sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Desabafo




Quando fui morar em São Paulo, ainda no século passado, eu tive uma empregada doméstica chamada Bia. Ela era baiana, e morava em SP há alguns anos. Tinha fugido da miséria de sua terra natal, e  trabalhava para uma família que a pagava bem. Mas não estava feliz. Ela não sabia pegar sequer um ônibus sozinha, tinha medo de tudo, sentia-se insegura na cidade grande. Morava na casa desta outra família, e em tudo dependia deles. Não saía nem nos finais de semana, a não ser que eles a levassem, de carro, para ver os primos que moravam por lá. Ela veio trabalhar comigo por um motivo. Porque eu a ensinei a se locomover. Aprendemos juntas, porque eu também andava de ônibus. Dois anos depois, ela foi viver a sua vida, bem faceira e independente.

Ontem fui ao banco, antes do horário de abrir. Uma mulher que estava com os dois filhos no auto atendimento da Caixa, veio me pedir ajuda para ver o extrato do bolsa família. "Moça, eu sou analfabeta". Tinha a senha escrita na carteira de trabalho, perguntei se ela queria tentar. Ela respondeu, "não, morro de medo deste negócio aí". (Do cartão). Perguntei se os filhos não poderiam aprender. "Eles também não sabem ler". Não vão à escola? "Sim, mas não sabem ler. " Os dois meninos corriam de um lado para o outro. Tirei o extrato, e saquei duzentos e poucos reais para ela.

Ajudei a moça, mas fiquei frustrada.

Não escrevo para criticar o bolsa família, e nenhuma das ações sociais que acho louváveis, de verdade.
Critico sim, o paternalismo e a falta de investimento na educação básica, a falta de investimento na liberdade pessoal, porque ninguém é livre sem poder andar com as próprias pernas, mesmo que tenha dinheiro. Infelizmente, não basta.

Eu sou privilegiada, e reconheço. Pertenço à elite, e podem me chamar de burguesa, não ligo, apesar de não gostar de rótulos ou definições que me limitem.
Completei minha formação em escola pública, por opção. Estudei muito para passar no vestibular, numa federal. Mas sempre tive todas as ferramentas à minha disposição, comida, amor e livros. Então, sou sim, privilegiada.
Sou médica, não trabalho no SUS.
Isso não quer dizer que eu viva numa bolha, ou seja alienada. pelo contrário. Ando de ônibus, saio de casa às sete horas da manhã, atendo gente muito simples, de poucos recursos, conheço suas histórias, converso muito no meu atendimento. Não poucas vezes me entristeço e me desespero com seu sofrimento, com suas dores e suas mazelas. Ajudo como posso, e nem sempre posso.

Não sei quem vai ganhar estas eleições.
Não entendo de política ou economia, menos ainda de socialismo.
Não sei nem se entendo daquilo que mais gosto, que é de gente.

Só acho que está na hora de mudar, e começar a ensinar esta gente, de verdade.
Seja quem for que vá governar este país a partir de então, que tenha como principal meta a educação.
O princípio de tudo. No seu nível mais básico, no ensino fundamental mesmo, para que aqueles meninos que corriam ontem na Caixa possam ajudar sua mãe a não ficar à mercê de homens de má fé. Para que aprendam a ler, escrever, raciocinar e agir por seus próprios pés. Para que possam escolher. Para que tenham um futuro como os cidadãos reais que são e não percebem ser.

Porque, me desculpem a rima pobre, sem educação não há inclusão. É só ilusão. E estamos todos desiludidos, sem exceção.

Eu hoje estou, além de desiludida, triste, porque transformaram eleição em guerra suja, Nós contra eles, e não deveria ser assim. Porque eles somos nós, e nós, quem somos, se não eles?
Acho que este é um bom momento para se pensar a respeito. Para se pensar o respeito.
Toda mudança começa dentro. Sem hipocrisia.
"Atire a primeira pedra quem nunca pecou"
Eu descobri que peco todo dia. E você?
Tudo que aí está nada mais é do que um reflexo do que aqui está.

Se minha calçada é meu dever de cuidar, e está toda esburacada, como posso apontar o meu dedo para a calçada alheia?

Vivemos numa sociedade que espera. De Deus. Do governo. Do outro.
Chega!
"Quem sabe faz a hora", não é isso?

Então, está na hora de mudarmos este padrão. De assumirmos as rédeas, e nos tornarmos responsáveis por nossas escolhas, com suas inevitáveis consequencias. Que ninguém nunca sabe, com absoluta certeza, se serão boas ou  más. Só o tempo irá nos mostrar. Sempre o tempo, este senhor implacável da verdade.
Mas que hoje sejam as melhores escolhas que podemos fazer, conscientes daquilo que acreditamos e queremos. Para todos nós, que somos um neste exato instante.

Ninguém é dono do tempo, não. Mas cada um é dono de sua própria história.

Dani Altmayer





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