domingo, 8 de julho de 2018

"A felicidade de ser triste"

"Melancolia é a felicidade de ser triste."
         Victor Hugo


Amanhece com o coração apertado como quem espera más notícias, como se o vento frio que assobia pelas frestas do velho apartamento fosse o prenúncio de um longo inverno, as mãos geladas abraçam a xícara de café amargo, o cinza desses dias penetra pelos ossos úmidos e, se a solidão tivesse um nome, seria julho e jamais agosto.
Novas dores substituem as antigas, agora é o joelho que falha enquanto desce a escada sem corrimão, cada escorregada é uma falta a favor da bengala, o cabo de madeira entalhado pretensioso demais para ser guardado no fundo de um armário, ainda assim. Teimosa, se escora pela parede até a saída, como cega tateia o caminho, já não confia.
Uma chuva fraca, garoa feito mágoa e molha a calçada, o guarda- chuva vermelho é forte demais para a pouca água, para a pouca cor desse domingo escuro, ele grita, todo exagero é lembrança de outras coisas vermelhas, mais vivas, mais pulsantes, a memória do sangue, a memória da carne. Da dor.
A rua está deserta, exceto por um mendigo descalço e pelo homem que passeia mais adiante com seu lulu de botinhas amarelas, acha um pouco ridículo, ela nunca gostou muito de amarelo, cor do desespero, a mãe dizia, não combina. Que engraçado isso de combinar, passa-se uma vida inteira tentando combinar, de que adianta agora saber que azul -marinho e preto não combinam, é a mesma coisa que melancia com leite, não faz mal, só é ruim. E mesmo ruim, tem quem goste.
A chuva aperta, o vento vira a sombrinha vermelha, uma quadra é muito longe, puxa o capuz sobre a cabeça branca, a capa preta, a meia-calça preta, a saia comprida preta, a blusa cinza, o casaco quente, as botas de sola de borracha, feias, botas de velha, seguras e antiderrapantes, feias e confortáveis, botas de velha, pretas.
Na parada uma menina de cabelos verdes e fones de ouvido balança a cabeça de olhos fechados, cantando uma dessas músicas sem sentido, ela parece esquisita e feliz, pensa no que a mãe diria, cabelos verdes é ainda pior que uma blusa, uma bota amarela, qual o problema de parecer ridícula, ela devia ter vestido a echarpe florida. Ele gostaria disso.
- É da cor dos seus olhos.
Olhos cor de violeta, que ideia, nunca vira, só vira nos livros, as heroínas dos romances que devorava quando ainda podia distinguir as letras. A manta era cor de violeta, quase roxa, combinava com seus olhos, de novo essa coisa de combinar. Macia, de boa qualidade, tantos anos já fazia, tem coisas que são descartáveis e outras que não. Tem coisas feitas para durar.
Sobe no ônibus quase vazio, a menina verde fica na parada, ela senta num dos bancos da frente e encosta a cabeça na janela. Olha, como fazia quando criança, as bolhas de chuva que formam  no vidro estranhos desenhos e caminhos. Toda vez que tenta adivinhar um trajeto, erra quase sempre. As bolhas, como as pessoas, se desfazem. Não são previsíveis. Desenha ela mesma um coração torto no vidro embaçado, e sorri com a lembrança.
Um homem cheirando a cigarro e umidade senta ao lado dela, a cumprimenta, com tanto lugar vago, ela não quer falar, hoje não, quase nunca. A voz sai com dificuldade nesses dias de chuva. Vira o rosto para não sentir a respiração ruidosa e fétida do outro, que fala do tempo, da copa, de política, assuntos que não interessam, velho é como mulher grávida, só que invisível: não se pertence, ninguém respeita. Finalmente ele se vai, "não fica triste vozinha. Amanhã a chuva para. "
Não é tristeza, não é nada, só um vazio que ela não sabe que nome tem, nem se deveria ter nome algum.
Atravessa a cidade aos solavancos, é quase uma viagem sem fim. Olha os muros brancos, as bancas de flores, as flores de plástico, vai comprar uma rosa para celebrar sozinha esse estranho aniversário. Uma rosa de verdade.
Aperta o botão para descer, a chuva deu uma trégua, levanta os olhos para o céu carregado de nuvens pesadas, pensa numa palavra que eles gostavam, não consegue mais lembrar como se diz. Tinha a ver com chumbo.
Dá de ombros. Tanto faz, as palavras vão envelhecendo e morrem também. Ficam cada vez menos palavras, e as que ficam são cada vez mais simples, talvez mais feias, com certeza mais funcionais: como as botas que ela usa para se prevenir, para não derrapar.
E mesmo assim, não previne. Nada previne nunca.
Ela escorrega de novo. E cai.

Daniela Altmayer

3 comentários: