segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Apesar de você





"Tuas noites são de gala

Nosso samba inda é na rua"


Eu conheço esta voz. Ou estou muito bêbado, ou é a Darlene cantando. Quem te viu, quem te vê...

Entro no bar, está escuro e enfumaçado. No palco tem um cara de barbicha dedilhando um violão, e no microfone, sim, é ela. A Darlene, cabelo mais curto, mais claro, um vestido solto, decotado nas costas, continua gorda, as panturrilhas grossas apertadas pelas tiras da sandália alta, mas está ajeitada, lá do jeito dela, a voz rouca cantando Chico, sempre gostou dessas porcarias de MPB, dor de cotovelo e tals.

Meu paletó enlaça o teu vestido, quando a Darlene foi embora levou tudo o que era dela, as roupas coloridas, as bijouterias, as botas, os porta-retratos, a louça do casamento, a geladeira, o forno de microondas. E o cachorro. Trocando em miúdos, pode guardar /as sombras de tudo que chamam lar...

Bebo uma cerveja e me encosto no balcão. Peço um torresminho. Desde que a Darlene me deixou, foi logo na volta das malditas férias, janto pelos bares aqui da cidade baixa. Ainda não comprei a geladeira, nem o microondas. Não faz falta, igual a Darlene.

Aquela loira peituda, na mesa junto ao palco- parece a Nina lá do resort, não pode ser, será que ficaram tão amigas assim? Que eu saiba, a outra mora em São Paulo.

Amaram o amor serenado

Das noturnas praias

Levantavam as saias

E se enluaravam de felicidade

É a Nina, sim. Reconheci pela bunda.

Música besta, por que a Darlene não canta um pagodinho raíz, parece até que esqueceu de onde veio, quem é de verdade. Ficou besta. 

Foi depois que começou a trabalhar. Eu sempre digo, mulher não pode ganhar mais do que homem. Um dia, fui buscar ela no serviço, reclamou que eu não abri a porta para ela, que estava com as mãos ocupadas, blabla. Até parece que ela não conhece meu ditado: quando um homem abre a porta do carro para uma mulher, das duas uma: ou a mulher é nova, ou o carro é. E o meu carro está na oficina há mais de mês, sei lá se volta.

Qual o quê?

Só bebendo para aturar este petista chato na voz da minha ex- mulher, agora está achando que sabe sambar, arrasa, o meu projeto de vida, bandida...

Tem mulher que se acha. A Darlene é dessas, parece que não tem espelho em casa. Joga o cabelo, sensualiza com os ombros, faz biquinho, rebola. Onde será que aprendeu esses modos? 

Dois caras aqui do lado, falando que ela é gostosa, que canta para cacete, dois bichinhas, claro. Não entendem de mulher. Ela é feita pra apanhar, ela é boa de cuspir. Pronto, agora sim. Uma música que faz sentido para a Darlene. 

Ainda bem que nenhum dos meus amigos vem em barzinho metido a cult, imagina a vergonha alheia, ver a Darlene toda toda, cantando estas músicas bregas, beijando a loira na boca. Sério isso?

Olha quem chegou na mesa, o instrutor veado, também ganhou beijo na boca. Das duas.

Uma pouca vergonha, não é por falta de aviso, tem a ver com a tal ditadura gay. Vai deixando se criarem. Querem destruir a família brasileira, os bons costumes, quem diria que a minha Darleninha, tão ingênua que era, iria se transformar numa cantora de cabaré de quinta categoria. Aquela viagem, eu deveria ter adivinhado. Deixei a Darlene solta, mulher a gente leva é no cabestro apertado, feito égua chucra. Deu no que deu. Deu. 


A Darlene me vê aqui no balcão. 

Abre um sorriso, toda feliz. Acho que botou silicone na boca, que nem a amiga, arrumou os dentes com certeza. Fez clareamento e tudo.

Ela se vira na minha direção, empina o peito e segura o o microfone com as duas mãos. Levanta o queixo, solta a voz, fica séria. Olhos nos olhos: 


(...)quero ver o que você diz

Quero ver como suporta me ver tão feliz...

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