quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Estatísticas

 


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Cá entre nós, quem ainda acredita em  príncipe encantado? Tá bem que certas redes sociais até parecem contos de fadas, todos lindos e felizes para sempre, mas você há de concordar comigo: a vida real de noventa e nove por cento das pessoas é uma merda. Mais, eu diria. Noventa e nove, vírgula nove. 

Eu tenho a sorte, ou o azar, de conhecer algumas das exceções. Mas não sou uma delas. Sou apenas a secretária de uma ONG que atende mulheres em situação de vulnerabilidade. Vítimas de violência doméstica. Então, eu sei do que estou falando, quando falo de merda. Você não faz ideia, mesmo que ache que sim. O que sai nos jornais é só a ponta do iceberg. Nosso dia a dia é ferrado, mano. Pesado pra cacete. 

Mas estou desviando do assunto. Vamos lá, o príncipe encantado. Eu nunca acreditei, "para sempre" sempre me pareceu vago demais, tempo demais, assustador demais. Quais as chances, me conta? Abaixo de zero, com certeza.

Hoje estou mais atrapalhada do que de costume. É a noite do jantar e desfile beneficente para arrecadar fundos para a criação da creche. Um projeto meu, de longa data. A maioria das meninas que passa pelo abrigo não tem família, nenhuma rede de apoio para deixar os filhos enquanto estudam ou trabalham. Mães solo, vítimas de todo tipo de abuso. Gente que nunca sonhou na vida. Só teve foi pesadelo, mesmo. 

A creche é para dar um futuro para elas, sabe.

Minha amiga deu um berro quando viu o nome do Vitinho no topo da lista dos patrocinadores. João Victor Cavalcanti de Oliveira Muller, um dos homens mais ricos- e bonitos do Brasil. Para ela, um príncipe. É como o chamam os colunistas, neste país metido a besta, pretensioso de passados e sonhos imperiais. Para mim, é o Vitinho, mesmo. 

Foi meu colega no ensino fundamental, antes de se mudar para a Alemanha com os pais. Ele me pediu em namoro na primeira série, não aceitei por vergonha, mas guardei durante anos um coelho de pelúcia e um anel de vidro que ele me deu. Voltou tem uns meses, nos reencontramos numa festa da turma e ficamos amigos de novo. Do jeito que dá para ser amiga de um cara desses, que nasceu com a bunda, e que bunda, virada para a lua. Ele vive na minha volta, mas não faz parte do meu mundo. 

O meu mundo não é fácil. Meu carro está sempre na oficina, ralo para pagar a faculdade, ralo pra caramba num trabalho que me consome toda a energia. Mas que também me situa, em comparação- não tenho do que me queixar. É tudo perspectiva. Tudo mesmo.

Então, de novo me perdi. Foco, Camila. Voltando:

O Vitinho e a Verônica são as exceções. Os zero ponto um por cento, menos até.  

A Verônica é a namorada dele, modelo internacional, já foi duas vezes capa da Vogue. Lindíssima, perfeita, sem filtros, é a atração principal do desfile, e uma chata de galochas. Cheia das manias, camarim com rosas brancas, toalhas brancas, vinho branco. Chegou de motorista, colar de brilhantes e o cachorrinho a tiracolo, um lulu branco chamado... Lulu.

- Camila, querida, quase não te reconheci.

Acostumada a me ver de jeans e camiseta, estou enfiada num vestido preto e longo, cabelos soltos, sem óculos. Não gosto da fantasia, mas a causa é justa. Vendemos todos os convites e as colunas sociais estão em peso noticiando o evento, ainda que o destaque seja para um possível noivado do casalzinho. Belos, ricos e famosos, etc. 

Os dois conversam encostados a um pilar, sérios e entretidos. Ele de smoking, ela de vermelho. 

O Lulu se meteu entre as pernas de uma senhora peituda, que está alimentando o cãozinho com pedaços de queijo brie. Quem traz cachorro para um jantar beneficente? Arranjo uma babá para o Lulu, antes que alguém pise num cocô em plena pista de dança. 

A Verônica sumiu. Está quase na hora de começar o desfile. João Victor, na mesa principal, brinca com o gelo do uísque. Desde que sentou, não tira os olhos de mim. Deve estar estranhando a minha elegância, também. Malditos saltos. Pergunto pela namorada, dá de ombros. 

- Terminamos. Tenho uma surpresa para você, Camila. Aliás, você está linda. 

- Depois, Vitinho. Depois falamos. Tenho que achar a Verônica. 

Encontro a modelo no meu escritório, no segundo andar. Está soluçando, debruçada sobre uma foto das meninas do abrigo. Quase todas têm menos de 20 anos e vestem a camiseta da ONG. Algumas seguram bebês de colo.

A maquiagem borrada, o rosto desfeito, e ela consegue ser bonita mesmo quando chora, a filha da mãe. Faço um carinho em seus ombros, um pouco compadecida, mas também impaciente e irritada. Tnham que terminar logo nesta noite?

- Verônica... não fica assim...

- Ah, Camila. O que vocês fazem aqui é maravilhoso, eu te admiro.

Tudo bem, obrigada, ótimo, mas vamos lá. Chega de choramingos. Está todo mundo esperando. Não tenho tempo de responder, ela murmura:

- Eu te odeio. Mas agora acho que sei.

- Sabe o quê, mulher do céu?

Levanta o queixo. Seus olhos faíscam.

- Sei porque ele se apaixonou por você. 


PS: Exercício confuso, para a oficina. O personagem sedutor. 

Conclusão da aula: para haver sedução, precisamos de tempo. Talvez não o tempo de um conto, algum tempo mais longo.

Mas tá valendo, sempre vale.

😉❤

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