domingo, 28 de outubro de 2018

O amor que nos mantém



Ele tem quase setenta anos. Ela tem 93.
Mãe e filho, nomes parecidos, consultam todo mês em busca da receita de medicação controlada. Ele tem epilepsia e um retardo mental leve mais um diagnóstico de esquizofrenia. Moram juntos, só os dois.
Ela é magrinha, franzina, tem uma força que nunca vi, é muito lúcida e um pouco surda. Ele é alto, bastante acima do peso, e sempre que os encontro eu lembro daquela personagem do Jô Soares, que dizia: "e pensar que eu saí de dentro dela."
A gente conversa um pouco na consulta, ela gosta de mim e eu dela, eu sempre falo aos gritos, tenho medo que os pacientes na sala de espera achem que estou brigando, ela escuta muito mal, me diz todas as vezes que não é fácil, que é tudo com ela, que se não fosse ela. Eu faço que sim, abraço seu corpo mirrado, aperto a mão dele, são muito gentis.
Todo mês quando eles se vão, meu coração se aperta por aquela mãe tão dedicada, tão sofrida e por aquele filho de cabelos brancos tão grande e indefeso. E se não fosse ela, penso sempre. E quando não for. Um dia não será.
Na última consulta, esta semana, estávamos conversando quando ela olhou para ele e gritou que ele ia convulsionar. Pulei da cadeira e me pus atrás dele, segurando a cabeça enquanto ele se contorcia e esticava, e virava os olhos, e ela repetia, em desespero, meu filho, meu amor, meu filho.
Ela não sabia se ele tinha tomado os remédios, achava que não. Não havia o que fazer ali, no consultório que não é emergência nem hospital. Mantive a calma por nós duas. Durou alguns minutos e passou, ele caiu então num sono sem dor e ela, com dor, se aquietou aos poucos. Quando eles foram embora eu chorei mais uma vez.
Não havia mais nada a fazer, se não esperar e suportar.
Nada a fazer a não ser proteger a cabeça. Tem hora que é isso mesmo.
É segurar nos braços como dá, um corpo em convulsão, para evitar que ele se machuque. Sabendo que tudo passa e que a força do amor é o que nos mantém vivos, apesar de tudo.

Nada a fazer senão esquecer o medo.

Daniela Altmayer



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