sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Mais uma vez


Todas as roupas espalhadas sobre a cama, as malas abertas à espera, e a inércia. Mais uma vez, as roupas e as malas, além de um porta retrato vazio, um estojo de maquiagem e três livros.
Poderia uma vida caber em duas malas?
Sentada na beira da cama, ela chora baixinho. Mais uma vez, a dor.
Pela janela aberta entra a luz tênue do fim de um dia de verão, pintando o quarto de dourado e laranja. Fora um dia quente, mas agora sopra um vento morno que a faz sentir calafrios. Segura na mão o vestido floreado, o mesmo que usara no último Natal. Ele sempre implicara com seus vestidos floreados, "coisa de hippie", dizia. Lembra da noite feliz, na casa da praia. Ouve os ecos dos risos forçados da família durante a ceia, relembra as histórias não contadas, e por tantas vezes repetidas, os presentes sempre meio fúteis do amigo secreto. Ganhara um porta retrato, com foto.
Se naquela noite ela soubesse, teria escolhido outra roupa?
Suspira, dobra o vestido com cuidado, é um vestido bonito, azul e branco, e o coloca no fundo da mala. Enxuga as lágrimas com o dorso da mão, decidida. Se uma vida cabe em duas malas, não vale a pena chorar.
Tem pressa agora. Joga de qualquer jeito o restante das roupas, o estojo de maquiagem, os sapatos e o porta retrato vazio. Senta em cima da mala maior para fechar. Não cabem os livros, que guarda na bolsa.
Olha uma última vez o quarto, já cheio de sombras na penumbra da noite que se avizinha. Respira fundo, não esqueceu de nada.
No cesto de lixo, jaz a foto, rasgada ao meio. Ele, de bermudas brancas e camisa amarela, ela com o vestido azul floreado. Dois rostos sorridentes, e um abraço, partidos.
Mais uma vez, partida.

Dani Altmayer
( Desafio)

3 comentários:

  1. Resposta do desafiante, meu pai:
    José Antonio Altmayer (No aeroporto ) Conheco aquela blusa, afinal foi meu presente de Natal do ano passado. Mas o que faz ela arrastando essas malas pelo saguao do aeroporto? Os oculos escuros e o lenco no cabelo nao escondem o vestido floreado e nem seu ar de tristeza. Nao me disse que sairia de casa.Rompemos simplesmente.Eh bem verdade que nao escutei muito e nao imaginei que ela viajaria no mesmo dia que eu. Os motivos da briga foram futeis como sempre, mas reconheco que meu egoismo e essa mania de dono da verdade nao ajudaram em nada na situacao. OK, eu implicava com os floreados, num desrespeito ao seu gosto no vestir, mas adorava ve-la chegar sorrindo, olhar provocativo. Por deus, eu amo essa mulher, mas porque deixo as coisas se arrastarem a esse ponto? E agora estah ali adiante, no mesma fila, da mesma companhia,provavelmente com o mesmo destino. Afinal de contas nossas dores de cotovelo sao sempre curadas junto ao mar, na nossa praia. Porisso estou indo para lah, soh nao imaginei que seria na mesma hora. Ela ainda nao notou minha presenca ou se o fez nao deixou perceber. A fila anda. Apesar da proximidade do Natal nao ha um congestionamento. Observo que se dirige ao portao de embarque sem virar a cabeca ou olhar para os lados.Despachou as malas, levando somente uma bolsa que parece muito pesada. Como a conheco bem, deve estar cheias de livros, sua primeira paixao, eu em segundo ela me dizia. Despacho minha bagagem e vou para o salao. Olho em volta. Lah estah ela, livro na mao mas com um olhar ao longe, imersa em pensamentos. Uma cadeira vazia ao seu lado eh um convite irrecusavel. As favas o orgulho e as bobagens ditas e nao ditas. Sento ao seu lado e sem falar nada coloco em seu colo um envelope que estava em minha pasta.Ela abre, examina o conteudo e dah uma risada gostosa. Nos beijamos. A foto escorrega para o chao, copia de uma que ela mantem num porta-retrato na sala de casa .

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  2. Vestido Floreado

    Marisa pensou que um sorvete agora seria um indulto merecido depois da maratona de compras de Natal, mas pelas moedas que restaram no fundo da carteira, ou tomava a lancha para o Norte, ou tomava o sorvete. Que pena! Fazia mais calor no centro e o vestido floreado de sempre grudava no corpo.
    Enquanto esperava a sinaleira fechar na rua principal, aproveitava para admirar a restauração da Prefeitura. As paredes amarelas impecáveis, as floreiras cheinhas de onze-horas, os postigos recém envernizados e alguém na sacada com os olhos fixos nela. Sente o coração rasgar a garganta, secar a língua e empurrar um sorriso pelos lábios. Alexandre.
    O mesmo que, em um Natal longínquo, estendera a Marisa um presente envolto em papel branco de seda e fita dourada. Mal desembrulhou o pacote, com as mãos trêmulas, e já segurou contra o corpo, o mesmo vestido de hoje, azul claro, cheio de margaridinhas e botões de pérola. Ao mesmo tempo em que ela rodopiava pela varanda, Alexandre, com os olhos embebidos dela, contorcia as mãos frias e aguardava o “sim”. Pena que ela ainda tão jovem e ingênua, negara.
    A sinaleira fecha. Soa o aviso de três minutos para a lancha partir e ela lança um último olhar para a sacada, bem a tempo de ver Alexandre, uma mão na cintura, o outro braço aberto, ensaiar um passo de valsa e sorrir abertamente para ela.

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  3. Um vestido floreado, um amor e três escritores sensíveis.
    Perfeito.

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