quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Domingo de Sol



Laura estava pedalando há umas duas horas, tinha saído da Redenção para a Beira Rio, fora até o Barra, e agora voltava para casa. Atrasada para o almoço na casa da mãe do Beto, já podia imaginar a briga que se seguiria. Por tanto tempo pedira um namorado, e depois que conhecera o Beto tudo fora bem rápido. Na verdade, ele estava quase morando na casa dela. Finalmente tinha alguém para ver filme enrolada no sofá num sábado à noite. O problema é que o cara gostava demais do sofá. Além de não levantar cedo de jeito nenhum, e de tomar coca cola no café da manhã, ficava o dia todo assistindo a programas de esporte na TV da sala.

No começo, ele até ia junto nas pedaladas, mas não tinha muita disposição para exercícios. E ela bem que preferia, pedalar sozinha. Podia ouvir as músicas de que gostava, deixar a mente vagar, e o corpo suar bastante. Acordava cedo, tomava um belo café, depois saía sem rumo. O chato era aquele compromisso de alemão, rígido, almoço ao meio dia na casa da sogra, sempre maionese e carne assada. Domingo não é dia de ter agenda. Mas dona Vanda não abria mão de ver o único filho, ao menos uma vez na semana.

Laura estava quase chegando em casa quando decidiu virar numa rua antes, para pegar o jornal na banca. Beto queria olhar os classificados de emprego. Ela ainda conversou um pouco com o Chico, dono da banca, que tinha sempre uma fofoca boa da vizinhança. Olhou o celular, estava um pouco atrasada. Enrolou o jornal para caber no cesto, junto com as flores que comprara na feirinha, e quase foi atropelada por um ciclista que vinha pela calçada, carregando, na cadeirinha da frente, uma menina de vestido e capacete cor de rosa. Laura ia gritar "cuidado", mas ao ver o rosto do homem, perdeu a voz. Era o Beto.

Ele não a viu, seguiu na direção do parque numa conversa animada com a garotinha, que devia ter uns três anos e o chamava de papai. Laura foi atrás. Ele pedalava surpreendentemente rápido.

Dirigiu-se a um recanto perto do lago, onde estavam uma mulher, sentada de pernas cruzadas e um bebê, que engatinhava em uma colcha enorme estendida na grama. Um triciclo estava jogado ao lado. Uma bola cor de rosa, e uma boneca sem braços completavam o quadro, mais uma bolsa enorme de carregar fraldas e essas coisas de nenê, e alguns blocos de montar coloridos. A mulher, usando um vestido solto, estava de costas para ela. Beto encostou a bicicleta, pegou a menina no colo, e tirou seu capacete. Cachos dourados explodiram para todos os lados, e a menina gritou para a mulher. "Oi mãe! Tô com fome!"

Laura via o homem com nitidez, a mesma mecha branca nos cabelos escuros, de um lado só, na altura da têmpora direita. Os olhos azuis apertados, por conta do sol e da miopia. Beto detestava usar óculos. Não conseguia ver direito a mulher, que usava um chapéu de abas largas, tinha os cabelos escondidos num coque, e a cabeça inclinada para o bebê que agora mamava no seu peito. Ela lhe pareceu vagamente familiar. O homem pegara na bolsa um potinho com frutas picadas e dava para a menina. Dividiram uma garrafa de água. Ele abraçou a mulher por trás, e a beijou com carinho no pescoço, muitas vezes, antes de iniciar uma partida de futebol com a filha.

Laura sente o telefone vibrar no bolso, mensagem da sogra. "Poderiam trazer maionese e coca cola?" Sem tirar os olhos da cena à sua frente, responde no automático, sim. Vê as horas no celular, passa do meio dia. É domingo, não é dia de hora marcada. Suspira. Monta na bicicleta, dá uma última olhada na família fazendo piquenique. Beto não está mais à vista. A mulher limpa a boca da filha com um lencinho. Laura não consegue ver seu rosto.

Ela resolve ir embora. Pedala de volta para casa, em silêncio. Faz muito calor para agosto. Mal gira a chave na fechadura, ouve um "você está atrasada, para variar. Mamãe já ligou duas vezes".
O ar condicionado está no frio, e a TV mostra as últimas voltas da corrida.
Apesar da pressa, Beto está deitado no sofá, de cabelos molhados, os pés apoiados no encosto branco. Fumando, tranquilamente.


Dani Altmayer

Último exercício do ano para a Oficina de Escrita Criativa ( realidade e fantasia).


Um comentário: