domingo, 22 de outubro de 2017

Por que o amor?




São quase sete da noite, horário de verão- ainda é dia, mas está escuro. Um dia cinzento que não amanheceu.
Vejo seu João fechar a porta da guarita, está acabando seu turno. O uniforme azul-claro impecável em contraste com a pele escura, a cabecinha branca curvada sobre os ombros também curvados. Ele conversa um pouco com Manoel, o porteiro gordo da noite. Olha para cima e me vê na janela. Acena timidamente, está triste. Estamos todos. Pega sua sacola e se despede do colega.
Seu João trabalha no prédio há 18 anos. Ela a viu nascer e crescer. E foi ele quem a encontrou, cedo pela manhã, na piscina.
Espio o jardim recém-florido, a grama bem cuidada. Um pássaro se despede da tarde, e o resto é silêncio- nada lembra a confusão do início do dia. Todas as janelas estão fechadas no quinto andar, nenhum carro na garagem exceto o meu. O parquinho infantil está deserto de risos inocentes. Um balanço dança com o vento, e range, gemendo. Precisa botar óleo, me lembro.
Fecho a cortina e penso nas palavras do porteiro, os olhos arregalados e úmidos:
- No pulso direito tava escrito fé. No esquerdo, AMOR. Bem grande. Não dá pra entender, dona Cláudia. Uma menina bonita, tinha tudo. Minha amiga...
Ainda posso ver os dois conversando na guarita, pouco tempo atrás. Ela sentada no banquinho dele, uma xícara de café na mão e os biscoitos que dividiam quase todo dia.
Uma vez me disse que gostava das histórias que o velho contava, anotava todas num caderninho- tinha planos de escrever um livro. "Tudo é inspiração, dona Cláudia." Também de mim perguntava, interessada. Mas eu não tinha nada de bom para contar, só sei das coisas do condomínio, e das que vejo da minha janela- faz tempo que a vida parou de acontecer por aqui.
Imagino agora seu João sozinho na parada, depois sacolejando dentro do ônibus em direção à sua terrinha, como ele diz. Mora num pequeno sítio na periferia, com a esposa e o neto Carlinhos. De vez em quando ele nos traz umas bergamotas miúdas e azedas, diz que a patroa mandou. Traz ovos caipiras também, para vender. Acendo uma luz no apartamento, suspiro- hoje foi difícil ser síndica. Imagino o pobre homem chegando em casa agora e dando a notícia, os olhos turvos molhados e incrédulos. A mulher o abraça forte pelas costas, ele solta o choro represado do dia, inconformado:
- Pra quê? Se tinha tudo, tanto amor... Se tinha amor até tatuado, pra não esquecer. Não consigo acreditar.
Primeiro a fé, de leve, superficial, com medo ainda. Depois o amor- que ela cortou forte e fundo, e deixou sangrar até morrer, o AMOR.

Daniela Altmayer
( desafio: pra que o tal do amor?)



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