. Personagem dependente. 

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