terça-feira, 21 de outubro de 2014

Cabelos vermelhos




Você ao menos podia ter esperado eu segurar a sua mão, eu tinha tanta coisa para te falar, e o que eu mais precisava dizer não ia demorar mais do que um minuto. Eu queria ter podido dizer que te perdoava, sabe, como nos filmes em que as pessoas morrem e no instante final fica tudo bem, todos os erros são redimidos e a pessoa morre sorrindo, vendo uma luz, ou seja lá o que for, e quem fica chora e aceita a vida como ela é, com início, meio e fim. Mas nunca foi assim, com a gente, nunca foi como eu queria, você sempre fez do seu jeito. Eu não estive nos seus planos, a minha hora sempre foi errada.

Hoje eu fui ao cemitério te ver, levei umas flores amarelas lindas, fiquei olhando a sua foto no túmulo. Sabe, as pessoas sempre falavam, você era tão parecida comigo, os olhos, a boca, o cabelo vermelho. Era a minha cara naquela foto, uma perfeita estranha sorrindo em preto e branco, que sensação esquisita, se olhar num espelho de mármore.

Não consegui chorar, nem no avião, nem no cemitério, até agora não derramei uma lágrima, e acho que por isso tenho uma dor que esmaga o meu peito, e não me deixa respirar. Liguei para o Luís, foi ele quem disse para eu escrever para você, que isso ia me aliviar. Amanhã ele vai me ver, vai prescrever um remédio que eu não vou tomar, cansei de tanto remédio, não tomo mais nada, desde que fui embora.  Nem para dormir. Foi tão estranho ouvir a voz dele, tão familiar e rouca, depois de tanto tempo.

Lembrei daquela vez que fiquei no hospital com ataque de asma, e durante o dia a Rosa ficava comigo para você trabalhar, e à noite eu ficava sozinha, abraçada com o Teddy, no escuro, não conseguia dormir de saudade, quantos anos eu tinha, uns dez, acho. Estou me sentindo daquele mesmo jeito, um aperto, uma solidão sem ar, só que sem o Teddy desta vez. Você botou fora, quando eu fiz doze anos. "Não é coisa de mocinha", determinou. Ele estava todo desbotado e velho, mas eu o adorava.

Eu queria ter estado ao seu lado, e ter segurado a sua mão quando você partiu, e ter dito que te perdoava. Queria ter podido contar dos caminhos por onde me desviei, e foram tantos, tantos desvios para chegar até aqui, nesta casa vazia. Aliás, gostei de ver minha foto na estante da sala, a foto que te mandei da Austrália, eu estava feliz naquele dia. Eu nunca te disse, mas eu fiz um aborto quando morava lá. Não me recrimine, você não me recriminaria, eu sei. Porque fiz aquilo que você deveria ter feito, mãe.

Agora quem tem que ter coragem sou eu, para mexer nas suas coisas, fechar esta casa enorme, vou vender tudo, para não ter que voltar. Eu só queria que você segurasse a minha mão, que você me perdoasse. Queria chorar um pouco, preciso, para poder respirar, mas está tudo trancado aqui dentro. Faz frio, vesti uma blusa sua, ainda tem aquele perfume forte, que me dava alergia. Você tinha tanta roupa bonita, tanto sapato e tanta bolsa.

Precisei usar a bombinha, fazia anos que não tinha uma crise.

Vou continuar morando em Londres, mãe, vou casar ano que vem. Um dia eu vou ter uma filha, ou um filho, ou os dois, quando for a hora certa, porque eu quero muito. E talvez eles tenham os mesmos cabelos vermelhos, e os olhos tão verdes como os seus.

Dani Altmayer

Exercício para a oficina de escrita criativa
( Mãe sem "instinto maternal", ou melhor, que não nutre pelo filho nada do que é positivo na maternidade)


4 comentários:

  1. Teus textos me encantam porque me fazem viver as histórias, visualizar mentalmente as personagens. É muito bom ler o que escreves.
    Obrigada por me dar estes agradáveis momentos de leitura.

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  2. Assim como a Marcia, também consigo imaginar teus personagens e os momentos dos teus contos. Muito bom, como sempre Amiga. Nem preciso dizer que terminei a leitura com olhos molhados.

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    1. Neguinha, obrigada pelo teu retorno, amiga querida.
      Bjão

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