terça-feira, 5 de março de 2019

Reminiscências



Ainda lembro do cheiro do leite quando fervia, e derramava no fogão. Acontecia muito, naqueles tempos de leite de saquinho, em que era preciso ferver para matar as bactérias, um leite aguado que muito provavelmente era mais saudável do que esse pasteurizado- e adulterado- de hoje, enfim, não era a respeito da qualidade do leite que queria falar, talvez nem do leite derramado em si, sobre o qual não adiantava, e nem adianta, chorar. Se bem que nunca vi ninguém chorando por causa de leite, apenas esbravejando. E limpando. Era muito chato limpar leite derramado, uma sujeira danada, o fogão ainda quente, tinha que tirar as grades, passar o pano, queimava os dedos, mais fácil seria prevenir, sempre é, mas e daí? Não adiantava, não adianta avisar.
Tampouco minha intenção era fazer uma metáfora sobre o inesperado, embora ela caiba aqui e num livro de autoajuda, porque o leite só derramava quando você se distraía, e para isso, bastava um segundo. O segundo de pegar a manteiga na geladeira ou o pó do café no armário. Ou atender o telefone, que, naquele tempo, no tempo do leite de saquinho, era fixo na parede. 
A mãe dizia, "cuida o leite." Você ficava horas, talvez minutos, tudo parecia demorar horas na  infância, olhando aquele líquido branco na leiteira sobre o fogão, líquido do qual você sequer gostava, não gosta até hoje, a televisão da cozinha ligada, o leite sempre derramava aos domingos, na hora do Fantástico, e se você, leitor, leitora, não conhece uma leiteira, tenho certeza de que o Fantástico você conhece. Naquele tempo se chamava o show da vida, não sei se ainda é assim. 
Então, lá estava você, criança, pequena, mas grande o suficiente para cuidar do fogão, esperando horas, talvez minutos, que as borbulhas começassem, era preciso desligar ao primeiro sinal de fervura, hoje ferver o leite poderia bem ser um exercício de atenção plena, uma espécie de mindfullness, por que não? -e você se distraía com algum mágico na TV, o clip do Ney Matogrosso, numa briga com o chato do irmão caçula, ou mesmo com nada, porque distração é dessas, acontece, e pronto.
Um segundo, lambança feita, e aquele cheiro esquisito que me fez escrever essa crônica, sem nenhum significado além da lembrança sem nostalgia de um tempo em que cantávamos o hino na escola, tínhamos aula de moral e cívica, um tempo  em que domingo à noite era só o Fantástico, depois dos Trapalhões e antes da segunda, e o leite vinha em saquinhos, precursor das caixinhas, evolução das garrafas que o leiteiro um dia deixou na porta de nossos avós. De carroça.
Nunca vi ninguém chorando sobre o leite derramado. Mas que dava vontade, dava. Dá.
Ainda que não adiante.

Daniela Altmayer

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