sábado, 20 de setembro de 2014

Ele



O plantão estava calmo, até então. Distraído com a leitura do caderno de cultura, estremeceu quando o telefone tocou.
- Doutor Carlos, chegou uma internação. Veio de ambulância!- avisa a recepcionista, gritando.
O médico idoso dobra com calma o jornal, e enquanto se dirige devagar à emergência, pensa na esposa, que também grita quando fala com ele. Este é um dos motivos pelos quais ele vem adiando a aposentadoria, indefinidamente. Continua a fazer parte do conselho do hospital psiquiátrico, no qual foi diretor por anos, e ainda faz plantão na internação, duas vezes por semana.
De natureza discreta e gestos contidos, nada parece abalar o humor fleumático do elegante doutor.
Ao chegar na sala de emergência, ele vê uma mulher estendida na maca. Um residente estava com ela.
- Tentativa de suicídio, doutor Carlos. A camareira do hotel a encontrou, os punhos cortados. Cortes superficiais, já fiz um curativo.
A mulher tem cerca de sessenta anos, e parece calma. Está de olhos fechados, a mão sobre o rosto. Chora baixinho.
- Você sabe o nome dela?
-  Ana.
- Bom dia, Ana- toca suavemente o braço da mulher.
Ela abre os olhos escuros, e ao vê-lo, dá um grito de pavor:
- Você!
O médico fica pálido, e trêmulo, encosta na parede para não cair. "Não pode ser".
- Você! Major Bauer!
- Doutor, o senhor está bem?
A mulher, agora aos berros, fala palavras desconexas, tentando levantar da maca. Chama pela filha, e grita por socorro, em franca crise de histeria. O residente amarra suas mãos, e percebe, por baixo do corte no punho, algo parecido com uma tatuagem. Aplica-lhe uma injeção na veia, para que se acalme. Ela apaga, aos poucos, murmurando… "monstro".
O jovem volta-se então para o médico mais velho, que parecia prestes a desmaiar.
- Sente-se, doutor Carlos. Enfermeira, por favor, traga um copo de água.
Após medir a pressão, e verificar que estava tudo bem, o residente pergunta:
- Major Bauer? Não entendi nada. Esta mulher o conhece, doutor?
O médico idoso levanta a cabeça. Os olhos claros parecem de vidro, e ele o olha como se não o enxergasse. Está numa espécie de transe. Transportou-se para outro tempo, perdido numa lembrança recém desvendada.
Muitos anos atrás houve uma guerra. E um campo de prisioneiros. Ela era uma menina bonita, pouco mais do que uma criança.
Uma menina que ele quis. Uma criança linda. Ana.
- Não tive culpa, não tive, não tive culpa - balbucia.
O residente o sacode pelos ombros:
- Não teve culpa de quê, doutor? Do que o senhor está falando?
Doutor Carlos parece acordar, num estalo. Pigarreia, e, novamente no comando da situação, olha para o residente, decidido:
- O que esta mulher acabou de ter foi um surto histérico. Associado à tentativa de suicídio, melhor manter a paciente sedada, até segunda ordem. Peça à enfermeira para entrar em contato com o hotel, e descubra o nome da filha. Veja também a idade, é importante. Anote na ficha, terapia de escolha: eletrochoque e sedação.
Dito isso, levanta-se sem dificuldade, e segue pelo corredor do hospital, a passos largos.
Olha para as paredes descascadas, aspira o cheiro de desinfetante e álcool. Naquele lugar passou mais da metade de sua vida.
Suspira, resignado.
Talvez sua mulher tivesse razão, afinal. Estava na hora de se aposentar.

Dani Altmayer

Texto exercício da oficina de escrita criativa. Editado.
Tema: "Um homem, que esteve na guerra, tem um trabalho qualquer, um dia algo acontece, e o passado vem à tona." Deveria haver uma epifania. Tenho dificuldade com epifanias. ;)
E tive muita dificuldade com este texto.
Mas valeu o desafio.
Nada de parar no meio do caminho, isso não. Por pior que seja.

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