quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Coisas de Mulher


O corpo da gente é uma máquina que funciona sozinha, e, quando tudo vai bem, nem lembramos que ele existe, na maior parte do tempo. É nosso veículo, mas de um jeito ou outro não estamos lá muito atentos às suas funções. Respira-se sem consciência, e o coração, mesmo quando partido, continua batendo, teimoso.
Até  que um dia o corpo nos prega uma peça.
Acho que hoje nem se usa mais um médico vestir-se todo de branco, mas eu tinha este costume, por causa do meu avô, que era um daqueles médicos de família bem tradicionais. Lembro que ele dirigia um galaxy verde, e às vezes me levava junto em suas consultas, com a condição de que eu ficasse quietinha para ganhar um sorvete depois. Eu adorava. Meu avô parecia um anjo, vestido de branco, e foi com ele que aprendi a amar a medicina.
Já não tenho mais consultório faz tempo, desde que publiquei meu primeiro livro e passei a me dedicar às pesquisas e área acadêmica, mas segui usando branco no trabalho. Faço palestras em empresas e participo de congressos nacionais e internacionais, viajo muito e acho o branco prático e elegante.
Achava.
Em uma ocasião, eu estava em Buenos Aires para apresentar meu projeto de pesquisa num congresso de psiquiatria. A platéia, lotada de renomados colegas, era na sua maioria formada de homens. Bom, estava começando a projeção dos gráficos quando senti uma cólica. Disfarcei uma careta de dor, e segui demonstrando meus dados, sem dar muita importância. Alguns minutos depois, outra pontada, mais forte, e uma sensação de calor no meio das pernas. Sem parar de falar, pensei "não pode ser, menstruei há uma semana."  Olhei para minhas calças de linho branco, e lá estava ela, inconfundível, uma mancha vermelho- escura. Lembrei de quando eu tinha uns quinze anos, e fiquei menstruada na escola, uma colega, no recreio, avisou que minha calça jeans estava suja na bunda. Alguns meninos perceberam e começaram a rir. Consegui um casaco de abrigo com a Ritinha, para amarrar na cintura, e fui para casa chorando. Passei dois dias com cólicas terríveis e sem colocar o pé no colégio, morta de vergonha.
Só que agora, eu não tinha quinze, e sim 46 anos de idade. Meus ciclos sempre haviam sido regulares, depois daquela fase inicial. Havia esquecido que uma mulher na pré menopausa é como uma adolescente no que se refere a suas funções hormonais. Totalmente descontrolada. Isso explicava então o súbito ataque de fúria que eu tivera no dia anterior. Meu marido até brincara "está naqueles dias".
Estava lá eu, então subitamente consciente de todas as funções do meu corpo. Sentia o coração acelerado, aos pulos, a respiração pesada, a boca seca, tinha uma cólica insuportável, e pensava "e agora?" Enquanto falava, porque, não sei como, segui falando, a vontade que eu tinha era de chorar, de abrir um buraco no chão, de sumir dali. Minha mente se distanciou do meu corpo, que suava frio, molhando a fina camisa de seda branca. Enquanto explicava meus resultados, senti saudade da Ritinha. Eu queria seu abrigo.
O auditório estava ainda na penumbra, mas em breve as luzes se acenderiam para dar início às perguntas.
Foi naquele instante que decidi. Sinto muito, vovô. Branco não mais.

Dani Altmayer

Exercício oficina de escrita- fácil, fácil: " Pessoa contrangida em seu trabalho, sente subitamente algo físico( dor de barriga, etc) , que a atrapalha no curso de sua atividade."
O texto não andava, e acabou saindo em forma de crônica. ;)

Um comentário:

  1. Uma mulher entende este sufoco, e como entende.
    Mais um texto de agradável leitura.
    ������

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