domingo, 2 de setembro de 2018

O relógio da cozinha





A chuva deu uma trégua. Nada se move na manhã nublada.
Pedalar ou não é a dúvida que divido com a xícara de café preto e quente.
Faz silêncio na rua, no apartamento, na sala, em mim.
O único ruído que escuto é o do velho relógio na parede da cozinha.
Tic-tac, tic-tac.
Sessenta segundos por minuto. Sessenta batimentos por minuto.
O antigo relógio da casa de praia marca o ritmo da cidade nesse domingo sonolento.
No compasso do meu coração, lembranças de outras vidas, outras chuvas, do coaxar dos sapos nas valetas, de ruas lamacentas de uma terra de areia e vento.
Pela janela entra uma saudade com cheiro de perfume e cigarro, o hálito de bala de mel, a lembrança das mãos mais bonitas e longas que às minhas já seguraram.
Olho para os meus dedos, vejo os anéis dela e as unhas pintadas como ela jamais usaria, herança e subversão, é assim que seguimos desde que o mundo existe.
Uma maciez áspera a arranhar a garganta feito gato, se ouvisse sua voz melodiosa e um pouco rouca ainda reconheceria, a bridge over troubled water, numa falta que já não dói na mente agora calma.
É só um vazio que aparece de vez em quando, mais em dias assim, cinzentos e quietos, onde o único ruído é o do fiel relógio herdado, marcando aquilo que é inexorável:
sessenta batimentos por minuto, sessenta segundos por minuto.
Tic-tac. Enquanto houver pilha o tempo não para. 
 
O tempo que não se decide, nem eu.

Daniela Altmayer

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